Das nove às cinco


Não é regra, mas muitas das economias avançadas, como Alemanha, Holanda e Noruega, têm, na pauta de debate, a tarefa de conciliação entre trabalho e outras dimensões humanas, sobretudo a família. Entendo. A experiência história ensina que, na medida em que uma economia desenvolve-se, trabalham-se menos horas, porque sobe a produtividade por hora trabalhada. Então, aquela tarefa torna-se mais viável e, assim, a atividade laboral deixa de absorver todas as energias diárias de uma pessoa.

Já no Vale do Silício, donde poderíamos esperar o mesmo, parece que, na duração da jornada de trabalho, a moda ainda é seguir o modelo da primeira revolução industrial: uma jornada interminável de trabalho. Como foi estampado numa camiseta muito popular nas empresas start-up, “9 to 5 is for the weak”. O que em outros países é uma aspiração, ali, na Califórnia, é para os fracos, para aqueles que não aspiram triunfar ou para os trabalhadores candidatos ao seguro-desemprego.

Em outras palavras, é preciso sacrificar tudo no altar do trabalho. Família, férias, hobbies, amizades e até o ócio (no sentido grego da expressão, por favor). Dessa maneira, ficará demonstrado que o sujeito é um trabalhador comprometido com a empresa, pois sua jornada laborativa só termina quando acaba. Muitos chamam isso de “cultura da empresa”, o que, na prática, não passa de pressão psicológica ou assédio moral, como no caso do Jeff Bezos, que parece ter um certo apreço por hábitos laborais que asfixiam a vida de seus empregados.

O engrandecimento contemporâneo da dimensão laboral decorre da conjunção íntima de dois fatores: o enaltecimento teórico do poder transformador do trabalho, preconizado paradigmaticamente por Descartes, e a verificação efetiva desse mesmo poder, encarnado, ao passo dos séculos, num progressivo e efetivo domínio sobre a natureza.

Vivemos no auge dessa conjunção e, hoje, o trabalho é consagrado como elemento estruturador de toda a civilização ocidental. A nobreza e o status que dele derivam adquirem cada vez mais importância e, como efeito, passam a desentranhar os campos de sua natureza íntima e de sua índole profundamente pessoal.

Nesses campos, podemos proporcionar bens ou serviços necessários e úteis, transformar a natureza em seu benefício, desenvolver nossos talentos naturais, aperfeiçoar uma série de virtudes, servir aos demais e, em coopereção com eles, agir em prol do bem comum. Sob esse ângulo, o trabalho toma um lugar tão central na vida humana, a ponto de ser quase inconcebível uma vida sem trabalho. Como diz Camus, sem trabalho, toda a vida apodrece, mas quando o trabalho é anódino, a vida se asfixia e morre.

É preciso trabalhar duro para se conseguir um lugar ao sol. Contudo, viver para trabalhar – e não trabalhar para viver – acaba por nos conduzir para uma espécie de cegueira para as realidades mais propriamente humanas, aquelas justamente ligadas às dimensões do espírito humano, provocada por um radical ofuscamento que o resplendor deslumbrante do poder transformador do trabalho produz em cada um de nós. O trabalho deixa de ser um valor-útil e vira um valor-fim.

A conversão de um valor-útil num valor-fim, no dizer de Morente, é um erro ou uma aberração estimativa. A mutação do meio em fim acarreta os funestos efeitos já preconizados por Tomás de Aquino, segundo o qual, se aquilo que é para um meio, busca-se como um fim, desfaz-se e destrói-se a ordem da natureza.

Aplicada essa advertência ao trabalho humano, podemos declarar que, quando o trabalho é convertido no objetivo supremo em relação ao qual o homem subordina toda sua atividade e toda sua existência, desvirtuam-se tanto a natureza do trabalho, quanto a natureza do ser humano.

Podemos nos entregar à aventura de transformação das coisas materiais pelo trabalho, mas devemos fazê-lo em busca do aspecto transcendente que corresponda às nossas exigências interiores mais profundas. Quando o homem não é reduzido à uma versão unidimensional de sua realidade, de fato, o trabalho liberta.

Quanto a mim, convidaria os jovens do Vale do Silício a trabalhar intensamente das nove às cinco e, a partir das cinco, a trabalhar o espírito. Não sei se aceitariam. Afinal, enfrentar nossos demônios, depois de um dia de labor, não é para os fracos. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 01/11/2017, Página A-2, Opinião.




Curso IFE/ISPPR: Critical Reflections on Work and The Good Life


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Em parceria com o ISPPR (Cambridge/UK), o IFE São Paulo está organizando o curso “Critical Reflections on Work and The Good Life”. Inscreva-se agora! Vagas limitadas! http://bit.ly/criticalreflections




Meu trabalho, minha vida?


Conversava, depois de uma correição-geral ordinária em nossa vara, com nosso ilustre corregedor quando, depois de elogiado por ele sobre o desempenho do cartório, pôs-se a dizer se eu não poderia ”fazer mais um pouco”, já que as metas do CNJ haviam sido batidas a contento. Respondi que, por mais louvável que fosse a sugestão, iria refletir zelosamente, porque tinha sérios problemas “epistemológicos” em aceitá-la: as tais metas viraram uma espécie de fetiche e, sobretudo, meu trabalho nunca foi minha vida.

Graças a Hegel e a Marx, o mundo do trabalho sofreu um grande impacto. A mudança inicial teve lugar no fato de que o homem, ao invés de sentir-se num mundo estável, começou a pensar que suas bases estavam sempre mudando: por evolução da técnica, os bens que construiu, configuradores de seu mundo, começaram a ser substituídos por outros melhores. E, de lá para cá, numa velocidade cada vez maior, ainda que tal fenômeno já existisse, mas sem que fosse sensível no espaço de uma vida inteira.

Essa capacidade de melhoramento técnico dos bens perdura até hoje. A durabilidade de um produto já não é uma qualidade desejada, já que seria um obstáculo à renovação. O mundo continua sendo moldado por processos tecnológicos que nos proporcionam outros objetos, que praticamente ficam obsoletos enquanto os novos estão sendo elaborados: basta lembrar do meu primeiro celular e compará-lo com o atual.

Não questiono as múltiplas vantagens que a técnica tem proporcionado à vida. Todavia, tornamo-nos adoradores do trabalho produtivo, mesmo que, às vezes, ele seja o portador de novos medos que invadem o homem ante as potenciais capacidades destrutivas ou manipuladoras da técnica nele embutida.

