Humberto e Conceição, ser e escrever

Opinião Pública | 17/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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Na última semana, tive a graça de tomar posse na Academia Campinense de Letras, com expressiva presença de amigos e conhecidos, na cadeira que, antes, era ocupada por Maria Conceição Arruda Toledo: a cadeira número trinta, cujo patrono é Humberto de Campos. Homem que não só aliava elegância indumentária, mas literária, principalmente depois que ingressou na Academia Brasileira de Letras, porque seus tipos não foram imaginários, porém, profundamente reais. Viveram e vivem entre nós e retratam personagens que morrem para dilatar sua vida.

Humberto de Campos foi um literato que redigiu mais de três dezenas de livros, centenas de artigos e crônicas na imprensa brasileira. Sempre com um estilo claro, harmonioso e cheio da força da sinceridade.Sinceridade esta que permeou as linhas de seu diário secreto durante toda sua vida e que fora esquecido nos cofres da Academia Brasileira de Letras, até que, um dia, fora restituído à família, a qual cedeu a divulgação para a revista “O Cruzeiro”, que se encarregou de publicar todos os pormenores, bons e ruins, dos episódios redigidos pelo punho de Humberto de Campos ao longo dos anos e acerca de muitas personalidades ainda vivas.

Isso custou um movimento surdo de revolta contra o escritor e a espiral do silêncio fez com que seu nome deixasse de ser citado e suas obras publicadas. Por isso, novas gerações deixaram de conhecer humaníssimas crônicas repletas de erudição e de espírito, saídas de sua privilegiada pena.Esse ostracismo existencial é comparável com as ondas de cinza e de lava vulcânica que sepultaram Herculano e Pompéia: porção tênue, leve, soprada pelo vento nos primeiros tempos e que, aos poucos, vai tomando a consistência de pedra, que só os alviões podem abrir e remover.

E, nesse ponto, surge a alma forte de Maria Conceição Arruda Toledo. Sua pena foi, em sua maturidade intelectual, um alvião contra a insubmissão de um espírito em busca de si mesmo e contra os preconceitos sociais sufocantes de sua condição de mulher. Em suas “Memórias – Resgatando o decênio 2000 a 2010”, ela descortina, logo no prólogo, que “quando escrevo, não faço rodeios. Vou direto ao assunto. Sou sincera, não sei caramelar a pílula, mormente contra os erros. Meus ou os dos outros. Se escrevi, é porque penso e sinto aquilo que está escrito. Sei que irei desagradar a muitos e haverá outros que se alegrarão”.

Esse espírito de rebelião contra o erro lembra um pouco de Catarina de Sena, essa doce e formidável santa que, no hábito de dominicana, na frente e nas costas, trazia duas cruzes: a cruz do santo amor e a cruz da santa ira nas batalhas espirituais e concretas do cotidiano.

Conceição, dona de um estilo fluente e ameno, em suas obras, leva-nos a refletir sobre a transcendência dos episódios aparentemente triviais do dia-a-dia que, paulatinamente, à semelhança do mais conhecido santo do cotidiano – Josemaría Escrivá –, vão crescendo em nossa consciência, com a saga de um espírito corajoso que, superando as barreiras dos preconceitos, Conceição soube, sem alarde, superar a si mesma como Catarina o fizera séculos antes.

Conceição, em sua vastidão bibliográfica de livros e artigos de jornais, vai rastreando a dura realidade de incursão pelos caminhos belos e trágicos de nossa existência: mostra que todos somos incompletos, ou seja, não nos bastamos e, por isso, associamo-nos aos demais; mostra que nascemos inacabados e, por isso, precisamos ser finalizados pela educação e pelo viver; mostra que, nosso universo, em seu horizonte prático, clama pelo cumprimento de si e, por isso, nosso ser tende ao nosso dever-ser.

Nessa trilha do ser ao pleno ser, Conceição nos legou uma história de uma mulher de coragem que jamais renunciou aos seus propósitos, vencendo resistências e derrubando obstáculos, inclusive, no mundo acadêmico, ao defender, com rara fineza, a admissão das mulheres nas academias literárias e artísticas. Como prêmio, elegeu-se acadêmica e tornou-se a primeira mulher a assumir a testa da Academia Campinense de Letras.

Afinal, cada qual colhe o que planta: seja Humberto ou Conceição, agora, ao lado dos demais ilustres acadêmicos, poderei participar, não no talento, mas na constância e no trabalho, deste gesto generoso e fecundo de semeadura da cultura e do saber. E sempre sendo o que escrevo e escrevendo o que sou, na trilha de meus antecessores. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, mestre em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, dia 17 de dezembro de 2014, página A2 – Opinião.