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Étienne Gilson e a metafísica contemporânea

Filosofia | 28/10/2014 | | IFE CAMPINAS

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Gilson-Ilustra-MoraesHá quem pense que o historiador da filosofia francês, Étienne Gilson, que escreveu obras como A Filosofia na Idade Média, O espírito da filosofia medieval, Heloísa e Abelardo e ainda Introdução ao estudo de Santo Agostinho, seja apenas o autor dessas obras que estão acessíveis em português a todos. Mas a obra de Gilson é vasta, compreendendo mais de 50 títulos, de modo que o que conhecemos dele em português é muito pouco. Embora haja outros livros dele publicados mais recentemente em português, como Introdução às artes do belo e O Filósofo e a Teologia, poucos conhecem um de seus textos como filósofo (e não como historiador da filosofia), que ainda não recebeu tradução, o The unity of philosophical experience, e que é comentado pelo texto a seguir.

O texto que segue é de Renato Moraes, publicado na seção da revista-livro Dicta&Contradicta  4, “O LANÇAMENTO QUE NÃO HOUVE”, dedicada a livros como esse: importantes mas que não receberam tradução no Brasil. No texto, Moraes trata não apenas do livro filosófico de Gilson, mas também do tomismo e da metafísica contemporânea. É um bom texto para se introduzir em um pouco daquilo que Gilson explorou como pesquisador e também realizou como filósofo. Ao final, coloco um anexo com uma lista atualizadas de obras de Gilson traduzidas para o português e outra lista com obras dele em francês e em inglês pouco conhecidas.

Boa leitura!

***

Quero minha metafísica de volta! – por Renato José de Moraes

Com o perigo de sermos da espécie de ensaísta que, para falar de qualquer coisa, tem que começar com Adão e Eva, antes de tratar de The unity of philosophical experience, de Étienne Gilson, parece-nos importante comentar sobre aceitação da filosofia de São Tomás de Aquino na Idade Média e na Idade Moderna, bem como sobre o surgimento da neoescolástica, no final do século XIX. Assim, será possível contextualizar melhor a importância do nosso autor e do livro cujolançamento não houve.

A filosofia tomista aos trancos e barrancos

A trajetória do pensamento de Tomás de Aquino (1225?-1274) na história da filosofia é acidentada. Estando vivo o simpático pensador, sua doutrina foi duramente criticada por várias frentes: os professores seculares da Universidade de Paris, que combatiam os professores oriundos das ordem mendicantes, isto é, os dominicanos e franciscanos; os averroístas latinos, que propunham uma interpretação de Aristóteles contrária às verdades da fé cristã; e, finalmente, os pensadores conservadores da linha agostiniana.

Ao contrário do que diz certa hagiografia, Tomás de Aquino não era um pensador com a cabeça nas nuvens, lento para agir e puramente racional ao argumentar. Ele combateu seus adversários no campo deles, e sobrepujou a todos. Escreveu libelos de defesa da espiritualidade mendicante; comentou os principais livros de Aristóteles, mostrando os equívocos da interpretação averroísta; e, com a filosofia do Estagirita, construiu uma síntese até hoje não superada.

No entanto, essa vitória teve o seu preço. Pouco depois de sua morte, seus inimigos fizeram uma série de intrigas e conseguiram que algumas teses, ao menos aparentemente dele, fossem incluídas em uma condenação promovida pelo Arcebispo de Paris, Esteban Tempier. Essa condenação jogou um véu de desconfiança sobre o pensamento do Aquinate.

Apesar do apoio decidido da maior parte dos dominicanos, a filosofia tomista passou a ser cultivada por grupos minoritários, contando com a decidida oposição dos teólogos franciscanos. Essa situação perdurou por séculos, apesar de pensadores tomistas terem conseguido fazer valer as teses do mestre em momentos importantes, como nos Concílios de Trento e de Florença.

Os séculos XVII e XVIII não foram nada favoráveis ao pensamento tomista e ao escolástico, ficando os teólogos inebriados com a filosofia moderna. No início do século XIX, de maneira um tanto clandestina, o tomismo começou a ser estudado em algumas cidades italianas, notadamente Piacenza e Nápoles. Apesar de trabalhado nesse âmbito restrito, chegou ao conhecimento de Joachim Pecci, que seria Arcebispo de Perugia e, em 1878, eleito Papa com o nome de Leão XIII.

A neoescolástica

Em 1879, Leão XIII lança sua segunda encíclica, Aeterni Patris, na qual propõe a filosofia de Tomás de Aquino como a resposta para os desafios lançados contra a doutrina católica pelas escolas de pensamento modernas. Esse acontecimento é considerado o começo do neotomismo, ou seja, a escola de pensamento que procurou estudar a obra de Tomás de Aquino, compreendê-la e aplicá-la às necessidades atuais.

O tomismo, até então marginalizado, torna-se, com a bênção papal, ao menos nominalmente, a filosofia predominante da Igreja Católica. Os escritos do filósofo passam a ser editados de maneira rigorosa e são estudados por vários teólogos e filósofos católicos.

Nesse primeiro momento, o neotomismo tem um caráter mais arqueológico, buscando compreender a doutrina de Tomás em continuidade com seus comentadores medievais, sem trazer muitas novidades. Destacam-se nessa fase os franceses Sertillanges e Garrigou-Lagrange, com sólidos trabalhos filosóficos e teológicos.

Contudo, mais importante ainda será a segunda geração neotomista, que procurará redescobrir o pensamento autêntico do mestre. Aparecem aqui as figuras de Étienne Gilson e de Cornelio Fabro, talvez os tomistas de maior relevo no século XX. Ambos sustentam que o núcleo da metafísica tomista é a noção de “ato de ser”, que seria uma novidade em relação à filosofia anterior a Tomás  de Aquino e que não teria sido bem compreendida pelos seus discípulos, que logo confundiram o “ato de ser” com o mero existir.

Esses temas metafísicos, ainda que apaixonantes, não são o objeto deste nosso estudo. Mas vale lembrar que a metafísica não é uma série de pensamentos obscuros sobre assuntos que não servem para nada. “Em que a metafísica vai me ajudar para fritar ovos, ou para ganhar dinheiro?” Talvez em nada. Mas ela explica a verdade que está por trás do ovo e do dinheiro, e também de nós mesmos. Se não há metafísica, não faz muito sentido fritar ovos, e muito menos ganhar dinheiro. Tudo seria uma grande ilusão, ou simplesmente matéria gerando matéria – afirmar isso já é fazer metafísica, mesmo que de baixa qualidade –, e a liberdade do homem seria um engodo.

A metafísica tomista, conforme estudada por Gilson e Fabro, representa um avanço em relação à aristotélica, e não uma mera continuidade. Essa percepção abriu caminho para outros tomistas importantes, como Josef Pieper – pese que não queria se definir como tomista, mas, enfim, na falta de uma palavra melhor… –, Ralph McInerny, Stephen Brock, John Wippel, Angel Luiz González, Leonardo Polo, Leo Elders, e um longo etc.

Infelizmente, ainda pouco se conhece desses filósofos na maior parte das nossas universidades, que tendem a valorizar exclusivamente o pensamento de tipo moderno e imanentista, em muitos casos ignorando a filosofia contemporânea inspirada na tradição antiga e medieval. Assim, perdem-se autênticos tesouros filosóficos, que trariam importantes contribuições ao debate atual de idéias.

Apesar disso, é visível o ressurgimento do interesse pelo pensamento clássico e medieval em várias partes do mundo. Nas primeiras décadas do século XX, os tomistas estavam praticamente restritos aos círculos católicos e, na maior parte das vezes, eclesiásticos. De maneira paulatina, filósofos leigos das universidades começaram a se dedicar a essa escola de pensamento e a produzir muito do que há de melhor nela. Isso se deve, em boa parte, ao labor de Gilson.

O pensamento de Tomás de Aquino vai adquirindo evidentes foros de respeitabilidade. Hoje, não é possível ignorar contribuições como as de John Finnis ou de Alasdair MacIntyre, autores profundamente influenciados pelo tomismo, o qual ganha força nos campos da ética, da política e da filosofia da ciência. Somando-se isso à sua presença na metafísica, na antropologia filosófica e na teologia, vemos que a obra de Tomás tem caráter universal e enciclopédico, abrangendo praticamente todos os domínios do saber humano, e com contribuições relevantes em cada um deles.

Renovar redescobrindo: a obra de Gilson

O papel de Étienne Gilson no fortalecimento e renovação do tomismo é excepcional. Aliás, não só do tomismo, mas de toda a filosofia medieval: as obras de Gilson sobre Santo Agostinho, Duns Escoto e São Boaventura permitiram que mais gente tomasse contato com esses importantes autores, que tanto têm a nos dizer. E não se pode esquecer a monumental A filosofia na idade média [1], uma referência fundamental no assunto.

Não se considerava primeiramente filósofo, mas um historiador da filosofia. Gilson não quis fazer uma obra original, mas sim verdadeira: enxergava no pensamento medieval tamanha riqueza, desconhecida da maior parte dos seus contemporâneos, que envidou seus melhores esforços em trazer à tona o que os antigos disseram, para que pudessem iluminar também a nossa época. Notamos aqui a humildade desse autor, que não buscou fundar uma espécie de gilsonismo, mas preferiu se ater à verdade.

