Para alguns pode soar estranho um seminário cultural dedicado ao tema da imaginação. É comum associarmos a imaginação ao universo infantil, com seus super-heróis e personagens da Disney. Mas foi esta a proposta do Instituto de Formação e Educação – IFE e da Academia Campinense de Letras, no encontro ocorrido no último dia 08 de novembro, na sede desta última. Com o tema “Por que a imaginação importa?”, durante mais de três horas os presentes puderam refletir sobre o importante papel da imaginação na formação humana e os impactos do seu esquecimento na cultura atual.
Segundo Aristóteles, a imaginação é a mediadora fundamental entre o pensamento e a realidade. Só podemos pensar as coisas existentes por meio de imagens. Nossos sentidos (visão, audição, tato, olfato etc.), que em conjunto formam a percepção, captam fragmentos da realidade formando imagens, que, por sua vez, compõe o que chamamos de memória. A memória é, assim, o registro da imaginação. Por isso, o que não está na nossa imaginação (e na nossa memória), não existe para nós, pois é ela que nos revela as possibilidades do real.
Nossa imaginação é alimentada o tempo todo, mesmo que não estejamos conscientes disso. Tudo aquilo que vemos, ouvimos, tocamos, enfim, tudo o que experimentamos direta ou indiretamente do mundo, de alguma maneira fica registrado em nossa memória e passa a compor o nosso mundo interior. E é a partir destas imagens que concebemos a realidade e com ela nos relacionamos, formando aquele conjunto de idéias, valores e símbolos que orientam as nossas ações. Por isso, a importância de cultivar a imaginação, escolhendo, na medida do possível, a que vamos nos expor, para bem formar a nossa memória e, por fim, a nossa própria personalidade.
Infelizmente, a cultura tecnológica e materialista em que vivemos relega à imaginação um papel irrelevante. Com uma visão estritamente científica, restringe a percepção da realidade aos seus aspectos quantitativos, ao que se pode medir por critérios racionais-empíricos. Tudo o que está além do âmbito restrito da ciência é considerado irreal e irracional. Em consequência, a imaginação perde o seu lugar como um elemento essencial da cognição e da ação humana na realidade, passando a ser considerada apenas uma fuga do real, uma mera diversão, um entretenimento.
Por sua vez, este abandono da dimensão imaginativa faz com que fiquemos “esmagados pela literalidade das coisas”, para usar uma expressão citada pelo professor Roberto Mallet. A realidade se apresenta somente pelo que nos atinge de forma literal e imediata, fazendo crer que tudo o que extrapola esta literalidade é irreal, é fuga, é delírio. Assim, quem quer, por exemplo, saber o que é uma flor deve consultar um livro de botânica e se dar por satisfeito. Os poetas podem dizer coisas lindas sobre as flores, mas poemas são tidos apenas como exercícios lingüísticos, meras metáforas, que nada dizem sobre a essência de uma flor.
Há, por assim dizer, uma percepção desencantada do mundo, pois a ciência, embora nos permita descobrir aspectos importantes da realidade, não nos permite perceber justamente o que lhe é essencial. O resultado deste desencantamento é a perda do sentido da própria realidade, pois o que dá sentido às coisas é o que transcende o seu aspecto meramente material e técnico. O que dá sentido a uma flor, para ficarmos no mesmo exemplo, não é a descrição do seu funcionamento, muito menos a sua utilidade. O que lhe dá sentido é o mistério do seu ser flor, algo que jamais pode ser captado pelo método científico, mas que é tão real quanto o que a ciência pode explicar.
Cultivar a imaginação, portanto, ao contrário do que pode parecer, é ampliar nossa percepção para ir ao encontro da realidade mesma, um encontro que é também um encantamento. Este é um dos principais papéis das artes, conduzir-nos de volta à realidade das coisas, livres da intenção cotidiana de transformá-las ou utilizá-las para qualquer fim, mas tão-somente convidando-nos a contemplá-las em seu mistério. De fato, nem tudo o que hoje se denomina “arte” se presta a este papel. Mas poderíamos dizer que a verdadeira arte só é arte na medida em que nos leva, pela imaginação, a este maravilhamento do mundo, libertando nossa percepção da sua literalidade, para nos revelar seu verdadeiro sentido.
João Marcelo Sarkis, advogado, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas
Artigo publicado no jornal Correio Popular de 28 de novembro de 2014, na página A-2 – Opinião.