Objetividade planilhada

Opinião Pública | 11/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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Assinar e enviar mensalmente as planilhas do CNJ poderia ser um mero ato burocrático, como a assinatura de uma guia judicial de levantamento de valores. Não se pensa, faz-se e a vida segue adiante. Mas o CNJ, anunciado, em seu advento institucional, como a solução para os problemas judiciários, no simbólico tema das planilhas, tem se esforçado para ser parte dos mesmos problemas, porque confunde eficiência com eficienticismo.

Compreendo perfeitamente essa visão que reduz uma instituição estatal à uma grande corporação. Vivemos obcecados pelo resultado. Tudo está demasiadamente condicionado à eficiência e ao acerto. Uma das expressões mais utilizadas nas redes sociais expressa bem essa cosmovisão hegemônica, muitas vezes empenhada involuntariamente: “Sucesso!”. Então, a julgar por isso, ser bem-sucedido é um imperativo social a ser buscado a qualquer preço. Nem que seja ao preço de nossa consciência moral, saúde física ou psíquica ou da perda de consideração daqueles que nos rodeiam.

Olhemos em volta. Em minha experiência profissional e familiar, é cada vez maior a pressão que se imprime aos jovens, no sentido de que devem sempre acertar e ter total êxito em tudo que resolvam fazer: esportes, estudos, amor, amizades e dinheiro. O mínimo erro será punido com um contundente ostracismo social, uma espécie de punição coletiva para aqueles que não alcançam o pódio da glória pessoal.

Eu tenho pavor disso. A eficiência deixa de ser um meio e passa a ser um fim em si mesmo. Transforma-se em puro eficienticismo. Quando esse fenômeno atinge uma magnitude social, então, a sociedade vira uma espécie de laboratório do “darwinismo social”: sobrevivem somente os mais aptos, isto é, os mais “eficientes”. Em suma, o eficienticismo passa a ser o critério ético nas relações entre os indivíduos.

Mas não é só. Subjacente ao eficienticismo está a ideia de que “é proibido errar”. Um postulado utópico, a julgar pela debilidade intrínseca de nossa natureza. Não somos super-homens. Aprendemos com os erros próprios e alheios. Falhamos diariamente. Sempre foi assim e não deixaremos de cometer equívocos. Caímos e daí surge a beleza da queda: para que possamos nos levantar, recuperar o ânimo e seguir adiante. Esse é um dos principais motores do ser humano.

Não viver sob a égide do eficienticismo proporciona-nos uma grande vantagem. A capacidade de desfrutarmos o dar e o receber o “perdão”, expressão inexistente no dicionário eficienticista. Como efeito do perdão, corrige-se o equívoco praticado, ganha-se em magnanimidade pessoal e passamos a nos ver de uma outra maneira. O eficienticismo só vê e busca o resultado acertado, a ser checado posteriormente nas planilhas. No fundo, quem reza essa cartilha, transforma-se num “idiota da objetividade”. Objetividade planilhada. Como no futebol, o pior cego é aquele jogador que só vê a bola. Na gestão judicial, é aquele que só enxerga números e estatísticas.

Voltemos às planilhas do CNJ. Assino-as. Rapidamente. Não sem sempre recordar que aquele aglomerado de números dispostos em campos e mais campos nada mais representam o eficienticismo como um metaprincípio, a iluminar as pré-compreensões sobre o sistema judiciário e a condicionar toda a operacionalização dos “dentes de sua engrenagem”. Quem sabe, um dia, meu “empenho” na observância desse mecanismo certificatório do eficienticismo judicial – e de todas as metas que carrega consigo – venha a ser contemplado com um selo de qualidade judicial.

Num eventual discurso de premiação, ficaria tentado a lançar a seguinte indagação: “Como é possível distribuir o justo concreto a partir de uma política judiciária que enfatiza metas de eficiência que, por sua vez, são lastreadas predominantemente por controle quantitativo?”. Melhor não fazê-lo. Não sob o risco de perder o prêmio. Mas pela inutilidade em si da questão, pois pela cabeça eficienticista dos gestores da objetividade planilhada passa somente uma ordem social “eficiente” e não uma ordem social justa. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no Jornal Correio Popular de Campinas, 11.03.2015, Página A-2, Opinião.