Em uma página memorável, Gilson descreveu a atitude de Tomás, que também era a sua: “Tomás de Aquino disse coisas tão lhanamente verdadeiras que, da sua época até hoje, muito poucos foram capazes de esquecer-se de si mesmos o suficiente para aceitá-las. Há um problema ético na raiz das nossas dificuldades filosóficas; nós homens somos muito voltados a buscar a verdade, mas reticentes em aceitá-la. Não gostamos que a evidência racional nos encurrale, e inclusive quando a verdade está aí, na sua impessoal e imperiosa objetividade, continua de pé a nossa maior dificuldade: para mim, submeter-me a ela, apesar de não ser exclusivamente minha […]. Os maiores filósofos são aqueles que não titubeiam na presença da verdade, mas lhe dão as boas vindas com estas simples palavras: Sim, amém”.

Ah, a vaidade de ser “original” em filosofia… Quantos desastres intelectuais e vitais não surgiram dessa vã pretensão! Boa parte do pensamento moderno se explica pelo desejo de destruir o que fora feito antes e substituí-lo pelo que eu, o verdadeiro gênio, pensei. O meu sistema é melhor do que anterior, exatamente porque é meu. Essa praga é combatida por Gilson com seu saudável e – vamos usar a palavra, apesar de alguns a considerarem um palavrão – tradicional tomismo.

Tradicional, mais ou menos. Mais, porque Gilson propugnou o estudo direto dos textos de Tomás, evitando seus comentadores, que pulularam logo depois da morte do filósofo e, em parte, distorceram seu pensamento. O Cardeal Caetano, por exemplo, separou-se do mestre em pontos fundamentais, como a prova racional da imortalidade da alma e a distinção real entre ser e essência. Por sua vez, João de São Tomás, cujos trabalhos sobre lógica são atualmente bastante valorizados, tomou rumos não tomistas em importantes questões metafísicas.

Gilson percebeu o perigo de estudar a obra de Tomás pelos olhos desses comentadores; portanto, dirigiu-se diretamente aos textos do teólogo italiano, para perscrutar seu espírito e verdadeiro conteúdo. Nesse sentido, o tomismo do filósofo francês era tradicional, porque retornava às fontes mesmas da filosofia tomista.

Ao mesmo tempo, era menos tradicional, porque rompera com a tradição formada exatamente pelos comentadores de Tomás, que deram origem à escola do tomismo. Gilson deixará para trás o trabalho desses comentadores, ainda que reconhecendo o seu valor, e, como dissemos, proporá uma nova interpretação da filosofia do Doutor Angélico. Esta está na base de The unity of philosophical experience.

Uma história filosófica da filosofia

Esse livro é um apaixonante relato de experimentos que procuraram dirigir a filosofia de acordo com um método impróprio. O autor não apenas descreve esses processos, mas procura as causas da deterioração de cada um deles, propondo ao final um método filosófico que se veja livre das falhas que, repetidamente e em épocas bastante diversas, fizeram com que o pensamento descambasse no ceticismo.

A obra foi escrita originalmente em inglês e é o resultado de um ciclo de conferências que Gilson ministrou na Universidade de Harvard, na primeira metade do ano acadêmico de 1936-7. Sem ser um trabalho preso àquela época, é interessante lê-lo recordando que foi escrito pouco antes da Segunda Guerra Mundial, na qual ideologias fundadas no desenvolvimento do hegelianismo – o nazismo, o fascismo e o marxismo – levaram o mundo à atrocidade. Por então, esses monstros já mostravam suas garras, e um homem inteligente e atento como Gilson não podia deixar de ver neles o maldito fruto de graves erros filosóficos.

Um aspecto que chama a atenção é a pena fluente do autor. Gilson tem o dom da clareza; contudo, ao contrário de muitos pensadores gauleses, isso não é em detrimento da profundidade e rigor intelectual. Além disso, mantendo sempre o tom acadêmico, não é jamais frio ou desinteressante. Antes, prende o leitor no meio de discussões sobre a filosofia árabe medieval, o ocasionalismo de Malebranche, a formação do pensamento kantiano, as elucubrações espantosas de Comte, as explicações de Ockham sobre o conhecimento… Convenhamos, não é tarefa fácil, mas ele o conseguiu. Há um bom humor subjacente em tudo o que diz, e a leitura é sempre sugestiva.

Chama a atenção a erudição e domínio dos temas presentes no livro. Não há como negar que Gilson é um dos maiores – se não o maior! – historiador da filosofia medieval. Até aí, tudo bem. Contudo, seu discorrer sobre a obra de Descartes – que, curiosamente, foi a porta de entrada de Gilson no pensamento medieval, mas isso é outra história… –, de Malebranche, Locke e Hume; de Comte, de Kant, Hegel e Marx, são excelentes. O historiador francês captou o núcleo desses autores, com conhecimento das fontes primárias e dos principais comentadores.

Enfim, vemos na obra o trabalho de um especialista em filosofia medieval, adepto da visão filosófica e teológica de Tomás, que consegue examinar a fundo, porque estudou seriamente e de forma honesta, as principais correntes do pensamento moderno e contemporâneo. É o contrário de qualquer especialismo – como o daquele professor que só podia falar de O nascimento da tragédia, de Nietzche, porque era o tema do seu doutorado de vinte anos atrás –, bem como da superficialidade chutadora dos que conhecem a filosofia por manuais, compêndios e poucos livros mal lidos.

The Unity of Philosophical Experience foi dividido em quatro partes. As três primeiras tratam, respectivamente, do experimento medieval, do cartesiano e do moderno, e a quarta traz as conclusões do autor. Vejamos o que diz cada uma delas.

O experimento medieval, ou a confusão dos universais

Gilson começa sua explanação sobre a filosofia medieval citando a observação de que ela foi pouco mais do que uma tentativa obstinada de resolver um só problema: o dos universais, ou seja, dos conceitos e das idéias gerais. Como podemos explicar que pensemos por conceitos, que aplicamos a vários entes semelhantes – por exemplo, animal, que se pode predicar de um leão, de uma girafa, e do próprio homem –, mas que não existem por si mesmos em nosso mundo? Essa aplicação de um conceito geral a entes individuais tem algo de verdadeiro, ou é apenas uma economia de linguagem, ou mesmo uma ilusão? Em outras palavras: há alguma relação entre o nosso pensamento e a realidade?

A partir dessa questão – e que questão! –, Gilson explica a filosofia de Pedro Abelardo, célebre pelos seus amores por Heloísa, mas muito mais importante pelo seu pensamento. Segundo Gilson, Abelardo procurou resolver a questão dos universais, profundamente filosófica, com o método e os conceitos da ciência que conhecia, a lógica. Aliás, esta era a única ciência cultivada de verdade em sua época, e não estranha que a tenha empregado para o seu propósito de explicar o problema que atormentava os filósofos de então.

O caso de Abelardo é um excelente exemplo da presunção científica na filosofia, que vai se repetir nos outros experimentos descritos pelo filósofo francês. Porfírio, que escreveu uma famosa introdução às Categorias, de Aristóteles, reconhece que surge da lógica o problema dos universais, mas sabiamente afirma que não cabe a ela resolvê-lo, pois é um tema relativo aos filósofos, não aos lógicos. O grande Abelardo, por sua vez, não compartilhou a prudência do autor da Isagogee entrou de cabeça no problema filosófico dos gêneros e espécies.

A tragédia abelardiana está em que ele ignorava o que outros antes dele – especialmente Aristóteles – escreveram para explicar esse problema. Como escreve Gilson, em uma das centenas de frases lapidares e divertidas que se encontram no livro, “Abelardo achava-se nesse feliz estado de ignorância que com tanta facilidade faz com que um homem inteligente seja original. (…) Ao não ser nada mais do que um professor de Lógica, não havia nada nele de metafísico para o envergonhar de não ser mais do que lógico”. Essa falta de vergonha fez com que atravessasse tranquilamente a linha que divide a lógica da filosofia e da metafísica sem se dar conta disso, e o resultado foi um tropeço.

Abelardo sustentou que os conceitos com que pensamos não representam nenhuma realidade externa a nós mesmos. Contudo, se assim é, porque aplicamos a palavra “animal” corretamente a alguns entes, e não a empregamos com outros? Por que chamo “animal” ao elefante, ao macaco e ao papagaio, mas não ao quartzo, à hortênsia ou ao anjo? A resposta de Abelardo a essa pergunta nunca foi satisfatória, e ele mesmo foi honesto o suficiente para eliminar todas as pseudo-soluções que lhe podiam servir. Acabou afirmando que há algo de comum a todos entes dos quais predicamos um nome universal, mas esse algo comum não é uma essência, e sim um estado, uma condição. Era uma forma de ser, mas não uma coisa. O que isso significa exatamente, Abelardo não será capaz de explicar (aliás, parece impossível que o conseguisse…). Seu pensamento termina em um beco sem saída.

O logicismo será seguido por outro equívoco, o teologismo. Este consiste em aplicar à filosofia categorias puramente teológicas, o que termina por eliminar a natureza e a consistência das realidade criadas em favor da onipotência e grandeza de Deus. Como afirma Gilson, “por diversas que essas doutrinas (do teologismo) possam ser de acordo com as diferentes épocas, lugares e civilizações em que foram concebidas, parecem-se sempre, ao fim e ao cabo, em que todas se encontram intoxicadas por um determinado sentimento religioso a que chamarei, em favor da simplicidade, sentimento da Glória de Deus”.