Quando o trabalho produtivo eleva-se à condição de configurador de uma sociedade, a pergunta é elementar: uma realidade forjada exclusivamente por esse tipo de trabalho é uma realidade verdadeiramente humana? O louvor desenfreado ao trabalho não pode levar-nos a uma nova realidade que se volte contra o próprio homem, preso nessa laboriosidade sem descanso e sem contemplação junto a alguma transcendência?

Há muitos que creem ser sua vida seu trabalho, porque é ele tão intenso e decisivo que preenche todas suas aspirações. Uma espécie de droga altamente eficiente para a autoestima. Nessa toada, seremos contaminados por uma mentalidade laborativa que acabará por nos conduzir à extenuação por iniciativa própria.

Uma sociedade que vive de produtividade laboral – e, por consequência, de resultados – é uma comunidade de exploração sem dominação, porque envolve uma voluntária submissão a hábitos laborais que asfixiam a vida. E, por se tratar de uma servidão colocada sob signo da liberdade, é de uma eficácia tremenda em termos de resultados. Até encararmos o fracasso e nos responsabilizarmos por isso.

Por outro lado, um trabalho que se transforma em meio de busca de sentido existencial leva, mais cedo ou mais tarde, à instrumentalização de uns sobre os outros. Arendt criticava esse utilitarismo quando assinalava que, no moderno processo de trabalho, os resultados de alguém são julgados por outro alguém em termos de conveniência para o fim proposto e para nada mais. Qual é a utilidade da utilidade, então? Perguntava nossa filósofa, concluindo, numa tacada genial, que a utilidade, estabelecida como significado, gera significação.

A primazia do trabalho produtivo na consideração da ideia de sociedade acaba por reduzir a sociedade humana a uma mera organização laboral, onde a convivência é articulada, artificialmente, de maneira que as pessoas possam convergir suas faculdades apenas no labor e para sempre produzir mais e melhor.

Seria uma espécie de visão antropológica mecanicista que faz, da política, uma técnica e, da sociedade, um edifício, no qual cada um de seus elementos é alheio ao conjunto, estando integrados em razão de fatores extrínsecos somente. Um edifício assentado sobre o erro de considerar o homem somente um ser destinado à produtividade laborativa e, logo, a constantemente ser convencido a “fazer mais pouco”.

Um edifício sem qualquer ponto de apoio sólido o suficiente para ser reformado em suas bases: um problema que nem Arquimedes resolveria. Quanto a mim, sigo a trabalhar para viver. E não o contrário. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 16/9/2015, Página A-2-Opinião




Uma vida comum: o encanto de uma rotina iluminada, por Pablo González Blasco


Still Life. (2013). 92 min. Diretor: Uberto Pasolini . Eddie Marsan, Joanne Froggatt.

Still life     Uma vida comum. Esse é o título que nos oferece a tradução brasileira. Correto, resume o contexto, mas não chega a ser tão desafiante como o original: Still Life, natureza morta. Esse sim é preciso, audaz, impactante. Igual a temática, a interpretação – quase um solo extraordinário do protagonista- e os detalhes nas tomadas da câmara. Nada sobra, nada falta. Um quadro perfeitamente encaixado, silencioso e gritante, instigador. Uma verdadeira natureza morta pintada, para maior requinte, por um diretor italiano transplantado na Inglaterra. Uma bela mistura que cristaliza num filme singular e intrigante.

A estética merece comentários, muitos, e sem dúvida de mais categoria do que estes. Mas não é o propósito destas linhas. Mais do que descrever o quadro, o nosso é relatar o que o quadro nos provoca. E, isso sim, origina uma enxurrada de reflexões. Tive muitas quando o vi, vieram muitas mais depois –aquele efeito retardado próprio dos filmes de categoria-, e ampliaram-se quando coloquei a fita como base de um cine-debate com universitários. Ninguém tinha assistido o filme ainda –nos dias de hoje um verdadeiro recorde- e eu sentia a necessidade de observar as reações, os comentários, de espectadores variados para ampliar um universo de percepções que, desde o início, suspeitei ser de grande riqueza.

Still life - movie 2     Eddie Marsan é o ator monumental que dá vida ao protagonista, John May. Um funcionário público de um distrito londrinense que gasta seus dias –somam já muitos anos- buscando possíveis parentes daqueles que morrem sozinhos. E, naturalmente, ocupa-se de executar o que a lei prescreve sobre o sepultamento desses cidadãos. A tarefa em si é rotineira, cinzenta, uma estrita disposição municipal ao alcance de qualquer burocrata. A diferença –enorme- é o modo como Mr. May realiza sua função, quer dizer, o modo como vive o seu trabalho. Com delicadeza e ternura. Busca com afinco, esforça-se para que os defuntos tenham alguma companhia na hora de serem enterrados. Adapta o funeral aos prováveis gostos e crenças do falecido, arrisca homenagens póstumas e presta tributo pessoal com sua presença sempre discreta. Quase me atreveria a dizer que ‘humaniza’ a morte.

Não é pouco nestes tempos que vivemos onde a tal humanização parece ser a bola da vez: algo de que todos falam, dizem precisar dela, mas na prática pouco se percebe nas ações concretas que conduzam ao tal sonhado estado de humanização. Lembrei daquele outro filme japonês (A Partida) do qual saímos com uma pergunta crítica na cabeça: Como é possível fazer de um tema tão triste um filme tão delicado e positivo? A resposta trouxe outra lembrança –o filme é um gatilho de evocações- nos versos de Morte e Vida Severina: “Podeis aprender que o homem, é sempre a melhor medida; mais, que a medida do homem, não é a morte mas a vida!” A resposta, a almejada humanização, é preciso praticá-la em vida, no dia a dia, e não apenas in artículo mortis. Somente quem humaniza os detalhes simples, corriqueiros, que salpicam a rotina diária, é capaz de ter uma performance invejável no momento final, como John May.

Still life - movie 1     As muitas recordações que lutavam por abrir-se passo a passo ampliaram-se no cine debate. Tomei algumas notas, o que rendeu ainda mais reflexões, e outras lembranças estocadas na memória vieram a tona. Também as aparentemente cômicas, como a do sujeito que está sendo enterrado na presença de apenas duas pessoas que comentam: onde estão os milhares de amigos que ele dizia ter no Facebook? E outras, muito pessoais, como aquele comentário que escutei do meu irmão, um ano antes dele falecer, e que utilizei no seu funeral para agradecer a presença de muitos amigos que lá estavam: “Meu irmão disse-me certa vez, falando de um velho conhecido que estava no final da vida, que ele dizia aos amigos que não se preocupassem de ir ao seu funeral, que havia muita coisa que fazer. Sei que meu irmão teria dito o mesmo, mas felizmente ninguém obedeceu, e eu agradeço a presença de todos vocês nestes momentos tão especiais”.

