Vida curta, arte longa

Opinião Pública | 04/05/2016 | | IFE CAMPINAS

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“Os pensamentos são livres”, diz uma popular música do cancionário alemão. Durante o III Reich, foi proscrita das manifestações populares. Mas a ordem de seu banimento, própria de um regime totalitário, somente conduziu a cantá-la com mais entusiasmo na clandestinidade ou, ao menos, por dentro, no próprio coração, a saber, naquele recôndito mais íntimo da alma, onde as ordens legais não têm qualquer efeito e os outros não têm espaço.

Somos livres para pensar por conta própria. Contudo, fazemo-lo de verdade? Ou preferimos repetir os editoriais de periódicos ou revistas, as visões de programas de televisão ou de rádio, as opiniões de blogueiros e de redes sociais ou mesmo de nossos amigos mais influentes? Hoje, na maioria dos países, praticamente não há mais uma autoridade constituída para ditar os pensamentos ou para censurar aquilo que “não convém” para a sociedade.

Entretanto, por outro lado, a dita autoridade cambiou seu modo de agir: não se vale tanto mais da coerção, somente de uma branda persuasão. Fez-se anônima, invisível e, não raro, disfarça-se de normalidade ou de opinião pública. Não pede nada mais do que fazer o que todos fazem. Bovinamente. Em tempos assim, pulsa mais forte nossa necessidade de discernir e assinalar. Em suma, pensar.

Pensar é, sem dúvida, uma grande coisa, mas, muito antes, é uma exigência da natureza humana, porque cada homem é, de certo modo, um filósofo e possui concepções filosóficas a partir das quais orienta sua vida. Todos somos filósofos, ainda que muitos não se deem conta disso: um professor de matemática, uma doméstica, um taxista, um ministro, um campesino, um artista, um advogado e um juiz. Afinal, já dizia Aristóteles, todos os seres humanos naturalmente desejam o conhecimento.

Evidentemente, não somos como os filósofos de profissão, mas pertencemos ao que comumente é chamado de filosofia espontânea e, assim, a filosofia constitui, substancialmente, um tipo de saber com o qual se procura dar respostas às questões mais relevantes da existência vital.

Desde aquelas absolutamente típicas, como “quem sou eu?”, “de onde venho?”, “para onde vou?”, até outras mais incitantes, tais como o sentido da dor e do belo, a natureza e os limites da liberdade, a missão e o alcance do amor, a distinção entre o bem e o mal ou entre o lícito e o honesto, a essência da morte ou a existência da miséria e da vida ultraterrena.

Sob esse ângulo, todos filosofamos, enquanto buscamos na vida mais que o mero e maçante cotidiano. Nesse momento, as respostas fáceis ou habituais não nos bastam. Sentimos uma necessidade interior de ir além e, nessa circunstância, emerge o talante metafísico do ser humano.

Ousaria ainda pressagiar que, para muitos, sobretudo os mais jovens, as respostas mais convencionais do atual estágio civilizatório, pautado pelo consumismo, hedonismo e utilitarismo de uma “sociedade de mercado”, são insuficientes para muitos dos assuntos que tocam mais imediatamente no fluir do dia-a-dia.

Então, esses espíritos inconformados, exercitando um sadio espírito crítico, tentam ir além de tais respostas e mesmo das expectativas que reinam no ambiente. Não só passam a se comportar como filósofos, todavia, descobrem, com efeito, a partir desse momento existencial, um grande eixo de potencial formativo da filosofia, porque esta pretende dar respostas veritativas mais definitivas possíveis às questões que se lhe proponham e, antes, estabelecer perguntas de máximo alcance. Uma questão trivial assume foros filosóficos na medida em que os requerimentos e soluções são mais incisivos e esclarecedores.

Todavia, a filosofia não é o único conhecimento humano, embora seja o mais fecundo deles. Na verdade, o conhecimento humano é inexaurível, enquanto a vida é finita. Os horizontes do saber dilatam-se: ars longa vita brevis, o famoso adágio latino traduzido no título, retrata nossa impotência em pretender abarcar o conhecimento total da realidade, até porque a história ensina-nos que o próprio conhecimento renova-se e reinventa-se.

Durante séculos, a filosofia e, ao cabo, o pensar, faz notar que sua pretensão tem sido a de ser “amor ao saber”. Creio que, mais profundamente, a filosofia deveria ser o “saber do amor”. Dessa forma, passa a exprimir um profundo anseio existencial do ser humano, o amor que, potencializado pelos influxos desse saber, abre as portas para a verdade inesgotável que nos rodeia. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 4/5/2016, Página A-2, opinião