Convergência na divergência

Opinião Pública | 03/05/2017 | | IFE CAMPINAS

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Há tempos, ando meio farto da deterioração da liberdade de expressão no mundo universitário. Formas disfarçadas de censura, silêncio obsequioso, avisos de conteúdo (“trigger warnings”), espaços seguros (“safe spaces”) e uma série de expedientes autoritários que, no fundo, apontam para uma séria crise do pensamento, pois as autoridades acadêmicas passaram a definir para todos os estudantes a “única pauta correta” na reflexão das questões sociais que nos assolam.

Essa postura é alimentada pela ausência de um pendor volitivo para a busca racional da verdade, a qual não é inimiga da tolerância, mas, pelo contrário, sua aliada. Esse quadro fático ganha contornos de realidade marcante na cena universitária americana.

Recentemente, um conhecido conservador homossexual foi impedido de realizar uma conferência numa destacada instituição contra essa versão reducionista de feminismo, porque as estudantes feminazis promoveram uma violenta baderna generalizada no local momentos antes.

Colhemos aquilo que plantamos. Desde as últimas décadas do século passado, muitas universidades americanas começaram a predicar o relativismo como o melhor antídoto frente à intolerância. Evidente que, em curto espaço de tempo, a hierarquia de valores virou de cabeça para baixo. Alan Bloom, em sua famosa obra “The closing of american mind” (1989), diagnosticou esse problema: quando a relativismo transforma-se no centro daquela hierarquia, a verdade é despachada para a periferia.

O efeito prático da absolutização do relativismo foi, no campo das questões sociais, o nivelamento de todos os pontos de vista e de estilos de vida. Afinal, como já não mais existiriam critérios objetivos para discernir quem merece o quê, ninguém teria direito a criticar quem fosse ou pensasse diferente. E, se o fizesse, seria um intolerante.

Então, pavimentou-se a via do discurso politicamente correto. Muitas universidades aprovaram códigos de linguagem que estabeleceram aquilo que, a seu juízo, representaria o modo concreto de pensar e de se expressar sobre uma série de assuntos quentes, como raça, sexo, moda, casamento, religião e sociedade de classes.

Ao invés de estimularem o pensamento crítico dos alunos para que aprendessem por si mesmos a prática da tolerância, as autoridades acadêmicas, como já dito, resolveram dizer o que presta e o que não presta. Se fosse progressista, prestaria. Se fosse conservador, reacionário ou tradicional, não.

E, para que seus dóceis alunos, cujos cérebros contentaram-se em não mais que coordenar suas atividades sensitivas, motoras e fisiológicas, restassem bem protegidos de qualquer vulnerabilidade intelectual imprestável, seria preciso criar todos aqueles expedientes autoritários já citados. Assim, esses pobres coitados não se sentiriam incomodados e nem ofendidos pelas opiniões ou contrapontos divergentes. Só se esqueceram de distruibuir mamadeiras e fraldas nesse dispensável exercício de assistencialismo intelectual.

Bem ao contrário dessa cartilha paternalista, a sociedade, como, de resto, a reflexão sobre seus problemas, é algo construído por todos mediante a prática das virtudes da humildade intelectual, da abertura mental ao outro e, sobretudo, do amor à verdade. Quando vividas, tais excelências nos dispõem a escutar com atenção e respeito àqueles que discrepam daquilo em que acreditamos.

A busca da verdade não tem porque cerrar nossos ouvidos para nossos adversos na arena do debate social. Mill, um dia, ensinou-nos que reconhecer a possibilidade de que alguém possa estar no erro é razão suficiente para escutá-lo e levá-lo a sério e não somente tolerar de má vontade os pontos de vista discordantes ou chocantes. E, para quem se julga estar certo, essa atitude de escuta serve para aprofundar sua compreensão da verdade e melhorar sua capacidade de defendê-la.

A disposição de tomar a sério as pessoas das quais não concordamos – muito além da indiferença relativista – é justamente o que nos previne contra o dogmatismo e a bovinidade de pensamento, tão tóxicos para a saúde de nosso mundo acadêmico quanto para o bom funcionamento de nossa sociedade. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 03/05/2017, Página A-2, Opinião.