Mas a nossa natureza morta não é um filme sombrio, uma espécie de elegia em celuloide. Fala da vida, do trabalho, da rotina, do encanto. Da amizade, e do melhor investimento que é sempre pensar nos demais, sair do casulo do egoísmo. Dai provém os melhores dividendos, mesmo os que não conseguimos apreciar naquele momento. A vida virtual que muitas vezes vivemos –vivemos mesmo? ou sonhamos que vivemos?- situa-nos num universo de paradigmas falsos que na hora do balanço aponta inexoravelmente os lucros e os prejuízos. Os ativos a receber –inflacionados por supostas relações e networks globais- , esfarelam-se, transformam-se em perdas porque ninguém aparece para pagar esse crédito…..que nunca existiu.

Still life - movie 3     Certa vez conversava sobre estes temas com um profissional de informática, que era cego. Tinha conseguido desenvolver sistemas e recursos de computador para pessoas deficientes, apoiando-se na capacidade de escuta que nessa situação sempre é aguçada. Falava-me do muito que tinha pensado sobre o valor real das coisas na vida, e ilustrou o tema com um comentário definitivo: “Quando vou a um enterro, e escuto o golpe da terra caindo sobre a madeira do caixão, penso que é preciso gastar a vida sendo útil. Do contrário tudo se acaba nesse golpe seco e fatal”. Cada um percebe a hora do balanço como pode, e mesmo quem ganhava a vida ajudando os outros a se comunicar não se deixava enganar com quimeras virtuais.

A medida não é a morte, mas a vida. A vida que se gasta em rotinas iluminadas, porque a rotina gris não consiste em fazer as coisas de sempre, mas em fazê-las como sempre. E no suceder-se dos dias iguais, é possível um colorido repleto de detalhes, viver uma cortesia como Mr. May, quase litúrgica, com os semelhantes, com os mortos e com os vivos. Atitude que personaliza o trato, que se adapta a cada um, que humaniza –que permite dar transito ao humano que todos levamos dentro- , sem desculpar-se com ações globais, ou atentar aos impactos do último post no Youtube. De que serve que acessem milhões de vezes a tua página web, se na hora do vamos ver não há um ombro onde chorar, alguém com quem conversar de coração aberto? Dizia Gustavo Corção que os milhares de conquistas da técnica não consolam o namorado infeliz, ou o pai que perdeu o mais amável dos filhos. Os acessos também não possuem esse predicado. E quando alguém se atreve a batizar esses relacionamentos vulgarizando o termo amizade, converte-o numa palavra vazia. Um flatus vocis, como diziam os filósofos medievais. Um termo sem nenhuma substância; thin air, por usar uma genuína expressão britânica ao gosto de John May.

Still life - movie 5     Voltamos ao filme japonês, A Partida, que também se fez presente no cine debate. Há um momento onde alguém pergunta à esposa do protagonista, já convencida da importância do trabalho do marido, como é possível viver dessa atividade, arrumando cadáveres para o sepultamento. Ela responde sem hesitar: “O meu marido é um profissional!”. Foi mais uma evocação quando vi surgir na tela a protagonista feminina aproximando-se de Mr. May. Curiosidade no início, seguida de admiração, para converter-se em encanto. O entusiasmo pelo trabalho, a capacidade de sonhar e de aperfeiçoá-lo, independente do conteúdo, tem um poder sedutor para a alma feminina. Talvez porque as mulheres têm essa leitura transcendente que sabe apreciar os detalhes que realmente importam, na hora de fazer o balanço. Esse deve ser o motivo que explica porque, diariamente, encontro muitas mais mulheres do que homens do lado dos pacientes que sofrem, atentas aos pormenores que fazem a doença mais suportável.

Um homem apaixonado pelo seu trabalho, que não precisa de plateia para certificar-se do valor que encerram suas cuidadosas ações diárias. São qualidades que costumam passar desapercebidas aos que vivem na superfície dos acontecimentos. O chefe de John May é um belo exemplo de insensibilidade. Não é mau, até cumpre o seu dever, mas escapa-lhe o essencial. Vivemos rodeados desses espécimes, e com frequência sucumbimos ao seu fascínio. A tentação de entregar-se a aparência e desprezar a verdadeira substância, de prestar culto ao sucesso sem avaliar a competência é realidade que convive conosco e nos absorve ao menor descuido. A opinião dos espectadores pesa demais nas nossas decisões, é um tributo enorme contra o qual nos custa revelar-nos. Talvez é questão de mudar o foco, e escolher outra plateia.

Still life - movie 4     Vai uma última lembrança, visto que são as recordações as que teceram esta colcha de retalhos, a modo de um quadro impressionista, manchas de luz. Foi um comentário em espanhol sobre esta produção, que chegou há algum tempo à minha caixa de e-mails. A tradução do titulo não reflete o miolo do filme (Nunca é tarde demais), mas não me pareceu totalmente infeliz, especialmente pelo subtítulo que lá colocam: Deus o vê! Se a proposta para atuar com eficácia, é livrar-se da plateia convencional e estabelecer o gabarito com outros paradigmas, a construção de virtudes em que tudo se passa entre Deus e o homem parece um bom começo. Sempre há tempo para isso. Este filme pode ser uma boa largada nessa empreitada.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005). 

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2015/02/18/uma-vida-comum-o-encanto-de-uma-rotina-iluminada/#more-2289




Breves apontamentos sobre Trabalho e Ética


"Power house mechanic working on steam pump" (Lewis Hine, 1920).

Na história da filosofia moral, o trabalho nunca foi estudado de uma forma abrangente, de maneira que não se pode afirmar que exista uma ética do trabalho propriamente dita. No pensamento clássico, o trabalho aparece sempre atrelado à satisfação de umas necessidades básicas, como uma espécie de atividade própria de escravos e não de homens livres no afã de busca da “vida boa” aristotélica.

O homem moderno vê o trabalho como produto, propriedade, forma de conseguir recursos econômicos e meio de prestígio social. O trabalho, do ponto relacional (e, consequentemente, sob o ângulo ético), fica como que na penumbra do conhecimento, quando não na obscuridade. Evidente que as circunstâncias históricas influenciaram notavelmente na consideração ética do trabalho, a ponto deste ser considerado, atualmente, um direito e um dever.

