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O fetiche das metas

Opinião Pública | 03/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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Números e mais números. Preencher uma planilha de movimentação judiciária leva mais tempo que sentenciar um processo simples, até porque, por ter uma natural repulsa por números, digamos que esse trabalho já começa meio vencido só de pensar em fazê-lo. Então, é melhor delegá-lo e apena fazer a conferência ao final. O cumprimento das metas de julgamento do CNJ, nossa cúpula judicial, agradece o tempo de preenchimento burocrático roubado em prol do sentenciamento dos feitos…

Desde que foi criado, nossa cúpula judicial tem feito muito pela administração da justiça brasileira, assegurando-lhe credibilidade, acessibilidade, ética profissional, imparcialidade, modernidade, probidade e transparência. Mas, no aspecto da governança (planejamento e gestão estratégica), sua atuação pende para um excessivo foco em metas e números.

Em 2010, no VII Encontro Nacional do Poder Judiciário, capitaneado pelo mesmo CNJ, foram eleitas dez metas prioritárias e quinze objetivos, todos os quais deveriam ser objeto de planos estratégicos regionais, alinhados ao plano nacional. Dentre as metas, apenas uma era de natureza estrutural; dentre os objetivos, somente três diziam respeito à melhorias estruturais no âmbito do Poder Judiciário. As metas e objetivos restantes envolviam produtividade e mais produtividade, com mais campos e planilhas para serem burocraticamente preenchidos.

Moral da estória: a curto prazo, aos juízes e servidores, a produtividade a todo custo, sem um mínimo de contrapartidas estruturais e com o risco de, em muitos casos, denegar-se o justo concreto em prol do estrito cumprimento das intocáveis metas e objetivos.  A longo prazo, como, aliás, já tem sido visto, um fato gerador de estresse profissional, dilemas existenciais e, somado ao natural sedentarismo e responsabilidade da profissão, enfermidades e vícios. Tudo isso ao preço do recorde mundial e sobre-humano de uma média individual de 1, 5 mil decisões proferidas por ano.

E agora? Terminado, recentemente, o VIII Encontro Nacional, temos duas notícias novas. E uma velha. Misturadamente, como diria Guimarães Rosa. A notícia velha foi a de que foram aprovadas sete metas e  seis delas começam com o mais-do-mesmo “priorizar o julgamento” disso e daquilo, sem qualquer menção às contrapartidas estruturais. A primeira notícia nova recomenda, ainda que timidamente, “aumentar os casos solucionados por conciliação”. E a segunda alvíssara determina a criação de “diretriz estratégica voltada para o zelo das condições de saúde e de qualidade de vida no trabalho de magistrados e servidores”.

Os números e as metas, ao que parece, continuam a tomar parte no imaginário fetichista na governança de nossa cúpula judicial. Em suma, continuam sendo um fim em si mesmo: como disse um amigo togado, a decisão judicial virou um item de mercado e de consumo e, ao cabo, esquecem de lembrar que a centralidade estratégica das metas e prioridades deve girar em torno da atividade intelectual do magistrado, que demanda tempo razoável para estudo e ponderação decisória do caso concreto, com seu tempo próprio, segundo sua maior ou menor complexidade.

O cálculo da eficácia institucional de um poder é justificado, porque, afinal, os juízes devem prestar contas aos contribuintes. Mas, quando esse cálculo é acompanhado de uma certa racionalidade instrumental, típica de estruturas que são governadas pelos mecanismos de integração sistêmica do sistema político e econômico, a saudável cultura das metas transforma-se no culto às metas.

Como efeito nefasto disso, cria-se uma excessiva burocratização das atividades de controle e documentação como resposta à necessidade de demonstração dos indicadores das metas e prioridades. O culto às metas, assim, passa a ser dividido por outra devoção: a dos louvores e adorações ao deus ex machina das planilhas de movimentação judiciária.

Mais números, relatórios, produtividade e menos estrutura e foco na pessoa e na saúde do magistrado e de sua equipe de trabalho. É hora de nossa cúpula judicial repensar “o mundo das ideias” da governança judiciária, em prol da superação dessa visão institucional reducionista, a recomendar, ao menos por ora, aos meus colegas juízes e servidores, mais Prozac e menos Platão. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, mestre em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).