Demoramos para compreender que os resultados de nossas ações podem afetar não só a cada um de nós, mas, a partir de uma certa idade, começam a atingir os outros. Um de meus filhos, em fase pré-adolescente, ainda tem o hábito de inventar estórias mirabolantes para se safar de situações incômodas. A última envolveu um livro do Júlio Verne e uma involuntária participação da bibliotecária da escola.
Como ando cansado de ouvir seus contos extraordinários, nossa conversa foi da “terra à lua” em menos de “vinte mil léguas submarinas”. Mas na melhor “retórica” Che Guevara: endureci, sem jamais perder a ternura, muito embora, na prática revolucionária, a teoria costume ser outra.
Detalhes familiares à parte, corremos o risco de crescer e continuar pensando que nosso agir individual afeta somente o nosso universo particular. Salvo para um eremita, a maioria de nossas ações ecoa na sociedade. Em maior ou menor intensidade.
Em seu oitavo ano de vida, a Emenda Constitucional 66/10, que eliminou uma série de trâmites legais para a realização do divórcio, assemelha-se a um desses contos extraordinários de meu filho: sob a justificativa utilitarista da maior felicidade do maior número, hoje, é mais fácil dissolver o vínculo conjugal que tirar o título de eleitor.
Então, as pessoas embarcam impensadamente nessa canoa furada, estimuladas pela suposta felicidade que a tal emenda proporcionaria aos interessados. Nossas escolhas privadas têm custos públicos. Ainda mais quando o descarte conjugal vira uma realidade de proporções epidêmicas, sobretudo nas classes econômicas mais injustiçadas economicamente, onde tenho que dividir as migalhas que vão corresponder aos filhos, como pensão decorrente de um divórcio feito de afogadilho pelos pais.
A trivialização do divórcio, efeito da citada emenda, tem um preço. Qual o preço social de uma família desestruturada pelo divórcio? Como espectador privilegiado desse cenário caótico, em cada sentença de divórcio, não vejo tanta felicidade assim. Visualizo, com extrema clareza, a “infelicidade social” que se oculta por detrás da “felicidade” individual, além dos componentes do alto preço que pagamos por isso.
Ei-los: auxílio estatal para as famílias com dificuldade orçamentária, feminização da pobreza proporcionada pelo crescimento das mães solteiras, perda de autoestima nos envolvidos, sensação de desamparo institucional, ausência paterna, incremento da alienação parental, marginalidade social, dependência de álcool ou drogas, delinquência juvenil, baixo resultado acadêmico, abandono escolar, redução da população economicamente ativa, incapacidade de pais interagir com filhos, traumas psicológicos na prole, distorções afetivas e pouco estímulo ao desenvolvimento de uma maturidade social no seio familiar.
Diante da envergadura nefasta desses efeitos, conclui-se facilmente que a vida conjugal não se resume a uma questão de escolha particular. Considerando os custos públicos do divórcio, que variam do impacto econômico ao planejamento de políticas públicas, seria perfeitamente legítimo que o Estado estimulasse legalmente mecanismos de estabilidade da relação familiar, entre aos quais, certamente, a EC 66/10 não é o melhor exemplo, porque a faculdade legal ali exposta não acarreta a realização de um mero acordo privado de vontades, mas de uma escolha que pode ser vital para a sociedade.
Não há perigo de melhora. A conta vai chegar. Mais cedo ou mais tarde. Se para meu aventureiro filho foi o custo, ao que parece, de uma viagem sem escala da “terra à lua”, para nossa sociedade, o custo é outro, porque a viagem é mais longa e com destino incerto. Tudo em nome de um critério de felicidade individualista e de uma visão libertária da sociedade.
Bem ao gosto da convicção de que o homem alcançou uma posição onipotente, a ponto de tornar irrelevante boa parte das saudáveis limitações ao seu agir social, as quais sempre afiançaram um consenso mínimo de valores necessário à perenidade de uma sociedade. Renunciamos ao necessário em prol do supérfluo. Ou, melhor dizendo, foi-nos dado o supérfluo e esquecemos o necessário.
André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.
Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 17/10/2018, Página A-2, Opinião.