A sociedade organiza-se em torno do trabalho, sem desprezar quaisquer um deles, porque os mais básicos continuam sendo considerados os mais necessários, ainda que não gozem de uma retribuição econômica à altura de sua importância social. Por exemplo, a sadia incorporação da mulher no campo do trabalho fez com que se revalorizassem as tarefas do lar, de molde que muitos homens resolveram compartilhar ou mesmo assumir a responsabilidade daqueles encargos.

Um maior desenvolvimento cultural e técnico acarreta, como efeito, uma maior dependência do trabalho, tanto que a matéria prima, sem trabalho agregado, tem muito pouco valor num mundo cada vez mais tecnificado.

Este breve ensaio, produzido a partir de uma monografia de graduação acadêmica na disciplina de Direito do Trabalho e contemplado com um prêmio editorial, pretende centrar-se nos problemas éticos que emanam do sentido objetivo do trabalho, entendido como o produto e as relações laborais que nele se entrelaçam, e, outrossim, meio de manifestação concreta da superioridade e da transcendência do homem sobre a natureza, além de verdadeira fonte de vivência da solidariedade para com os demais.

Por fim, dedico estas linhas ao saudoso professor Amauri Mascaro Nascimento, com quem aprendi, nas arcadas do Largo de São Francisco, que, para não se trabalhar nenhum dia na vida, basta escolher precisamente um tipo de trabalho: o trabalho do qual se goste.

 

I – TRABALHO: DIMENSÃO REAL

A expressão “trabalho” tem uma origem remota e seu significado tem mudado consideravelmente ao longo da história. Assim, não é muito útil uma análise etimológica, ainda que se deva saber que a expressão decorra do nome dado a um instrumento de tortura romano. Hoje, o significado desta palavra é variado e convém fazer uma reflexão sobre a realidade. O trabalho tornou-se, nos últimos três séculos, a referência básica para a compreensão da estrutura social e, no âmbito do marxismo, da atividade política, o que, às vezes, reduz o entendimento do trabalho a uma perspectiva ideológica exclusivamente.

Descritivamente, o trabalho está ligado com uma ação humana, mas nem toda ação humana resulta num trabalho, como, por exemplo, o ato de comer, ainda que o cozinheiro, em seu ofício de preparação da comida, realize um trabalho. O trabalho, à luz do que pensamos, exige uma atividade inteligente e livre do homem e, considerando que o homem vive em sociedade, as ações realizadas para a organização da pluralidade humana, ao contrário do mel fabricado instintivamente pelas abelhas numa colmeia, também são formas de trabalho: política, legislação e educação.

Analogamente, jogar tênis, xadrez ou futebol não será considerado trabalho se a pessoa faz isso por puro entretenimento. Mas se a pessoa for tenista, enxadrista ou futebolista, ou seja, se estiver exercendo uma profissão, passa a ser um trabalho. Eis uma palavra intimamente relacionada com a noção real de trabalho: profissão. Ousaríamos dizer que o trabalho alcança sua própria significação quando ele qualifica-se como um trabalho profissional.

Logo, em nossa concepção de trabalho, cremos ser importante não somente olhar o indivíduo com estas ou aquelas competências ou habilidades operacionais e encarregado destas ou daquelas metas de eficiência, como costuma ser nas sociedades capitalistas, mas vê-lo como um todo, como alguém inserido na sociedade humana.

Compreender o trabalho como uma profissão, significa não só compreendê-lo em sua raiz, nas faculdades operativas do homem, mas desde o contexto social. Uma atividade humana seria reputada como trabalho profissional quando fosse exercida no seio social, ou seja, enquanto se inscrevesse num conjunto de funções sociais por meio das quais a mesma sociedade constitui-se e desenvolve-se.

Na sociedade contemporânea, o trabalho não produz diretamente os meios para se viver. Esta relação é mediada pelo conjunto social, que acolhe a atividade de cada um e, conjuntamente, produz os bens que reparte em forma de salário e benefícios trabalhistas e previdenciários: eis o atributo que eleva uma atividade à categoria de trabalho profissional, inclusive o trabalho doméstico, que voltou a ser revalorizado com a saudável entrada da mulher no mercado de trabalho, porquanto goza de muitos daqueles benefícios.

Contudo, se o caráter profissional do trabalho é absolutizado, o trabalho resulta funcionalizado no conjunto da obra social, de maneira que a pessoa fica, nesse aspecto, absorvida pela coletividade. O indivíduo vira um número, uma matrícula ou um registro. Este aspecto fundamental não pode ser ignorado ao se apreciar a realidade.

A perspectiva coletivista é fortemente reducionista, mas pensamos ser igualmente inadequado tratar a questão do trabalho desde uma perspectiva meramente metafísica, isto é, desde a pura essência do homem que, inevitavelmente, considera o homem como um ser uno. Para que a justiça social impere na realidade do trabalho, é necessária uma apreciação cuidadosa da pluralidade humana, como peculiar pluralidade de indivíduos únicos, ou seja, de pessoas dotadas de uma dignidade intrínseca, constituindo-se cada uma delas um todo de sentido: não se resumem a umas peças substituíveis da máquina produtiva social.

Preferimos compará-las com os músicos de uma orquestra sinfônica. Cada um tem um rol de qualidades e talentos individuais e únicos que, somados e bem regidos pela batuta do maestro, produzem um som harmônico e apreciável aos ouvidos. Nossa percepção, certamente, causa um algum pavor ao capitalismo e ao marxismo, por não ser simpática ou politicamente correta, já que ambos têm, em comum, uma visão economicista da realidade do trabalho, cuja matriz filosófica remonta a um certo materialismo ainda reinante. Mas a realidade posta nem sempre é a realidade que queremos.

 

II – SENTIDO DO TRABALHO

O exercício de uma profissão, seja um ofício eminentemente manual ou intelectual, ocupa a maior parte do dia-a-dia das pessoas. É um campo fértil para a busca de nossas realizações pessoais e profissionais, onde desenvolvemos nossos talentos e aprimoramos nossa experiência pessoal.

Aprendemos que o homem foi feito para trabalhar, assim como a ave para voar antes do tropeço adâmico. De acordo. Mas, trabalhar para quê? Que fim buscamos no desempenho de nossas profissões? O primeiro milhão, prestígio, rede de contatos, sustento familiar, acesso a bens materiais, poupança, responsabilidade social, fama, estabilidade econômica, diversão? Há uma finalidade intrínseca ao trabalho?

Certa vez, alguém questionou alguns pedreiros a respeito do que faziam. Um respondeu, resignadamente, que quebrava pedras. O outro, num tom mais sério, disse que tirava dali o sustento para sua família. O último, envolto num ar contemplativo, falou que estava construindo uma catedral. E para nós? O que significa o trabalho? Buscar o significado de alguma coisa quer dizer colocá-lo numa relação intrínseca com uma “fonte de sentido”. Quando uma realidade é considerada significativa por si mesma, as demais assumem sua significação por conexão a ela.

