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A vitalidade de velhos papéis

Opinião Pública | 02/08/2017 | | IFE CAMPINAS

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Papéis costumam despertar todo o nosso zelo e admiração. Neles registram-se histórias magníficas e a contabilidade diária de uma empresa. Por vezes, também provocam nosso ódio e repúdio e até inventamos a palavra burocracia para maldizê-los. Mas a verdade é que sobre os papéis se constrói a nossa civilização inteira e deles se pode extrair lágrimas por uma lembrança, risos por uma boa notícia, constituir direitos e obrigações, narrar a experiência inteira de um povo, de geração em geração ou transmitir o encantamento de um artista. É o papel que atesta nosso nascimento e nossa morte e alguém poderia objetar, com razão, a frugalidade de umas meras folhas de papéis.

Assim estava eu, separando pilhas de papéis velhos, que pertenceram ao meu falecido pai. Alguns deles guardados por exigência das leis, pois é certo que o homem se vai, a natureza resolve com simplicidade seu ciclo, mas há obrigações civis que permanecem longo tempo entremeadas, até que se possa obter um ponto final. Outros guardados por afeição e, quem sabe, por medo. De algum modo, aquelas gavetas no armário, cheias de papéis, converteram-se numa espécie de memorial. É evidente que tenho guardado comigo outras tantas lembranças dele e agora mesmo posso me lembrar de uma predileta coleção de cachimbos, para não falar dos grandes edifícios que construiu como engenheiro. Mas entre tantas heranças, certamente de maior valor, permaneceu, por todos esses anos, este conjunto memorável de gavetas cheias de papéis.

O que há neles? Nada além do registro trivial do dia-a-dia de uma vida comum: anotações, arquivos contábeis, agendas, notas fiscais, diplomas, projetos, documentos diversos. Nenhuma fotografia, nenhuma carta particular, nenhum fato extraordinário. Apenas o acúmulo casual das funções ordinárias de uma vida, com uma meticulosa organização, em pastas cuidadosamente catalogadas e com a peculiaridade de conter a sua grafia pessoal. No entanto, é justamente dessa casualidade tão ordinária, absolutamente trivial, que brota uma inusitada força. Essa pequena soma de fatos comuns que, mais dos que os grandes momentos, são vestígios da nossa verdadeira história.

Por isso, a lata de lixo a frente amedronta e cada papel rasgado ameaça nos levar juntos, nesta arte sutil de separar, de geração em geração, dentre as coisas antigas, aquilo que não nos serve mais e aquilo que, não obstante a idade, vale justamente por ser tão velho. Dispensam-se os papéis que registram aquilo que incorporamos e que já é nosso e aquilo que a prova do tempo fez simplesmente esquecer, sem risco de nos perdermos. Pois seria assustador ter de nos inventarmos a partir do nada. Absolutamente, não viemos do nada. O mundo caminha adiante, mas a vida e a história são um fio contínuo, que muitas vezes temos de percorrer para encontrar a nossa própria identidade.

Por isso, todo modismo novidadeiro tão típico da nossa época, essa obsessão pelo novo que tanto nos entorpece e engana, é tão irrazoável, quanto ingênua. Nenhuma arte é mais urgente do que aquela de recosturar os tecidos rompidos, refazer os laços esquecidos, retraçar as antigas rotas que nos ligam, como a uma grande família, aos nossos antepassados. É preciso dar voz aos nossos mortos se queremos encontrar um caminho seguro para seguir, como gente, como família, como sociedade, como país.

O verdadeiro novo, que encanta e mira o futuro, apenas virá se puder encontrar este fio, este alicerce firme sobre o qual se assentar. O alicerce trivial da vida cotidiana e presente, dos verdadeiros valores, das experiências provadas pelo tempo. Sem sombra de idéias fantásticas e fanáticas, sem a miragem das boas intenções levianas, sem a artimanha das engenharias sociais do partido da vez no poder. A gaveta de papéis velhos do meu pai é um refúgio de sanidade, onde se intercruzam passado, presente e futuro e de onde extraio essa pequena contribuição, quase uma esperança, às assombrosas desventuras desses nossos tempos caóticos.

João Marcelo Sarkis, analista jurídico, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas. (joaosarkis@gmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular​, edição 02/07/2017, Página A-2, Opinião.