São Boaventura, um dos maiores teólogos e místicos cristãos, foi um expoente dessa corrente. Demonstra-o o título de um dos seus escritos místicos: Sobre a redução das Artes à Teologia. A função da filosofia seria conhecer não as coisas, mas Deus através das coisas; seria assim reduzida a um departamento pouco importante da teologia. Contudo, para que a filosofia possa nos levar a Deus, precisa antes ser autêntica filosofia, o que não acontece na concepção do franciscano.

A teoria da iluminação divina no conhecimento, tão cara a Boaventura, se levada às últimas conseqüências, acaba negando o conhecimento natural: todo o conhecimento passaria a ser sobrenatural e uma dádiva de Deus. Também não existiria causalidade eficiente na ação das criaturas, porque Deus criou tudo desde o início do mundo, o que foi e o que ia ser, e a realidade simplesmente vai se desenvolvendo pela ação divina. O universo é inerte, sem força intrínseca, sendo manejado totalmente por Deus em cada momento.

O teologismo, entendido dessa forma, poderia levar, contra os desejos do sucessor de Francisco de Assis, a concluir que não há liberdade, porque tudo está determinado desde a criação. Essa era a postura de alguns teólogos árabes, que também foram, no âmbito da religião islâmica, partidários do teologismo. Os discípulos de Boaventura perceberam esse perigo e tentaram se afastar dele, sem muito êxito.

A terceira tentativa do experimento medieval foi a de Guilherme de Ockham, franciscano inglês que influenciou a teologia luterana. Considerava-se um aristotélico, mas suas conclusões destruíam tudo o que Aristóteles afirmou. Ao tratar do tema dos universais, Ockham procurou se afastar de qualquer resquício de realismo, que considerava ainda presente em Abelardo. Este seguia considerando haver um fundamento na realidade para dizer que todos os animais têm algo em comum. Já o filósofo inglês afirmará, de maneira radical, que tudo o que existe é individual; por isso, nada pode corresponder na realidade a nossas idéias universais.

Segundo explica Gilson, Ockham chegou a uma “posição pura”, e quando isso acontece, dá-se habitualmente uma revolução filosófica. Como nossas idéias não têm nenhuma relação com a realidade, podemos levá-las ao paroxismo. A partir da negação dos universais, o filósofo inglês reconstruirá toda a filosofia e a ciência sobre o individual. Para Ockham, qualquer explicação não contraditória é válida, já que Deus poderia fazer as coisas diferentes do que são em virtude da Sua onipotência. Por isso, os filósofos não devem perder tempo em especular sobre as causas hipotéticas das coisas atualmente existentes, pois no fundo são como são em função da vontade divina.

Antecipando Hume, Ockham destruirá também a causalidade. Porque empurrei uma bola, não posso por isso concluir que a causa do movimento dela foi a minha ação. Afinal, poderia ter havido outro resultado. O que existe é uma mera associação de idéias entre a minha ação e o movimento da bola, que não representa efetivamente que um foi a causa do outro. O conhecimento se torna algo vazio, sem relação com a realidade. Estão abertas as portas para o ceticismo.

De fato, Gilson termina de explicar o experimento medieval mostrando a sua queda no ceticismo, que é a recusa a filosofar, e não propriamente uma filosofia. As várias escolas medievais, que não se entendiam, propiciaram um clima de desconfiança da filosofia. Os pensadores do “outono da Idade Média” (a bela expressão de Huizinga…) querem salvar a religião cristã não na filosofia, mas propondo a simples leitura do Evangelho e dos Padres da Igreja, bem como a adesão a uma moralidade compartilhada com os autores pagãos – daí a fortuna do estoicismo nessa época. Não convinha mais filosofar para buscar entender os problemas profundos da existência humana e do universo.

Nicolau de Cusa e Petrarca seguiram essa linha e a tornaram popular. A douta ignorância tornou-se uma meta a ser atingida, e não um estado incompleto a ser vencido. Nas palavras de Gilson: “quando os escolásticos abandonaram toda esperança de dar resposta aos problemas filosóficos à luz da pura razão, cessou o brilhante e longo caminho da filosofia medieval”. Esse cansaço intelectual irá desembocar no mais famoso dos céticos, Montaigne.

Descartes e a matemática universal

O segundo experimento examinado por Gilson é o cartesiano. O homem não é um ser dubitativo, e por isso o ceticismo não dura muito tempo como atitude dominante. Surge habitualmente alguém que procura reconstruir tudo de cima a baixo. O remédio a Montaigne, cujos Ensaios foram publicados em 1580, foi oDiscurso do Método. Aliás, várias passagens desta obra são um eco ao escrito de Montaigne. Não se trata de uma mera briga entre franceses, mas do começo de uma nova era filosófica que se propõe enfrentar toda uma sucessão de erros, sendo ela mesma bastante equivocada. Ah, se os homens tivessem ouvido Tomás… Mas não o fizeram, e deu no que deu: da indigestão de Montaigne cairemos no porre de Descartes.

Afirma Gilson: “Montaigne foi e é ainda para muitos um mestre, mas a única coisa que se pode aprender dele é a arte de não aprender. Essa arte é muito importante e em nenhum lugar é aprendida melhor que nos Ensaios; o mau dosEnsaios é que não ensinam outra coisa”. No ponto! E Descartes procurará sair desse atoleiro através da matemática, que seria a única ciência que nos dá certezas evidentes e inatacáveis.

Não estranha que Descartes tenha partido da matemática, porque era um matemático genial. Em algumas horas, foi capaz de resolver uma série de problemas que há muito aguardavam resposta e fundou a geometria analítica. Nas palavras de Gilson: “Efetivamente, a filosofia de Descartes não é mais que um experimento temerariamente realizado para ver o que se torna o conhecimento humano quando se modela de acordo com a evidência matemática”.

A razão da postura cartesiana não é outra que o cansaço do ceticismo. Não há outro motivo para essa “matematização”, que não consegue justificar-se a si mesma. Mas Descartes estava convencido do que fazia, e julgou que, assim como fora capaz de unificar a álgebra e a geometria na geometria analítica, poderia unificar todas as ciências, que seriam no fundo a mesma ciência. Há algo de louco nisso tudo, mas não se pode negar a força dessa louca idéia. Uma grande ambição absurda, e por isso mesmo atraente, levada a cabo por um gênio: realmente, o cartesianismo tem poder de atração em uma época em que nenhuma outra filosofia se apresentava com solidez para enfrentá-lo.

Gilson disseca o pensamento de Descartes, que chegou a uma série de aporias. O célebre filósofo terminou separando a mente do corpo humano de tal forma que não foi possível para ele explicar como seriam verdadeiras as sensações que conhecemos a partir dos sentidos. O conhecimento humano fica então prejudicado, e Descartes solucionará esse problema dizendo que Deus, sendo bom, garante a veracidade daquilo que recebemos pelos sentidos.

Contudo, não demorou para que um discípulo de segunda geração, Berkeley, acabasse afirmando que não há coisas externas, mas apenas o nosso pensamento. Diz a lenda que essa afirmação matou Malebranche, discípulo de primeira geração de Descartes, que a discutiu com Berkeley no leito de morte; foi uma morte por metafísica – má metafísica, sem dúvida, e talvez por isso mesmo mais venenosa.

Locke foi outro autor que contradisse Descartes, sustentando que não há idéias inatas, as quais eram uma das bases do sistema cartesiano. Em pouco tempo, o pensamento do inglês se sobrepôs ao do francês na Inglaterra, e Voltaire – que nele percebeu um acesso ao materialismo, o que muito lhe interessava – levou-o à própria França, onde também acabou por triunfar. Em pouco tempo, Descartes passou de filósofo predominante e supremo a um derrotado; grandioso, sem dúvida, mas superado. Sorte dele que não viveu para ver sua derrocada, e morreu convencido que fizera todas as ciências progredirem extraordinariamente.

O fim do experimento cartesiano é Hume. De maneira espirituosa, Gilson reconhece nele um Montaigne melancólico, que confessou: “Estou… afligido e confundido pela desamparada solidão em que me deixa a minha filosofia”. Ao considerar os raciocínios sobre a causa e o efeito mera derivação do costume, Hume acaba destruindo a própria possibilidade de filosofar. Afinal, nada pode dizer sobre as coisas nem sobre o conhecimento. O fantasma de Ockham volta a aparecer com a sua navalha, assombrando a filosofia e deixando-a à mercê de novos pesadelos.

O experimento moderno: Kant, Hegel e Comte

Para Kant, Hume demonstrou que a metafísica estava morta. Com um começo desses, fica difícil fazer filosofia. Surpreendentemente, foi exatamente isso que Kant realizou, tomando como base o esquema da física de Newton, considerada então a verdade científica suprema.

A tentação de usar uma ciência como método para a filosofia volta a fazer sucumbir uma mente brilhante. Depois de Abelardo com a lógica, Boaventura com a teologia, Descartes com a matemática, surge Kant com os Principia na mão e uma filosofia na cabeça. Nas palavras do sábio de Koenisberg: “O verdadeiro método da Metafísica é fundamentalmente o mesmo que Newton introduziu na ciência natural e que tão excelentes resultados produziu nela”.

Aí está a grande limitação do fisicismo como método filosófico. A filosofia kantiana não poderia durar mais do que a física em que se baseava. Com essa base, formulou a sua Crítica da razão pura, que é um dos mais importantes livros sobre teoria do conhecimento, chegando à conclusão que efetivamente não conhecemos as coisas, mas apenas seus fenômenos. É uma ótima estrada que leva para o buraco do incognoscível.