Por exemplo, quando se considera importante, por si só, o dinheiro (a fonte de sentido), qualquer atividade torna-se significativa na medida em que se consegue mostrar sua conexão com o dinheiro. Até que essa conexão não se efetive, o indivíduo segue reclamando um “para quê”. A fonte de sentido autêntica tem que ser algo com a qualidade de ser valioso em si mesmo e não em função de outra coisa, ou seja, não há de ser um valor relativo, mas absoluto. O único bem absoluto da realidade é a pessoa humana como tal, isto é, enquanto um ser dotado de inteligência e vontade e não como mero instrumento para se empregar em outros fins.

Compreender cabalmente uma realidade é, assim, conectá-la com o ser humano enquanto tal. Qualquer que seja a resposta, no caso da dimensão do trabalho humano, é necessário estabelecer uma ideia clara e suficiente para orientar a prática concreta e que alcance a dimensão produtiva da atividade laborativa e também a dimensão imanente do homem. A natureza, de pronto, não proporciona um número de bens materiais suficientes para todos. O homem deve trabalhar para que possa fazer render, a partir daquilo que a natureza oferece, tudo o que necessita. Assim, o trabalho se apresenta como uma fecunda relação entre ambos: homem e bens.

Em sua acepção imediata, o trabalho é a atividade humana produtiva, ou seja, geradora de uma gama de bens materiais e que se realiza com o fim de se ganhar a vida. Nessa ótica, o trabalho é um esforço humano necessário para algo necessário. Um esforço que tem um caráter de meio e não de fim em si mesmo. Desta maneira, compreende-se o posto do trabalho na vida humana. Justamente porque o trabalho é preciso, deve evitar-se o risco de convertê-lo num valor absoluto. A pessoa deixa de trabalhar para viver e passa a viver para trabalhar: o trabalho é visto como uma espécie de jogo ou esporte, uma atividade que, ainda que exija algum esforço, é prazerosa em si mesma.

Se, por um lado, esta visão de trabalho otimizaria o esforço a ela inerente, tornando-o mais produtivo, por outro, é superficial e inconsistente, porque se baseia numa postura ilusória, dado que ignora a verdadeira realidade e a autêntica dureza do trabalho, decorrente não tanto do esforço nele empregado, mas da necessidade de fazê-lo, com ou sem vontade, essa inseparável medida contida na natureza humana. Não se trabalha por gosto, ainda que se possa trabalhar com gosto.

Ambas as dimensões, a produtiva e a imanente, devem ser corretamente dosadas. Quando uma delas é privilegiada, a outra resta diminuída ou mesmo negada: é a regra atual. Se a pessoa é vista apenas no enfoque produtivista, a realização humana é resumida na produção de bens e mais bens.

Ainda que se rejeite qualquer ideia de verdade acerca da natureza humana, a filosofia moral expulsa pela porta retorna pelo vão da janela: o homem que produz seria o modelo de realização humana. Os que não produzem ou que não atuem diretamente em atividades produtivas seriam uns seres cuja existência é parasitária e inútil: comporiam, injustamente, uma espécie de legado da miséria humana e tomariam parte das “periferias existenciais” de nossas sociedades. Essa é uma realidade profundamente iníqua e tremendamente atual.

 

III – TRABALHO: EVOLUÇÃO

Antes da Idade Moderna, o trabalho era considerado uma atividade por meio da qual o homem dominava a natureza para atender as inúmeras necessidades de sua vida biológica. Tinha dois aspectos: o encontro entre homem e natureza e a capacidade de produzir bens materiais a partir dessa confluência.

O primeiro aspecto dava à noção de trabalho um matiz negativo, já que a natureza se mostrava inerte e resistente ao domínio humano, vencível apenas com o esforço próprio, ao contrário do segundo, de viés claramente positivo. Não é a toa que ambos os aspectos – esforço e eficiência – refletiram-se no idioma: “trabalhar” tem um sentido de enfrentamento penoso e “produzir” lembra uma condição de eficiência.

Naquela época, o primeiro aspecto prevaleceu e ressoa até hoje. Qualificar alguma atividade como “trabalhosa”, supõe uma dificuldade dolorosa. Mas, ao se atribuir uma conotação marcadamente negativa ao “trabalhoso”, podemos sugerir uma falsa identificação entre o negativo e o trabalhoso, sobretudo a partir de uma lógica hedonista.

Para os gregos, a atividade propriamente humana era a vida da polis, tanto que, para Aristóteles, o exercício das virtudes dentro desta perspectiva vital – a vida política e os destinos da cidade – asseguraria a felicidade do homem. Em contraste com essa atividade própria do homem, livre e pública, estava a atividade interna de cada família, impulsionada por necessidades biológicas exclusivamente.

Aqueles que ali viviam, a mulher, os filhos e os escravos não tinham uma vida propriamente humana, porque sua atividade não era livre e não manifestavam a singularidade de seu ser, dado que se concentravam totalmente na atenção da economia doméstica. Evidente que esta perspectiva da ideia de trabalho carregava uma conotação negativa, enquanto impedia o exercício da atividade própria do homem. Contudo, a primazia do sentido de esforço deixa o campo do pensamento para dar lugar, a partir do século XVII, para o sentido de eficiência: a produtividade.

O fator determinante desta inversão foi a mudança de perspectiva que surge na filosofia teórica. O advento de novas ciências com forte matiz prático, substituindo-se a pura admiração da natureza por uma intervenção experimental planificada, provocou a primazia da ação sobre a contemplação para se chegar a um conhecimento verdadeiro.

Não haveria mais espaço para um olhar atento e contemplativo com o fim de se atingir a verdade das coisas em si mesmas, mas somente para uma intervenção ativa que obrigasse “as coisas” à entrega de seus “mais profundos segredos”. Surgia, então, uma atitude investigativa de dúvida, centrada numa visão “dominadora” da natureza, como se ela fosse, desde sempre, inimiga do homem. “Donos e possuidores da natureza”, profetizava Descartes.

