Diferença interdita

Opinião Pública | 26/10/2016 | | IFE CAMPINAS

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Assistimos, neste começo de século, à proibição das diferenças. Tudo se organiza para que, no afã de se buscar a igualdade entre os sexos, acabemos por achar que somos todos parecidos. A sociedade, fascinada por si mesma, olha-se num espelho quebrado pela ausência de alteridade.

Nessa realidade despedaçada, reconhecer a diferença torna-se inaceitável, porque se induz a encerrar o outro na representação de si para fazê-lo existir socialmente no prolongamento da própria imagem. Mundo de Alice: caímos na toca do coelho.

Segundo o senso comum, quando se menciona a expressão “gênero”, referimo-nos ao ser humano, o gênero humano, composto pela mulher (sexo feminino) e pelo homem (sexo masculino). Segundo a sociologia, gênero corresponde aos papéis desempenhados pelos sexos nas mais variadas sociedades de todas as épocas.

Atualmente, procura se traçar uma sutil distinção. O sexo passaria a se referir às determinações naturais, os dois sexos caracterizados genitalmente e, ao lado do sexo, haveria também o “gênero”, termo que, longe de evocar os papéis exercidos pelos indivíduos na sociedade, historicamente variáveis e determináveis e frutos da interação entre natureza e cultura, seria concebido como exclusivo fruto da cultura. Pode aparecer ou desaparecer, segundo as sociedades e os indivíduos.

Nesse sentido, por exemplo, poderia se dizer – como já ouvi de um acadêmico – que o amor materno não está inscrito na natureza da mulher, mas que esse sentimento nasceu num determinado contexto cultural e que, por isso, pode sumir se a cultura cambiar para outra direção. Encontramo-nos, pois, diante de uma nova revolução cultural: a ideologia de gênero.

Nessa visão, qualquer que seja o sexo, um indivíduo poderia escolher e construir socialmente seu gênero. Um homem poderia optar pela heterossexualidade, homossexualidade ou pela transexualidade. Como efeito, creio que o nexo indivíduo-família-sociedade corre o risco de se perder e a pessoa restar reduzida a um mero indivíduo, à mercê do humor estatal e de todos os tipos de condicionamentos que normalmente daí derivam. Um delírio para os estatólatras.

A ideologia de gênero é um sistema fechado contra o qual não há nenhuma maneira de discutir. Você não pode apelar à natureza, razão, experiência ou opiniões e desejos de homens e mulheres reais, porque, de acordo com os axiomas dessa cartilha ideológica, tudo isso é “socialmente construído”. Não importa quanta evidência se acumule contra seus postulados. Continuarão a insistir que se trata de mais uma prova da “massiva conspiração do patriarcado” contra os novos papéis sexuais.

A unidade e a igualdade entre mulher e homem não anulam as diferenças. As qualidades de um e de outro são amplamente variáveis, mas elas se desenvolvem e se entrelaçam sobre uma base comum, que não pode ser neutralizada, salvo com um esforço desmedido – como faz a ideologia de gênero – que, no final, acabará por conduzir o indivíduo à aporia da autonegação.

Romper com a natureza biológica não ajuda nem a mulher e nem o homem a liberar-se. Por isso, a dimensão da cultura deve estar atenta para isso e somar seus esforços nesse sentido. Nessa ótica, podemos sugerir uma “perspectiva de gênero”, se nessa igualdade estiver incluído o direito a ser diferente e em substituição à ideologia de gênero, que ignora esse direito.

Enfim, essa “perspectiva de gênero” seria apta a tutelar o direito à distinção biopsicológica entre homens e mulheres, promover a corresponsabilidade em todo âmbito social e, ao contrário da ideologia de gênero, afastar a postura extremista de mortificar a diferenciação natural entre os dois sexos. Em suma, intermediaria um diálogo fecundo e vital de compreensão da diversidade entre os sexos: distinguiria para unir. E não para separar.

Heidegger afirmava que cada época tem um tema para o pensamento se debruçar. Quando a distinção entre o biológico e o sociológico degenera para uma oposição entre natureza e cultura, o gênero transforma-se num projeto com pretensões de transformação social, a desconstruir a linguagem, educação e cultura. Então, em resposta ao filósofo, o tema para reflexão de nosso tempo – para todos, todas e, sobretudo, para todxs – é a da diferença interdita. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 26/10/2016, Página A-2, Opinião.