Ao lado da razão pura, Kant construiu uma teoria da razão prática, que se fundava no dever. Através da moral, o homem poderia chegar a Deus, ainda que fosse impossível demonstrar a sua existência. A moralidade não podia ser justificada pela racionalidade, mas como é um fator inseparável da vida humana, justifica-se por si mesma. É a apoteose do dever, que obriga apenas pela sua força intrínseca.

Ao separar a racionalidade pura da prática, Kant jamais conseguiu unir de novo as duas. Criou estruturas inconciliáveis, mas ambas necessárias para solucionar problemas filosóficos. O homem estaria preso em um mundo de necessidade física no nível sensível e físico, mas, ao mesmo tempo, seria livre no âmbito inteligível e moral. Um homem são em uma camisa de força: panorama não muito animador. Além disso, o dever nada tem que ver com o prazer, e a virtude não pode ser agradável, mas simplesmente virtuosa. Um asceta de gelo é a meta kantiana.

O grande castigo de Kant foram os seus discípulos. Fichte e Schelling tentaram conciliar as duas Críticas; não foram aceitos pelo Mestre e acabaram brigando também entre si. O caos kantiano foi acertado por Hegel; com um acerto assim, parece melhor continuar no erro… Como disse o mesmo Hegel: “Só um homem poderia ter me entendido, e nem ele me entendeu”.

O filósofo alemão que culmina o idealismo considera que a verdade é a luta entre as verdades, as antinomias que combatem, dando origem a novas soluções, que por sua vez gerarão outras antinomias que serão resolvidas na luta. Diz Gilson: “Se a realização da Idéia é a marcha de Deus através do mundo, a rota do Deus de Hegel está semeada de ruínas”. A guerra entre filósofos e idéias é a lei. Não é à toa que essa filosofia descambou no fascismo e no marxismo, visões beligerantes e violentas da sociedade e da vida humana. Mais uma vez, o sonho da razão produziu monstros.

Outra faceta do experimento moderno é Comte, que contribuiu propondo uma filosofia fundada em outra ciência, a sociologia. O amor pela Humanidade deveria levar a que os cientistas e filósofos se concentrassem em estudar o que serviria para o progresso da mesma. Como era impossível fazer uma síntese objetiva de todos os conhecimentos, ficaríamos então com uma síntese subjetiva, do ponto de vista do homem e das suas necessidades sociais.

Sobre o projeto comteano, escreve Gilson: “A condenação inicial da Metafísica em nome da ciência, que estas filosofias consideram o único tipo de conhecimento racional, culmina invariavelmente na capitulação da própria ciência diante de algum elemento irracional”. No caso de Comte, esse elemento irracional seria a subordinação da ciência ao coração (?), isto é, ao amor pela Humanidade.

O pensador francês tem muito de abstruso, e algo de comovente. Percebeu que era preciso fundar uma religião para difundir suas idéias morais e o conhecimento positivo que advogava. Não se afastou do ridículo; antes, mergulhou nele até o fundo, para ser coerente e assim cumprir a sua missão. Isso não o justifica como filósofo, mas o torna o caso exemplar de onde leva a patologia filosófica assumida em toda a sua inteireza.

Gilson descreve a decadência do experimento moderno de modo tocante. Deu-se quando a sociedade afastou-se do “credo ocidental”, cujo traço mais fundamental é uma firme crença na eminente dignidade do homem. Seu segundo traço é a convicção definida de que a razão é a diferença específica do homem. Ambas características foram deixadas de lado, e o êxito de então do marxismo e do fascismo era a prova disso.

A terrível afirmação de Marx é o que sobra depois que as filosofias se digladiaram, matando com isso a verdade: “a história de todas as sociedades que até agora existiram é a história da luta de classes”. Estamos acostumados com essa afirmação, depois de a termos ouvido nos bancos escolares, muitas vezes como se fosse a suma sabedoria do pensamento ocidental. Mas ela é simplificadora, falsa e niilista. A história humana é muito mais do que isso, graças a Deus!

A constatação de Gilson de que o ceticismo moderno abriu as portas ao marxismo, que teve um enorme êxito entre os seus contemporâneos por ser o único dogmatismo que consideravam vivo, leva-o a sugerir uma saída para a filosofia, para que esta torne a ser relevante.

A metafísica como filosofia do ser: um remédio indispensável

Após ter nos levado pela mão da filosofia medieval até o pensamento moderno e contemporâneo, Étienne Gilson concluiu seu livro com algumas leis que podem ser inferidas a partir dos vários experimentos filosóficos que descreveu. São bastante interessantes, e serviriam de base para a renovação da metafísica.

A primeira é que a filosofia sempre enterra seus coveiros. Cada desaparição da filosofia é seguida regularmente pela sua ressurreição, com um novo dogmatismo a se apresentar para explicar a realidade. Isso acontece porque o homem tem uma autêntica necessidade de metafísica, que não é saciada nem pode ser elidida.

Chegamos assim à segunda lei: o homem é um animal metafísico por excelência. Sua própria estrutura de razão termina por exigir a metafísica, a explicação da realidade pelas primeiríssimas causas.

A terceira lei é que a Metafísica é o conhecimento ganho por uma razão naturalmente transcendente na busca dos princípios primeiros ou das causas primeiras do que é dado na experiência sensível. Esta última é importante, não pode ser desprezada, como propõem os vários idealismos; contudo, não explica toda a realidade, como consideraram os empirismos e materialismos de diversos matizes.

Por sua vez, a quarta conclusão é como a Metafísica aspira a transcender todo o conhecimento particular, nenhuma ciência particular é competente para solucionar os problemas metafísicos ou julgar as soluções metafísicas. De certo modo, esta é a lição especificamente demonstrada na obra, pois Gilson percebe nos vários experimentos filosóficos mal fadados exatamente o desrespeito a essa conclusão.

A última lei é que todos os fracassos da Metafísica devem atribuir-se ao fato de que se passou por alto ou se abusou do primeiro princípio do conhecimento humano, que para Gilson e o tomismo é o próprio ser ou, melhor ainda, o ente. Não é pelo pensamento que devemos começar a pensar; seria como se preocupar principalmente com a colher de pau na hora de mexer o doce no tacho. O ente é a meta do nosso conhecimento, e o pensamento e seus conceitos são antes de tudo instrumentos para o atingir.

As leis de Gilson levam não a um novo sistema de pensamento, mas sim a uma postura de abertura diante da realidade, semelhante à que tiveram os maiores metafísicos da história, isto é, Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino. Nosso pensamento jamais será capaz de esgotar a realidade, mas pode refleti-la de maneira sempre perfectível. Isso é uma lição de humildade e de verdadeira sabedoria.

Renato José de Moraes é advogado, mestre em direito e membro do IFE.


NOTAS:

[1] Trad. Eduardo Brandão (São Paulo, Martins Fontes, 1998).


 

Texto publicado originalmente na revista-livro Dicta&Contradicta, nº 4, Dez/2009.

 

ANEXO:

Obras de Étienne Gilson traduzidas em português do Brasil (lista atualizada em Outubro de 2014):

O espírito da filosofia medieval, Martins Fontes, 1ªed. em português por esta editora, 2006.

Heloísa e Abelardo, EdUSP, 1ªed. em português por esta editora, 2007.

Introdução ao estudo de Santo Agostinho, Paulus, 1ªed. em português por esta editora, 2007.

O Filósofo e a Teologia, Paulus, 1ªed. em português por esta editora, 2008.

Introdução às artes do belo, É Reazaliações, 1ªed. em português por esta editora, 2010.

Por que São Tomás criticou Santo Agostinho – Avicena e o ponto de partida de Duns Escoto, 1ªed. em português por esta editora, 2010.

A Filosofia na Idade Média, Martins Fontes, 3ªed. em português por esta editora, 2013.

 

Outras obras em francês e em inglês de Gilson pouco conhecidas, que não receberam tradução ainda (com tradução livre dos títulos para português):

Peinture et réalité (“Pintura e realidade”), Vrin, 1958,

La Paix de la sagesse (“A Paz e a sabedoria”), Aquinas, 1960.

Trois leçons sur le problème de l’existence de Dieu (“Três lições sobre o problema da existência de Deus”), Divinitas, 1961.

L’Être et Dieu (“O Ser e Deus”), Revue thomiste, 1962.

La société de masse et sa culture (“A sociedade de massa e sua cultura”), Vrin, 1967.

Linguistique et philosophie (“Linguística e Filosofia”), Vrin, 1969.

D’Aristote à Darwin et retour (“De Aristóteles a Darwin e retorno”), Vrin, 1971.

Le réalisme méthodique (“O realismo metódico”), Téqui, 1935.

Les Idées et les Lettres (“As Idéias e as Letras”), Vrin, 1932.

God and Philosophy (Deus e a Filosofia), Yale, University Press, 1941, 1969.

The Unity of Philosophical Experience (A Unidade da Experiência Filosófica), Scribner’s, 1937.

The Terrors of the Year Two Thousand (“Os Terrores do Ano de Dois Mil”), Toronto, St. Michael’s College, 1949.