Se a ótica da admiração tem algo de juvenil, a ótica da dúvida sistemática tem algo de envelhecido. A primeira confia na realidade; a segunda desconfia por princípio, ou seja, tem medo e isso induz no observador um estado de espírito defensivo. O conhecimento certo, mais do que dado pela realidade, nessa cosmovisão gnoseológica, tem que ser arrancado à força e, logo, não traz a gratidão, mas uma sensação de vitória conquistada (“os triunfos da ciência”: profecia realizada). Nessa postura cognitiva, não há lugar para o mistério. A realidade tem que ser perseguida até que se “renda” e confesse o que sabe…

E a mudança não foi só do método de conhecimento da realidade, mas do telos deste: a verdade das coisas, seu sentido e alcance dão lugar para a certeza, algo diverso, consistente na intensidade com que a vontade adere a uma proposição formulada pela mente. Logo, o método de conhecimento – e não a realidade – passa a ser o fiel garantidor da certeza, como se a receita adequada garantisse o sucesso gastronômico de um prato.

Hoje, o modelo da ação humana está em agregar um novo conhecimento intimamente unido à prática, seja como fundamento deste conhecimento, seja pelas possibilidades de domínio da natureza que se abrem. Estes serão os fatores que determinarão a primazia da produtividade, tornada possível pelo maquinismo técnico subsequente às novas ciências experimentais recém nascidas.

Se, no século XVII, este quadro é mais uma perspectiva que uma realidade, foi mais que o suficiente para o advento de uma nova mentalidade acerca do trabalho, predominante até hoje e simbolizado pela propaganda de uma famosa montadora alemã de carros, “Vorsprung durch Technik”: primazia através da tecnologia, em tradução livre.

 

IV – TRABALHO: DIMENSÃO HISTORICISTA

A concepção produtivista do trabalho, concebida no século XVII, não implantou seus objetivos imediatamente. A partir de então, o trabalho físico tornou-se mais duro e as condições de trabalho mais desumanas que os séculos precedentes, tanto que o processo que culmina com a aparição do proletariado não guarda solução de continuidade com o trabalho humano nos séculos anteriores.

Em princípio, tais circunstâncias aparecem como um “preço” que deveria se pagar para a implementação da nova imagem do mundo e das perspectivas de domínio que se abriam ao homem, o qual toma consciência da eficácia de seu poder finalmente, ainda que ao custo de vidas humanas ceifadas por uma mortalidade precoce e decorrente das péssimas condições de trabalho. Muitas dessas vidas sequer chegaram à adolescência existencial.

O sentido do trabalho passa a ser o desenvolvimento do poder humano de transformar a natureza e, sobretudo, de produzir, ou seja, a ação produtiva não receberá sua legitimidade a partir de um fim distinto, mas será sempre vista a partir de si mesma e sempre com um viés autorreferente.

Como consequência, o modo do homem entender sua vida em sociedade transforma-se completamente. Ao privilegiar-se a atividade estritamente produtiva, os cidadãos proeminentes passam a ser aqueles que produzem e produzem cada vez mais. Ao passo que aqueles que se dedicam às atividades mais nobres, segundo a filosofia antiga, como professores, políticos, juízes e legisladores, são degredados da vida social.

Chegam a ser denominados no século XVIII, por Adam Smith, como “elementos passivos” da sociedade. Recentemente, o presidente da maior companhia de produção de aço nacional chegou a afirmar que “um futuro próspero ao Brasil passaria pelo fechamento de metade das faculdades de Direito, já que engenheiros produzem riquezas e os advogados as destrõem”. Sem dúvida, uma toupeira, tanto num caso como noutro, seria capaz de algo mais propositivo.

A ideia de sociedade humana altera-se completamente: já não é mais uma pluralidade de pessoas que participam de uma visão comum de mundo e que sustentam uma tradição em comum, mas um conjunto de elementos produtivos que estão unificados pelas correlações devidas exclusivamente à organização do trabalho. Assim, a sociedade será, sobretudo, uma comunidade de trabalho. A consciência de que o mundo se configura a partir da ação humana vai tomando mais feição ao longo do século XVIII e o que, no início, apresentava-se como uma simples inversão de perspectiva, vai se esgueirando para outros níveis de compreensão do homem.

O século XVIII também lança as bases do idealismo transcendental de Kant, Schelling e Fichte que, somado ao economicismo de Adam Smith, fez com que Hegel elaborasse a primeira grande filosofia moral do trabalho, no sentido mais amplo: seu intento era o de reaver as dimensões da ação humana, segundo a visão aristotélica, pois já antevia a alienação que o trabalho produziria na pessoa humana, segundo a importância dada ao produto de sua ação para o próprio homem.

Nessa perspectiva, as realizações da atividade humana já não são vistas como mero produto do trabalho humano, mas como manifestação do espírito, entendido como totalidade histórica, ao qual o homem deve sua existência determinada: cada homem é filho de seu tempo, isto é, é um produto de uma mentalidade, de uns costumes e de uma educação essencialmente históricos.

A postura hegeliana exerceu influência decisiva em Marx, que a aplicou no âmbito da atividade laboral, entendida como a intervenção do homem na natureza e como a única realidade configuradora real do mundo. Qualquer outra dimensão da existência humana foi reduzida a epifenômenos das relações de produção. Para Marx, a História é o fazer-se do homem pelo homem, por meio do trabalho. E o homem é o fruto do ventre da História, o produto de um processo no qual o fator determinante é a satisfação das necessidades imediatas por meio da atuação na natureza.

Se Hegel e Marx têm o mérito da descoberta de aspectos ignorados e do enfrentamento de problemas novos, por outro lado, os limites de suas perspectivas são preocupantes, não só pelo fato de as terem elevado a um critério absoluto da realidade acerca da existência humana, mas por terem reduzido as outras dimensões a meras derivações de seus postulados teóricos.

Nessa linha, a pessoa humana fica completamente dissolvida na coletividade, sem espaço para a concretude do indivíduo, o qual só pode ser reconhecido em função de suas funções sociais. A ideia de natureza humana perde qualquer sentido e o mundo torna-se o reino da faticidade neutra, simplesmente referida ao domínio econômico e produtivo do homem. Se tudo flui, é inútil tentar pensar numa natureza humana permanente e que resulte influente para a ação humana. Desenvolvimento histórico no lugar de verdades perenes e história como resultante de conflito dialético de forças antagônicas: dois erros somados que não resultam num acerto.

 

V – TRABALHO: FONTE DE LIBERDADE

Iluminado pelas ideias de Hegel e Marx, a humanidade sofreu um forte impacto. A mudança inicial tem lugar no fato de que o homem, ao invés de sentir-se num mundo estável, começa a pensar que suas bases estão sempre mudando: por evolução da técnica, os bens que construiu e que configuram seu mundo – desde cidades, casas, leis, relações sociais até a caneta e o creme de barbear – são constantemente substituídos por outros melhores. E, numa velocidade cada vez maior, ainda que tal fenômeno já existisse, mas sem que fosse sensível no espaço de uma vida inteira.

