Precisamos falar de feto

Opinião Pública | 26/11/2014 | | IFE CAMPINAS

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A discussão sobre o aborto sempre é capaz de  despertar o apetite irascível que existe dentro de nós, qualquer que seja a opinião adotada, seja em favor autonomia da vontade da mulher (pro choice) ou do direito à vida do feto (pro life). Entretanto, jamais pensei que esse mesmo debate fosse apto a excitar o poeta que também habita o nosso ser. Uma advogada disse-me, enquanto despachava comigo, ser favorável ao aborto livre, porque “só existe uma vida quando existe um nome”.

Compreendo bem a metáfora poética: o feto converte-se em vida apenas quando somos capazes de projetar uma identidade nele: quando o feto deixa de ser feto e passa a ser João ou Maria, isto é, quando nosso João ou Maria passam a ser desejados. Até lá, nessa “lógica poética”, enquanto o feto é um ser inominado, ele pode ser “despedido” sem justa causa.

Enquanto ouvia os argumentos da advogada num silêncio que mais me ensurdecia, contemplei as vantagens de uma legislação civil que consagrasse a afirmação poética de nossa causídica. O nome do novo ser estaria sujeito à uma condição futura e incerta: os pais evitariam dar nome ao filho até uns 15 anos (leia-se: anos e não meses) e aguardariam a conformação da personalidade desse novo ser.

Se ele fosse um adolescente precocemente maduro, teria direito a um nome e, assim, a lei reconheceria uma espécie de validade onomástica com efeitos retroativos à data de seu nascimento. Contudo, se ele fosse um adolescente médio, caracterizado pelos maus modos e pelos hábitos de higiene inexistentes, seria sempre possível despachá-lo para o mundo dos mortos. E por que não? Afinal, fica difícil projetar uma identidade recíproca com alguém que mastiga de boca aberta, renuncia diariamente ao estudo ou ao trabalho, tem mais palavrões que palavras no repertório comunicativo e troca de sabonete duas vezes ao ano.

Se um feto só passa a ser considerado uma vida quando somos capazes de conceber uma relação vital para ele e com ele, a própria noção de início da vida deixa de repousar nas mãos da embriologia (fecundação) e passa a ser opção de cada um. Ainda estamos no nível do debate da gravidez “desejada ou indesejada”, mas não descarto a extensão dessa discussão para as fases da infância ou da adolescência “desejada ou indesejada”, a julgar pelo coerente raciocínio da verve poética de nossa advogada.

Então, quando “#precisamosfalardeaborto” precisamos ir muito além dessa relação onomástica, um tanto pobre, porque só se refere unilateralmente à mulher, como se o feto não existisse ou fosse um dado irrelevante: “#precisamosfalardefeto”. Quando o feto entra nessa equação teórica, a verdade não corre o risco de ser subjugada pelas veleidades centrífugas e pelos desejos arbitrários que alimentam essa relação onomástica. Ou melhor, duas verdades: a verdade indicativa da dignidade, valor e finalidade do bem da vida humana e a verdade imperativa das exigências de respeito que decorrem da primeira verdade.

Quando “#precisamosfalardeaborto” e se “esquece” de que “#precisamosfalardefeto”, acaba-se por mascarar o debate sobre o aborto com toneladas de retórica política, feminista, criminal ou sanitária, com o claro intuito de, como resultado dessa equação social, provocar a liberalização total do aborto, em razão do alto grau específico dado à variável da relação onomástica. Uma variável que, além de ser mal graduada nessa sentença social, ainda ignora as evidências incontestáveis da embriologia humana em prol de uma “privatização” da noção do início da vida humana.

E sempre com o risco de estar a serviço da morte indistinta de um ser irrepetível, porque, já que o debate sobre o aborto é capaz de fazer brotar o poeta que está adormecido em nossa alma, “toda vez que morre uma vida, um universo único é destruído”. Por isso, se alguém lhe disser “#precisamosfalardeaborto”, responda que “#precisamosfalardefeto”. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, mestre em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).