A Inovação de Bernard Lonergan

Filosofia | 17/07/2014 | | IFE CAMPINAS

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Bernard Lonergan - Foto de http://francais.lonergan.org/Bernard Lonergan (1904-1984) foi, provavelmente, o mais importante filósofo do século XX. Antes de justificar esta afirmação, será útil constatar que tem seguidores em todom o mundo; que a sua obra principal Inteligência: um ensaio sobre o conhecimento humano, a ser publicada em Portugal, está editada em quatro das geolínguas; que existem mais de uma dezena de centros dedicados à sua obra; que a bibliografia sobre o seu pensamento alcança mais de mil monografias e artigos; e que por ano se realizam quase uma dezena de colóquios sobre ele.

No entanto, a esmagadora maioria das pessoas nunca ouviu falar de Bernard Lonergan. A maioria dos filósofos e teólogos apenas identifica um nome e uma obra. A maioria dos economistas, epistemólogos e cientistas sociais nem o nome identifica. Contudo, esse autor escreveu com preparação profunda sobre disciplinas tão diferentes como ética, economia, epistemologia e teologia. Também é verdade que um autor capaz de analisar com rigor assuntos tão díspares como o método de São Tomás, a psicologia freudiana, a teoria económica de Keynes, e as teorias de Newton, Einstein e Max Planck (com equações matemáticas como trufas raras para connoisseurs) parece ou um enciclopédico ou um paranóico convencido.

Sucede que, para o apreciar, é preciso ainda uma forte dose de realismo espiritual e de liberdade perante os poderes mundanos, condições hoje desfavorecidas nas universidades. E como revelam os debates sobre o seu pensamento, para ser atraído por Lonergan é preciso conhecer a tradição clássica e cristã e ter independência de espírito suficiente para elaborar pessoalmente os resultados.

Lonergan nasceu em 1904, em Ontário, no Canadá; o pai era engenheiro de ascendência irlandesa e a família da mãe era inglesa. Aos treze anos, trocou a casa pela Faculdade de Loyola, uma escola jesuíta em Montreal, e de lá entrou para o noviciado na cidade de Guelph.

Frederick Crowe, S.J., descreve os anos de aprendizagem de Lonergan nesse mundo anterior ao Concílio Vaticano II: havia “leituras sobre a vida de Cristo e dos santos, a Imitação de Cristo, sobre documentos jurídicos e espirituais jesuítas, o velho Afonso Rodriguez (1532-1617) – a prática da perfeição e das virtudes cristãs. Havia as instruções do mestre aos noviços […], as ‘exortações’ pregadas por austeros sacerdotes da comunidade, e assim por diante. Havia as penitências, a publicação das faltas – admitidas voluntariamente ou indicadas pelos companheiros em ágapes transbordantes -, e havia muita oração […], a mais lenta de todas as práticas a aprender”.

Era uma vida que ensinava a disciplina e o estudo sério, embora de modo um pouco rígido e restritivo; serão marcas do trabalho de Lonergan. Em 1926, foi para Inglaterra estudar filosofia, regressando ao Canadá para ensinar na sua velha escola de Montreal. De 1933 a 1937, licenciou-se em teologia em Roma. Não foi um aluno premiado, mas desenvolveu ambições intelectuais exemplificadas por uma carta de 1935 a um superior: “Consigo elaborar uma metafísica tomista da história que ofuscará Hegel e Marx, apesar da enorme influência deles nessa obra. Tenho já escrito um esboço, disso como de tudo o mais. Examina as leis objectivas e inevitáveis da economia, da psicologia (ambiente, tradição) e do progresso…, para encontrar a síntese superior destas leis no Corpo Místico”. Não escapará ao leitor que Hegel e Marx não eram leituras recomendadas para um jovem sacerdote em Roma e, ainda mais, na Itália fascista. Mas fica bem claro como ele era já audaz, capaz de pensar sem imprimatur. E também fica claro que o corpo místico de Cristo é, desde São Paulo, um dos conceitos mais integradores da teologia.

Os registros da Universidade Gregoriana em Roma mostram que, a 6 de dezembro de 1938, a dissertação de Lonergan intitulada O pensamento de São Tomás sobre a graça operativa foi aprovada para apresentação, sendo completada em 1940. Segundo as suas palavras, “…demorei anos até atingir a mente de São Tomás de Aquino” [1]. Até 1949, continuou a publicar artigos sobre a tradição tomista e, mais especificamente, sobre o processo de conhecimento, deslocando-se das perguntas teológicas sobre a graça para as questões filosóficas sobre a interioridade, isto é, como Deus se revela na consciência.

Após 1949, Lonergan redige Inteligência: Um estudo do conhecimento humano, publicado em 1957. O livro tem 875 páginas na edição definitiva, da Universidade de Toronto; são muitos os que confessam nunca o ter lido por inteiro e poucos o leram com plena compreensão. A escrita é laboriosa, com evidente peso das expressões do latim escolástico. Mas é, talvez, um dos únicos tratados filosóficos que integra o conhecimento humano tal como se apresentava em meados do século XX com uma soma e complexidade que ultrapassavam em muito as situações epistemológicas racionalizadas por Platão e Leibniz.

O escopo da obra é imenso: “A auto-apropriação da nossa autoconsciência intelectual e racional começa como teoria cognitiva, expande-se para uma metafísica e uma ética, e avança para uma concepção e uma afirmação de Deus, para ser finalmente confrontada com o problema do mal que exige a transformação da inteligência autoconfiante no intellectus quaerens fidem” [2].

Se tiver realmente cumprido estes objectivos, bem poderá dizer-se queInteligência foi a mais importante obra de filosofia do século XX. Aqui, apenas esboçarei cinco temas principais: as relações entre conhecimento e realidade, conhecimento científico e cosmologia, acção humana e ética, as questões de interpretação, e a relação entre natureza de Deus e filosofia.

Conhecimento e realidade

Sendo objectivo da obra a auto-apropriação do sujeito que se descobre no método transcendental subjacente a todos os tipos de discurso, Inteligênciaparece ser intelectualista. Mas, paradoxalmente, é um livro sobre o desejo, “o desejo irrestrito, imparcial e desinteressado de conhecer”. Conhecer não é o mais difícil: para isso consulta-se a internet, aprende-se uma ciência, freqüenta-se a universidade, escuta-se um conferencista. Difícil é saber de onde vem o desejo de conhecer e o que se passa na consciência quando conhecemos.

Lonergan integra os vários domínios do discurso mediante uma filosofia da consciência; o conhecimento procede segundo intelecções que são comuns às ciências exactas, às ciências humanas, à filosofia, à teologia filosófica e ao senso comum. A intelecção sucede quando alguém compreende e responde a uma questão suscitada por uma experiência. Não há regras para a intelecção. Pelo contrário: a intelecção é que origina as regras. Não se aprende com um método; os diversos métodos é que resultam dos actos de intelecção.

O princípio central desta teoria cognitiva é que se atinge o conhecimento pelo processo de experiência, entendimento e juízo. A experiência dá-nos peças soltas de informação. O entendimento capta uma unidade. Mas o conhecimento apenas fica completo com o acto humano de juízo que capta uma realidade como “virtualmente incondicionada”. Esta teoria cognitiva distingue entre acto e conteúdo, unidos por uma relação de intencionalidade. O visto é diferente do acto de ver, o pensado é diferente do acto de pensar, o feito é diferente do acto de fazer.

Se a correlação de conteúdos é do âmbito da ciência, a correlação dos actos interessa à teoria do conhecimento. Todo o conhecimento do virtualmente incondicionado baseia-se numa captação das condições do conhecido e do facto de que essas condições estão cumpridas. O conjunto destas condições é o que ocorre na consciência. Assim, no acto cognitivo existe um elemento superior ao conteúdo que o diferencia de ocorrências inconscientes. E o laço entre o condicionado e as condições reside na proposição “eu sou um sujeito cognoscente” – ou seja, uma consciência.

Ultrapassando a tendência natural para a extroversão, que situa a realidade como um conjunto de fenómenos no mundo exterior “agora lá fora”, o grande questionamento que conduz à experiência directa do ser começa pela atenção aos nossos próprios processos intelectuais. Com Lonergan, “o objectivo não é determinar uma lista das propriedades abstractas do conhecimento humano, mas ajudar o leitor a efectuar uma apropriação pessoal da estrutura concreta, dinâmica, imanente e recorrentemente operativa das suas próprias actividades cognitivas”. Por outras palavras: para pensarmos eficazmente, temos de tornar-nos cientes dos actos que modelam o modo como pensamos. É então que começamos a conhecer os nossos princípios e preconceitos, as nossas limitações e os nossos recursos.

Conhecimento científico e cosmologia

Se o senso comum trata das relações das coisas connosco, a ciência trata das relações inteligíveis das coisas entre si. O paradoxo bem resolvido dos métodos de investigação científica é que servem para conhecer o que ainda não se conhece e o êxito da ciência resulta de investigar correlações ainda não especificadas e funções ainda indeterminadas.

Nas estruturas heurísticas da ciência clássica – desenhadas desde Galileu e Newton – antecipa-se uma inteligibilidade adquirida por intelecção directa. A especificação obtém-se através de medidas tabeladas. As intelecções obtidas são apresentadas através de uma correlação geral , desejavelmente expressa numa função matemática, a qual, uma vez verificada, define um limite para o qual convergem as relações entre medidas futuras. Uma vez que os dados e as previsões convergem, as deduções tornam-se possíveis.