Essa capacidade de melhoramento técnico perdura até hoje e numa rapidez cada vez mais crescente. A durabilidade de um produto já não é uma qualidade desejada, já que seria um obstáculo à renovação e à inovação. O mundo continua sendo moldado por processos tecnológicos que nos proporcionam outros objetos e que praticamente ficam obsoletos enquanto os novos estão sendo elaborados.

Não se questiona as inúmeras vantagens que a tecnificação da vida tem proporcionado à vida humana: ninguém quer mais receber um relógio de bolso de presente de aniversário. Mas nos tornamos adoradores do trabalho produtivo, mesmo que, às vezes, ele seja o portador de novos medos que invadem o homem ante as potenciais capacidades destrutivas ou manipuladoras das técnicas nele embutidas.

Quando a técnica eleva-se à condição de configuradora do mundo, a pergunta é elementar: uma realidade forjada exclusivamente pelo trabalho é uma realidade verdadeiramente humana? O louvor desenfreado ao trabalho não pode levar-nos a uma nova realidade que se volte contra o próprio homem, preso nessa laboriosidade sem descanso e sem contemplação junto a alguma transcendência?

Não se propõe aqui um novo bucolismo. Pensamos que o domínio da técnica criou uma mentalidade de constante mudança e progresso sempre para melhor, tornando-se a depositária das esperanças da humanidade, quando as realidades estáveis de nossa existência deveriam sê-lo.

E, como efeito indireto, ascende a postura prática de que o novo é sempre bom e o antigo é sempre ruim: a categoria do “best seller” dá bem conta, no âmbito da literatura, que outrora nos brindou com um Shakespeare e com um Machado, que as criações têm uma vigência bem reduzida, à semelhança dos jornais. A música também foi atacada pelo mesmo fenômeno do metabolismo total: consumo durante alguns meses e, ao fim, uma composição fica antiquada para que outra ocupe seu posto.

Essa ideia tem o valor positivo de mostrar algumas características reais da condição humana, até então desconhecidas. Mas estas têm a limitação de sua parcialidade, pois enxergam o homem apenas sob uma perspectiva e quando inspiram uma organização humana, queremos dizer, quando alcançam uma vigência prática, a parcialidade converte-se em falso e maltrata a própria realidade humana.

Diante dessas e de outras coisas novas do mundo do trabalho, é conveniente evitar o erro de que as mudanças são fruto de uma ação cega e determinista da História, cuja raiz remota está no fatalismo grego (basta lembrar a relação do grego com seus deuses), segundo o qual as coisas sucedem-se inexoravelmente, independentemente do agir livre do homem. Esse buraco negro filosófico atraiu muitas e boas mentes para um labirinto de Creta, pois elimina, por completo, a liberdade humana.

O fator decisivo e o árbitro destas (e de outras) mudanças é (e sempre será) o homem, na condição de verdadeiro protagonista de seu trabalho. Mas as reorganizações e inovações no mundo do trabalho devem buscar uma valoração fora do âmbito que lhe é próprio, ou seja, devem servir ao crescimento da pessoa, da família, da sociedade e da humanidade.

Interpretações de cunho mecanicista ou economicista, ainda que influentes nos dias de hoje, resultam superadas diante da realidade: banalização do repouso semanal, dilema familiar no trabalho da mulher, exploração do trabalho infantil, injusta discriminação do trabalho da mulher e do imigrante, inverno demográfico provocado pelos fluxos migratórios campo-cidade, entre outros exemplos.

O homem entrega-se à aventura da transformação das coisas pelo trabalho para satisfazer suas carências materiais, mas deve fazê-lo seguindo um impulso que o impele sempre para além dos resultados alcançados, em busca do aspecto transcendente que corresponda às suas exigências interiores mais profundas. Nesse sentido, afora o contexto execrável da máxima nazista, o trabalho liberta (Arbeit macht frei).

 

VI – TRABALHO: VISÃO ONIPOTENTE

Uma sociedade moldada pela visão onipotente do trabalho tem dois atributos negativos. O primeiro é o consumismo desenfreado, entendido como uma sociedade em que as realidades que a constituem já não são mais objetos estáveis destinados a um uso duradouro: são objetos para o imediato consumo. Aqui e agora. A pouca durabilidade das coisas não se deve a defeitos intrínsecos de sua elaboração, mas decorre como efeito do sistema de primazia do trabalho. A renovação constante dos objetos torna-se uma determinante de um sistema focado pela perfeição material crescente.

Essa situação dá lugar a um tipo de pessoa cada vez mais cheio de necessidades. Aliás, a propaganda afinou-se com o sistema produtivo de tal maneira que transforma os caprichos de ontem nas necessidades do amanhã e, ademais, envolve a pessoa de tal forma que pareça que sua vida esteja desprovida de sentido: consumo, logo, existo. A sociedade de consumo dá a luz a seres perenemente insatisfeitos e cheios de vazio existencial.

A par das necessidades crescentes, induz-se no homem uma atitude de confiança no domínio total dos processos naturais, desde o de melhoramento da produtividade agrícola até o de combate das limitações e dores que nos afligem diariamente, como a depressão, o mal do homem moderno: em todos os casos, a solução, nessa ótica, passará, necessária e exclusivamente, pela via do domínio técnico-científico exclusivamente.

A primazia da ação sobre a contemplação traduz-se na preponderância de uma atitude intervencionista, sem que, muitas das vezes, haja uma busca do sentido destes fenômenos naturais. Em nenhum âmbito vital, vê-se tão claramente o equívoco desta mentalidade que no campo da reação diante da dor.

Desde sempre o homem tratou de encontrar legitimamente uma maneira de mitigar suas dores. Mas essa busca não era um obstáculo para, concomitantemente, procurar-se um sentido para essa mesma dor. Atualmente, a dor é fator desencadeante da ação do homem para eliminá-la a qualquer custo. A dor, em si mesma, deixou de ser um enigma ligado ao mistério próprio do homem e passou a ser vista como uma perturbação biológica merecedora de tratamento científico pelos profissionais da área.

Certamente, essa postura conduziu a Medicina a progressos incomensuráveis para a humanidade, mas deixou o homem literalmente indefeso ante uma dor invencível, como a dor pela perda de um ente querido. O recurso a psicofármacos, em casos em que o exercício de virtudes seria mais eficaz e os casos cada vez mais comuns de suicídios por causas mínimas, tem a raiz comum na unilateral e insana confiança do homem no domínio total da natureza.