A ciência contemporânea criou novas estruturas heurísticas de tipo estatístico. As deduções são restritas ao curto prazo e as previsões limitam-se a indicar probabilidades. O método estatístico analisa um processo não-sistemático para o qual não existe uma intuição única abrangente. Uma conseqüência importante é que, enquanto o processo sistemático é monótono e reversível, o não-sistemático admite novidades.

Cabe à filosofia descrever as propriedades gerais de um universo a que se aplicam, simultaneamente, leis clássicas e estatísticas. Autores como Jacques Monod continuam a falar de acaso e necessidade como propriedades mais gerais desse universo. Bernard Lonergan propõe uma cosmologia diferente. As leis clássicas indicam o que acontece, uma vez reunidas condições necessárias; as leis estatísticas indicam a freqüência com que se espera que essas condições se reúnam. A investigação clássica preocupa-se com o que se passaria, mantendo-se constantes outros factores. A investigação estatística, com agregados de acontecimentos, ou ocorrências. Sejam movimentos de moléculas, partículas nucleares, saldos de natalidade ou fluxos financeiros, cada acontecimento isolado obedece a leis clássicas e a probabilidades de ocorrência – aquilo em que as freqüências efectivas divergem não-sistematicamente. O universo não funciona segundo concepções necessitaristas nem segundo a teoria do caos, ambas deterministas. Dado tempo e espaço suficientes, é mesmo possível e altamente provável que se realizem as possibilidades mais remotas desde o Big Bang. Parece ser deste género a emergência do fenómeno humano.

Esta cosmologia da “probabilidade emergente” contrasta com visões anteriores. A ciência antiga, de tipo aristotélico, distinguiu entre o necessário e o contingente, o que acontece sempre e o que acontece ocasionalmente. Hoje dir-se-ia que os “movimentos necessários do céu” são esquemas ou processos de recorrência que implicam outros esquemas mais complexos de recorrência. A ciência clássica do tipo de Galileu criou a explicação científica de como os elementos se relacionam, mas a “falácia do concreto mal colocado”, segundo Whitehead, amarrava essas leis a supostos “comportamentos de partículas materiais imaginadas”. O resultado é o mecanicismo.

A partir de Darwin, a probabilidade começa a ser utilizada como princípio explicativo porque uma planta ou um animal podem entrar num certo processo de evolução. Tal como a variação casual é uma instância da probabilidade de emergência, assim a selecção natural é um caso de probabilidade de sobrevivência. Com a teoria quântica, ficou estabelecido que também as partículas sub-atómicas podem saltar de órbita para órbita em torno do núcleo e a ciência do século XX generalizou esta presença do não-sistemático.

Uma conseqüência desta cosmologia é o reconhecimento da existência de estratos de ser no cosmos a que correspondem sucessivos níveis de pesquisa. As relações assistemáticas no plano físico apontam para pluralidades sistematizáveis num nível químico, sem violar as leis do domínio sub-atómico; o nível biológico permite sistematizar as ocorrências erráticas no plano químico; o nível psíquico de sensação e conhecimento introduz uma ordem explicativa face aos resíduos biológicos; o nível racional de intelecção introduz a reflexão, a deliberação e a escolha.

Conseguindo as ciências descobrir eventos e esquemas de recorrência segundo os quais as coisas acontecem, cabe à filosofia interrogar-se sobre “o que uma coisa é”. A resposta de Lonergan é que uma coisa implica uma unidade e identidade entre os dados dos sentidos de cuja existência nos apercebemos através de juízos. As coisas são extensas no espaço, permanentes no tempo, sujeitas a mudança, possuem propriedades e estão sujeitas a leis e à necessidade. Muitas vezes nem são objecto directo de experiência. Uma coisa não é um corpo, “agora aí fora”, como sugere a extroversão, mas sim um todo inteligível.

A noção de coisa permite introduzir o conceito de desenvolvimento. O desenvolvimento não é o que sucede, segundo as leis clássicas, nem o mais provável, segundo as leis estatísticas. É o modo como uma coisa muda e se adapta com o tempo. As seqüências em que as correlações e as regularidades se modificam são estudadas pelo método genético. Por exemplo, as espécies biológicas são séries de soluções para a sistematização dos agregados coincidentes dos processos químicos. O ponto essencial do método genético é acertar no operador, que explica a inteligibilidade da mudança de uma fase para outra.

Em resumo, quanto às ciências: o método clássico antecipa um sistema verificado pelos fenómenos; o método estatístico antecipa que esse sistema não é constante, e o método genético antecipa a seqüência mutável de sistemas. Para inteligir as relações entre os vários estágios dos sistemas criados pelo homem é necessário o método dialéctico, usado pelas ciências humanas.

A acção humana e a ética

Pode afirmar-se que, em Inteligência, Lonergan está simultaneamente a escrever uma Crítica da razão prática e uma Crítica da razão pura. Na esteira dos grandes realistas filosóficos, considera que os fenómenos que experimentamos e a ordem inteligível em que se inserem são aspectos do mundo objectivo e real. Os idealismos críticos e fenomenológicos atribuem à mente humana essa ordem inteligível e negam que ela exista na realidade. Bernard Lonergan demonstra que a imposição de quadros conceptuais à experiência através de actos de intelecção exige o ser, ou o “virtualmente incondicionado”, porque o ser é, simplesmente, “tudo o que há para conhecer”

O objecto do conhecimento é o mundo tal como ele é, o “universo da probabilidade emergente” que se pode desenvolver segundo vias diferentes. Nele, o homem realiza escolhas para que o possível se torne mais provável e, oportunamente, actual. Como opera com juízos de valor, deliberações e escolhas, constitui um horizonte de sentido mais amplo que os actos de conhecimento. As deliberações e o seu desejo constitutivo do bem – e do mal – são mais primordiais que o desejo de conhecer a verdade. Por isso Lonergan convida o sujeito humano a apropriar-se do que significa ser um agente, “um sujeito que escolhe”, e desloca a sua teoria da intelecção do exercício intelectual para o exercício existencial. O sujeito e a comunidade humana são convidados a apropriar-se do que significa agir e do que significa escolher.

Como agir? Que fazer? O que devo escolher? Como demonstrou Gadamer, as respostas às canónicas questões kantianas dependem das tradições do senso comum, filtradas pela experiência pessoal e histórica. Na acção humana, os sentimentos sobre pessoas e situações são a chave da decisão. Que é um sentimento? Como emerge? Que papel tem? Como se relacionam com os actos de intelecção e juízo? Em Método na Teologia, Lonergan designa os sentimentos como a fonte “da massa, do momento, da movimentação e do poder” [3] da consciência intencional e considera prioritária a compreensão desses sentimentos para orientar as nossas escolhas e acções num mundo por vezes absurdo e, infelizmente, perverso.

Na acção humana, a variedade de estratos do universo impõe diversos padrões de experiência. No padrão biológico de experiência, as relações inteligíveis ligam seqüências de sensações, memórias, imagens e movimentos, para realizar os fins de intussuscepção, reprodução e preservação. O padrão estético liberta o homem dos impulsos biológicos e das limitações práticas. Com o padrão intelectual, a memória mobiliza situações que comprovam ou invalidam os juízos e a imaginação antecipa possibilidades que verificam ou falsificam uma teoria. Mediante o padrão dramático, o animal social descobre os papéis que representa na sociedade.

As leis clássicas e estatísticas combinam-se para gerar recorrências nas acções humanas que funcionam segundo um esquema em que se X, então Y, e se X ocorre, então Y recorre. A população cresce, o capital acelera a produção, os governantes geram decisões políticas. Mas atenção: a acção humana é livre. A população pode decair. A expansão tecnológica pode parar. A economia pode regredir. A sociedade pode perder coesão, as crises serem mal geridas e originarem uma revolução. Por tudo isto, a probabilidade emergente combina-se com a liberdade na vida humana. Os processos sociais e políticos são inteligíveis porque podem ser entendidos como trabalho da probabilidade emergente, e são inteligentes porque são o fruto de decisão. O que é mais provável num país não o é noutro, porque a diferença não resulta de dados materiais externos, mas de um conjunto de intelecções disponíveis e operantes na sociedade. O senso comum prático consiste, tal como a ciência, numa vasta acumulação de intelecções, mas não coloca questões de ordem teórica porquanto se limita a soluções imediatas. É uma especialização da inteligência no particular e no concreto, mas sofre pressões deformadoras, desde os idola fori às “escotoses” e neuroses da inteligência pessoal.

O problema da interpretação

Uma quarta unidade temática desta filosofia é o “conhecido desconhecido”. Encontramos mais questões que respostas, pelo que o desconhecido aparecerá estranho e misterioso em oposição ao familiar e previsível. É o domínio do mistério e do mito de que se ocupam a história da cultura e a religião, e que exige uma teoria da interpretação para compreender os símbolos, ou seja a significação das palavras e acções, em qualquer tempo e lugar, e como expressão das fases da evolução do conhecimento humano de si e do mundo [4].

Tal como a personalidade se forma mediante juízos de valor e decisões, é das relações pessoais criadas por juízos de valor depositados em símbolos que se formam as comunidades, muito mais do que de uma base genética comum. O homem é um “animal simbólico” e criador de histórias, que são a estrutura em que os significados emergem, com enredo, personagens, começo e fim. O enredo fixa o relacionamento dos personagens entre si, e o relacionamento dos personagens modifica o enredo. A nossa vida está permeada pelas histórias contadas por sinais. E o que nasce como história contada à volta da lareira, na praça pública ou nas universidades, acaba por transmitir o horizonte da existência e tornar o homem um actor responsável no drama da humanidade.

O desejo de conhecer enraíza-se no mistério da existência. À medida que progride a tarefa de auto-apropriação, torna-se evidente que o mistério é decisivo para explorar novos horizontes e formular novas perguntas. Este horizonte, de tipo agostiniano e pascaliano, ganhou relevo nas obras posteriores a Inteligência em que Lonergan reconheceu o conceito de amor. Afinal, a grande razão de responder ao convite de Inteligência é que o convite é irresistível porque somos atraídos pelo que o mistério desperta em nós.

Os “exercícios intelectuais para cinco dedos” que seriam a obra Inteligência só são possíveis se nos “apaixonarmos” por essa conversão intelectual. Esta paixão implica um novo patamar de intelecção, a ser acrescentado à experiência, entendimento, reflexão e responsabilidade. Os sentimentos transformam-se em elemento crucial do projecto lonerganiano para trazer unidade às disciplinas do saber humano.

Todas as narrativas humanas se enraízam em uma experiência concreta. Se essa experiência se perdeu, a história narrada transforma-se em mito inquestionável e mudo. Mas se a experiência é transmitida por uma comunidade de sentimentos, ou “coração”, a história passa a ser sagrada e eterna. Assim, o “coração” é ponto de partida para a compreensão correcta da existência num patamar superior de intelecção. Caso se deixe absorver pelo subjectivo, perde o sentido do mistério. Mas se for suficientemente atento, inteligente, razoável e responsável, integra a existência. Somente um ser humano que ama pode apreciar as possibilidades inerentes ao acto da compreensão, porque o acto de intelecção não fundamenta só o conhecimento: também fundamenta a escolha do mundo mediante as decisões e as acções de todos.

Deus e a filosofia

Uma quinta unidade abrange temas como a natureza de Deus, argumentos sobre a Sua existência, o problema prático do mal, a compreensão em busca da fé, e fé e Humanismo.

A partir do desejo ilimitado de conhecer, a consciência humana ascende à concepção de Deus e confronta-se com o problema da permanência do mal. Este só pode ser enfrentado mediante uma solução que implica a graça divina e que respeite a liberdade do homem. Deste modo, a inteligência que confia em si mesma transforma-se em intelectus quaerens fidem.

Bernard Lonergan não admite argumentos ontológicos nem cosmológicos sobre a existência de Deus. Nem a concepção coerente de Deus nem a existência do mundo implicam que Ele exista. “Deus existe” é uma frase que só pode ser transformada em proposição analítica mediante definições apropriadas de “Deus” e “existência”. Mas, para isso, é preciso reconhecer que os termos definidos não ocorrem na experiência interna nem na externa, e sim no termo de uma reflexão crítica sobre a unidade da experiência do divino.

O ser humano está em permanente estado de desenvolvimento. Se somos independentes e transcendemos o empírico, a fortiori o faria um acto ilimitado de compreensão que entenderia tudo em todos e que seria imaterial, inextenso e intemporal, ou seja, Deus. A existência de Deus não se verifica pela afirmação racional a priori nem pela experiência a posteriori mas pela conclusão de um argumento que é o seguinte: se o real é completamente inteligível, Deus existe; ora o real o é; logo Deus existe. Se aplicados os três tipos de causas externas – eficiente, final e exemplar – que respondem às questões “quê”, “para que fim” e “segundo que modelo”, à afirmação “o universo existe”, genericamente encontraríamos um primeiro agente, um fim definitivo e um exemplar primordial do universo.

No termo de uma análise poderosa que ocupa os capítulos 19 e 20 deInteligência, aqui não resumida, concebemos que um ser sem resíduo de facto, e capaz de tudo explicar, teria que ser um acto ilimitado de entendimento que compreendesse todos os mundos possíveis. Para mostrar que existe um entendimento ilimitado cuja vontade funda o mundo como ser livre, eterno e criador e mantenedor do tudo que existe, Lonergan vai eliminado possibilidades. Tem que ser um só; não pode ser necessário; não pode ser arbitrário. Mas o que é inteligível sem ser necessário nem arbitrário é o que decorre livremente da escolha de uma consciência racional. Assim, Deus é inextenso e intemporal. É criador porque faz emergir o mundo a partir do nada. É pessoal porque é consciência de si racional. É causa do mundo porque o mundo depende dele. Em resumo: a existência de Deus e de tudo o que existe é inteligível; e isso é possível porque existe o acto ilimitado de inteligibilidade.

Admitindo que há criação e que a vontade divina é eficaz, parece que Deus é responsável pelo males do mundo que podem ser físicos, morais e radicais. Os males físicos decorrem das insuficiências de uma ordem do mundo que resulta da probabilidade emergente generalizada. O mal moral consiste na falha da liberdade em escolher as acções boas e em rejeitar as censuráveis. Os males físicos e morais seriam o mal radical se o critério definitivo do bem e do mal fossem o prazer e a dor. Mas se o critério do bem é a inteligibilidade, o mal radical resulta dos actos humanos que Deus não quer, mas que não proíbe. A única justificação da permissão divina do mal radical é que possibilitou criar o homem como um ser que possui consciência e liberdade. Ainda assim, o mal radical é incompreensível porque resulta de deficiência na inteligibilidade das acções de um ser inteligente e racional. Na sua origem, existe um “mistério da iniqüidade”.

A articulação do problema do mal fornece uma estrutura heurística que permite descrever as características gerais da solução do problema. Uma vez alcançada a estrutura da solução, podemos apelar para os factos:

1) a solução será uma só, uma vez que existe um só Deus, uma ordem mundana e um indivíduo, e um só problema social do mal;

2) a solução será universalmente acessível e permanente, porque o problema se estende a todos os tempos e classes;

3) a solução dá continuidade à ordem já existente no universo.

A realização da solução exige uma meditação sobre a história e a participação em rituais que controlam emoções e purgam tendências agressivas. A solução comporta verdades reveladas que os homens nunca descobririam por si, ou que não compreenderiam. Os que souberem da existência da solução têm o dever de anunciar a boa nova e de a propagar. A tendência emergente da solução e realização da solução está escrita nos factos históricos do povo de Israel e culmina nas palavras e actos de Jesus Cristo.

Um humanismo consistente deve conter a solução do problema do mal e não poderá ser um humanismo revoltado contra o divino e que condene a experiência do mistério como um mito e que exalte a razão contra a fé. Um verdadeiro humanismo reconhece que a razão está orientada para Deus mas reconhece as limitações dos que professam a fé. Se o homem seguir o desejo irrestrito de conhecer, encontrará verdades sobre Deus e descobrirá a única solução contra o mal na graça sobrenatural que respeita a liberdade humana. O papel da filosofia é criticar os absurdos sociais e a carapaça protectora dos mitos e propagar estas verdades libertadoras. Assim termina a a magna obra de Bernard Lonergan.

Apreciação geral

A razão e a modernidade triunfantes têm sido criticadas pelas mais diversas correntes filosóficas que realçaram a finitude do ser humano e a necessidade de contextualização do conhecimento e da normatividade racionalistas. Essas críticas surgem na “nova ciência” de Giambattista Vico e na crítica de Hegel à filosofia moral de Kant; nas objecções de Dilthey à filosofia hegeliana da história; nos antropólogos Evans-Pritchard e Malinowski; na noção husserliana de Lebenswelt; no conceito analítico do “fundo” em Searle; nos “jogos de linguagem” de Wittgenstein; no princípio do conhecimento segundo “paradigmas” de Kuhn; na épistème de Michel Foucault; no “universo simbólico” de P. Berger e N. Luckmann. E Gadamer criticou o racionalismo do iluminismo, o “preconceito contra os preconceitos”.

Em meados do século XX, no eixo filosófico franco-alemão, este reconhecimento das insuficiências da modernidade gerou, ou degenerou, numa atitude de relativismo e cepticismo. Esse “pensamento débil” pós-moderno de Lyotard, Vattimo e Derrida anuncia a impossibilidade de uma matriz epistemológica universal, apela para interpretações de tipo nietzscheano e induz uma cultura fragmentária com perda do sentido de comunidade. O mesmo diagnóstico surge na teoria crítica da escola de Frankfurt, com Jürgen Habermas e Karl-Otto Appel. A cultura universitária norte-americana ameaçada do que Harold Bloom chamou de “clausura” acolheu estas sugestões europeias como o fim do sonho do que Rorty chamou “a medida universal” [5].

Tal como outros grandes realistas espirituais do século XX, Bernard Lonergan segue um caminho oposto ao do relativismo e liga a razão às experiências espirituais. A consciência humana orienta-se para a transcendência mas parte sempre de uma determinada orientação afectiva. Enquanto pré-reflexivo, o homem conhece antes de avaliar o que conhece. Escolhe, antes de avaliar o que escolhe. E como o mundo existe a partir das escolhas e acções do sujeito; como o que sabemos é o resultado de um misto de acção e inacção; como o que se escolhe é o que se julga ser valioso; e como o que se julga ser valioso é uma função do desenvolvimento, o que está em jogo é o valor e predomínio das grandes narrativas e das histórias que disputam o sentido da existência humana, com suas escolhas e valores.