A sociedade de consumo é uma sociedade destemperada, que confia cada vez mais no auxílio dos artefatos elaborados pelo homem e, consequentemente, aparta-se do cultivo daquelas dimensões vitais em que a ciência aplicada pode prestar menor grau de socorro. Se o desenvolvimento científico é válido, principalmente para a superação das limitações materiais da vida humana, quando ela configura uma sociedade de maneira decisiva, os corretivos necessários são muito mais poderosos e, não raro, dolorosos.

O segundo atributo negativo da visão onipotente do trabalho está na complexidade do processo de produção de bens, cada vez mais sofisticados. A fragmentação deste processo requer que cada um dos intervenientes realize somente uma parte mínima, desconhecendo, na prática, aquilo que fazem os demais que também atuam no mesmo processo. Tal fato poderia ajudar a formar uma consciência de trabalho em equipe, mas, na prática, isso não existe, pois suporia que cada um dos atores do processo de produção conhecesse o todo e entendesse seu sentido.

O fracionamento do trabalho não é devido apenas à própria complexidade do produto pretendido, mas também como imperativo de produtividade. Nisto coincidem as análises de Adam Smith e de Marx: a produtividade deve-se muito mais à divisão do trabalho que ao trabalho propriamente dito. A primazia absoluta do trabalho na consideração de uma concepção social acaba por reduzir a mesma sociedade humana a uma mera organização laboral, onde a convivência é articulada, artificialmente, de maneira que as pessoas possam convergir suas faculdades apenas no labor e para produzir mais e melhor.

Seria uma espécie de visão antropológica mecanicista que faz da política uma técnica e da sociedade um edifício, na qual cada um de seus elementos é alheio ao conjunto, estando integrados em razão de fatores extrínsecos somente. Um edifício assentado sobre o erro de se considerar o homem somente um ser destinado ao trabalho. Um edifício prestes a tombar e sem qualquer ponto de apoio sólido: um problema que nem Arquimedes resolveria.

 

VII – TRABALHO: NOVA ÉTICA

A perspectiva que devemos adotar para o tratamento ético do trabalho não pode ser meramente mecânica ou econômica, pois, em primeiro lugar, não nos interessa a articulação das forças físicas que, indubitavelmente, estão sempre envolvidas no trabalho humano. Tampouco, na mesma ordem, não é relevante a produtividade e as correlações devidas ou requeridas para uma maior eficácia dos processos de produção de bens.

O tratamento ético reclama uma perspectiva a partir da humanidade do homem, ou seja, interessa-nos colocar de manifesto de que modo a humanidade do homem está engendrada nas atividades denominadas de trabalho e, por conseguinte, de que modo os diversos aspectos destas atividades são matéria de interpelação ética para a liberdade humana.

Assim, frente às inúmeras correntes filosóficas baseadas na produtividade do homem, os princípios antropológicos para uma ética do trabalho devem passar necessariamente pelo postulado da abertura do homem à transcendência. Do contrário, as peculiaridades da pessoa humana volatilizam-se e não se consegue fundamentar adequadamente nem a dignidade absoluta do homem, nem sua realidade transcendente em face da natureza da qual também faz parte.

Logo, o trabalho não pode ser resumido à uma simples mercadoria exposta a quem oferecer maior paga, nem à uma força anônima e cega ou a um mero instrumento de produção. O trabalho é uma atividade da pessoa. Com efeito, o trabalho procede, de modo imediato, da pessoa, a qual exerce e aplica nele uma parte das capacidades inscritas na sua natureza. O homem, com seu trabalho, desenvolve a face da sociedade e presta serviços aos outros: em suma, humaniza-o.

No trabalho, comprometem-se a inteligência e a vontade do homem. Não é um impulso instintivo, mas algo intencional, específico do ser humano e decorrente de uma vocação natural. Em sentido próprio, só homem trabalha. Os animais e as máquinas só o fazem por analogia. Precisamente, por ser atividade intencional da pessoa humana, o trabalho é uma coisa digna, seja qual for o trabalho realizado.

O trabalho pode ser avaliado pela produtividade, pela eficiência, por outros critérios de valor econômico ou mesmo pelo prestígio social, mas, para além destas valorizações, o trabalho tem uma dignidade intrínseca e o primeiro fundamento do valor do trabalho é o próprio homem, seu sujeito. O homem, ao trabalhar, não só modifica a realidade, como transforma a si mesmo ao ter consciência do que realiza e deseja. Ou seja, a atividade laborativa não só procede do homem como para ele também se ordena: aprende, desenvolve suas faculdades físicas e intelectuais e supera-se. Tal aperfeiçoamento, se for bem compreendido, é mais importante que as riquezas por ele geradas a partir do trabalho.

O trabalho tem um duplo sentido: o objetivo, mediante o qual o homem expressa seu domínio sobre a realidade posta e o subjetivo, decorrente do agir humano enquanto ser dinâmico, capaz de levar a cabo várias ações que pertencem ao processo do trabalho, condensadas em sua vocação pessoal.

O trabalho objetivo constitui o aspecto contingente da atividade do homem, que varia incessantemente em suas formas segundo a evolução da técnica. O trabalho subjetivo configura a dimensão estável do homem, porque não depende daquilo que o homem realiza concretamente ou do gênero de atividade que exerce, mas somente de sua dignidade de ser pessoal.

Tal distinção tem o mérito de sublinhar corretamente o fundamento último do valor do trabalho, à vista do problema de uma organização social, fomentada pelo trabalho, que respeite os direitos do homem, sem que se redunde numa ideia mecanicista ou economicista dos processos de trabalho. O trabalho, portador de uma intrínseca dimensão social, possibilita o aperfeiçoamento da pessoa ou a deterioração de sua humanidade, motivo pelo qual a dimensão subjetiva deve preceder à objetiva. O valor primordial do trabalho pertence ao próprio homem, autor e destinatário de sua atividade. O trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho.

Ao contrário da retórica marxista, o trabalho não é alienante pelo fato de ser executado sob a regência de outro, mediante a contraprestação em dinheiro. O trabalho é alienante quando impede a realização humana de quem trabalha, privando-o naquilo que é e no que está chamado a ser.

Ao cabo, vimos que uma filosofia moral para o trabalho deve necessariamente passar pela configuração do trabalho humano como instrumento de condução do sujeito humano, individual e coletivamente, rumo à sua perfectibilidade como pessoa. Dessa forma, o trabalho servirá para que o homem alcance o sentido de sua existência e a plenitude de uma vida propriamente humana, qualificando o trabalho, como efeito, com a verdadeira dignidade que merece.

por André Fernandes (IFE Campinas)