Cabe à filosofia superar as narrativas dominantes da nossa época – “fim da história”, “choque das civilizações”, “luta pela sobrevivência”, “governo dos mais fortes”, “paz pelo comércio” – com as verdadeiras histórias de salvação que aceitam a “comunidade do espírito” e que deveriam ser instrumentos de redenção social.

Com base nesta concepção, podemos identificar cinco grandes orientações de Lonergan – que ele gostosamente chamaria de “cosmópolis” ou “perspectiva universal” – para os desafios do pensamento no início do século XXI:

a) O pensamento crítico é bem-vindo, mas sem aprisionar a história nas malhas da razão. Paul Ricoeur fala de uma aporia entre a reabilitação gadameriana da tradição com o fim do “preconceito contra o preconceito” e a defesa habermasiana de uma cultura emancipadora da razão. Lonergan supera essa aporia ao suprimir a contradição entre a tradição e a crítica.

Se a tradição, como Alasdair MacIntyre confirma, é a interpretação em curso do significado do passado, a crítica “não está inerentemente fora dos limites da tradição, a menos que a tradição seja essencialmente inautêntica” [6]. A hermenêutica do ser dotado de história exige a tradição como condição de pensamento crítico, porque boa parte do nosso conhecimento assenta na crença [7]. O pensamento crítico é necessário e possível, mas tal como não precisamos de captar todos os factos do universo e suas interconexões para realizar um juízo virtualmente incondicionado sobre um facto particular, também não necessitamos de compreender a totalidade da tradição para julgar um erro particular [8].

b) A cosmópolis deve combater a “tirania dos factos” induzida pelo imediatismo do senso comum, pelas irracionalidades das ideologias e pelo “pensamento único”. A filosofia deve combater todas estas visões fragmentárias e empobrecidas, tal como as ciências, a historiografia, a arte e a vida prática confirmam a possibilidade de uma existência autêntica [9].

A arte tem um papel decisivo porque pressente novas possibilidades da vida humana, ao introduzir imaginativamente novas intelecções e juízos de valor no fluxo da experiência. Essas visões alternativas desafiam as visões limitadas. Através do humor e da sátira, a arte denuncia os absurdos sociais e assim, torna-se um elemento chave para restabelecer a inteligibilidade e a saúde mental na cosmópolis [10].

c) A perspectiva universal convida à cooperação metódica, em que a teoria não se opõe à prática. É preciso cultura teórica para captar os desenvolvimentos a longo prazo, negligenciados pelo pragmatismo; e é preciso inteligência prática para aplicar as intelecções da cultura [11]. Como essa colaboração se estabelece ao nível da atitude metódica e não de uma teoria metafísica, mantém um carácter aberto e dinâmico [12].

As artes também cooperam na exploração de facetas diferentes das possibilidades humanas. A escultura é uma realização visual do espaço interior do sentimento. A arquitectura fornece eixos de referência para a comunidade. Se a poesia lírica expressa os modos e disposições existenciais da pessoa, a epopeia e o drama narram o destino de um grupo ou de um povo. A pintura é uma libertação de potencialidades, um assomo de energia que nos transporta além do espaço imediato e explora possibilidades de vida. A música representa uma forma não espacial que corresponde ao modo como os sentimentos se multiplicam e mudam, como na dureé pure de Bergson [13].

d) A educação deve assentar na tensão criadora entre tradição e crítica. A pedagogia deve incentivar a apropriação dos procedimentos da intelecção – ser atento, inteligente, racional e responsável -, e o sistema educativo deve ter condições para que a apropriação tenha êxito. A educação superior deve aprofundar o diálogo com os livros clássicos [14]. Deve alimentar a visão a longo prazo, e a aprendizagem desinteressada. A educação para as humanidades deve ser compatibilizada com o ensino técnico, profissional, e especializado.

e) A abertura à transcendência deve partir do desejo de saber de modo ilimitado até alcançar a presença sagrada que cura, renova, e sustenta essa orientação. A abertura não reside nos tradicionalistas, que se sujeitam às autoridades mas podem ser crentes inautênticos; nem nos pensadores independentes, que forjam novas tradições. Reside, antes, na fidelidade às normas da investigação – ser atento, inteligente, racional, responsável e amar a sabedoria -, respeitadas pelas minorias criadoras que criam a tradição, pelas autoridades que a desenvolvem e pelas maiorias que a praticam. Parte da pessoa individual enraíza-se nas comunidades de pertença que reconhecem o primado do espírito sobre o mundo.

Conclusão

A filosofia de Lonergan integra numa “perspectiva móvel” a pluralidade das intelecções que resultam da relação entre o discurso teórico e a práxis humana. Ao compreender a racionalidade de uma perspectiva não determinista nem essencialista, apela à auto-compreensão do indivíduo como ponto de partida da sabedoria. Lonergan sabe que não está a fazer a sua filosofia em cidades cujo horizonte físico é pontuado por castelos e catedrais, mas na cidade contemporânea com o skyline dominado por edifícios comerciais, bancos e escritórios, sem divindade aparente. Por isso o seu apelo não se identifica com a panóplia exterior de qualquer religião e credo, mas menos ainda se conforma com o ressentimento e a “escotose” de uma cultura puramente secular.

É espantoso verificar como essa proposta nasceu de um jesuíta, um brilhante professor da Universidade Gregoriana com todo o peso da tradição católica, a pedir que cada um de nós pense por si mesmo; e que nenhum dogma nos salva se não for “auto-apropriado” ou assumido. Nos bastidores do Vaticano II, onde o seu conceito de “desenvolvimento” foi muito referido, Bernard Lonergan era um teólogo fora do comum. Embora nunca tenha endossado a “ética de situação” nem a cristologia de Teilhard de Chardin, quase afirmava que a melhor validação da ética não é a doutrina mas o senso comum, ratificado pela meditação cristã. Nele existem ecos de existencialistas como Emanuel Lévinas e Thomas Merton.

Esta filosofia provou ser muito libertadora. Quem, tão a sério como Sócrates, defende que devemos prestar atenção à nossa própria experiência de pensar, e nos deixa extrair as nossas próprias conclusões, torna-se muito apelativo. Pede-nos para sermos científicos e adoptar o método transcendental como meio de analisar o pensamento; e pede-nos para sermos filosóficos e reflectir de acordo com o imperativo “sê tu próprio!” A “liberdade de espírito” que defendia é também o “espírito de liberdade” da sua obra. Por isso, os seus seguidores são algo místicos e rebeldes. De algum modo, são individualistas que, paradoxalmente, escolheram seguir um guru. O que se explica com uma fórmula lonerganiana que bem poderia ser a epígrafe de toda a sua filosofia:“O problema do conhecimento com que se confronta o ser humano já não é só uma preocupação individual inspirada por um sábio da Antigüidade. Tomou as dimensões de uma crise social e é lícito ver nele o desafio existencial do século XX”.

Mendo Castro Henriques é filósofo político e professor da Universidade Católica de Lisboa. É o autor de As coerências de Fernando Pessoa (1985) e A Filosofia Civil de Eric Voegelin (1992), além de ser o coordenador do projeto de tradução deIntelecção: um ensaio sobre o conhecimento humano, de Bernard Lonergan, a ser publicado em Portugal neste ano.

 


 NOTAS

 [1] Insight, “Epílogo”, pág. 769.

[2] Ibid.

[3] Method in Theology, New York: Herder and Herder, 1972, pág. 31.

[4] Insight, págs. 554-571.

[5] Allan Bloom, The Closing of the American Mind, New York¨Simon & Schuster, 1987

[6] Paul Ricoeur, “Ethics and Culture: Habermas and Gadamer in Dialogue”,Philosophy Today 17 (1973): 153-165; Alasdair MacIntyre, After Virtue: A Study in Moral Theory, Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1984, 2a. ed., cap. 15.

[7] Sobre a cosmópolis e a consciência, Insight, págs. 263-64; sobre autenticidade e inautenticidade, Method in Theology, págs. 110 e 252.

[8] Insight, dúvida universal, pág. 737; opinião, págs. 725-28; juízo de erro, págs. 366-71, 736; crítica do erro, págs. 197-98, 311-12, 314-16, 736.

[9] Sobre o conhecimento especializado, Method in Theology, caps. 5-10. Sobre enviesamentos do senso comum, Insight, págs. 250-67; absurdo social, págs. 255-57, 259, 262; testemunho de auto-transcendência, págs. 264-65.

[10] Sobre arte, Insight, págs. 208-9, Method in Theology, págs. 61-62; Topics on Education, vol. 10 de Collected Works, pág. 211, e Joseph Fitzpatrick, “Lonergan and poetry”, New Blackfriars 59 (1978), págs. 441-50, 517-26. Sobre humor e sátira, Insight, 647-49.

[11] Análise teórica, Insight, págs. 252-53, 255, 258-61, 265-66; comunicação prática, págs. 266, 585-87; e Method in Theology, págs. 78-79.

[12] Insight, cap. 7, págs. 415-21; Method in Theology, págs. XI, 6, 81-83, 93-96

[13] Sobre escultura, Topics on Education, págs. 225-26; arquitectura, págs. 226-27; poesia, págs. 228 -32; pintura, págs. 223-25; música, págs. 227-28.

 [14] Method in Theology, págs. 161-2

— TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA DICTA&CONTRADICTA, Nº 1, 2007. DISPONÍVEL [ONLINE] EM http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-1/a-inovacao-de-bernard-lonergan/