Livro "Não com um Estrondo, mas com um Gemido", de Theodore Dalrymple


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As duas melhores vertentes de Theodore Dalrymple reunidas em um único livro: a crítica da classe intelectual e a análise da cultura de massas

Em Não com um Estrondo, mas com um Gemido, Theodore Dalrymple dá a medida do declínio cultural e da triste decadência da Grã-Bretanha – com sua burocracia, mentalidade de bem-estar opressiva, juventude sem rumo e a perseguição em nome da democracia e da liberdade. O autor mostra como o terrorismo e o número crescente de minorias muçulmanas mudaram a vida pública na Inglaterra. Registra, também, suas observações incisivas de artistas e ideólogos e, como médico psiquiatra, discorre sobre o tratamento de criminosos e dos mentalmente perturbados, área de seu interesse.

O livro é dividido em duas partes: “Artistas e Ideólogos” e “Política e Cultura”. A primeira traz ensaios sobre Samuel Johnson, Arthur Koestler, Henrik Ibsen, J. G. Ballard. A segunda centra-se em patologias sociais britânicas e suas fontes políticas e culturais. O autor discorre também sobre a sensação de declínio do mundo ocidental, especialmente na Grã-Bretanha, sobre multiculturalismo islâmico e terror.

Ele considera o crescimento das patologias sociais e o declínio dos padrões cultural, moral e estético britânicos mais abrangentes e alarmantes que processos semelhantes nos Estados Unidos e acredita que as políticas do Estado de bem-estar deram grande contribuição para o surgimento desses fenômenos.

 

Sobre o autor

Theodore Dalrymple é um dos pseudônimos de Anthony Daniels, nascido em Londres em 1949. Além de ensaísta, é médico psiquiatra, trabalhou em quatro continentes e atuou até 2005 no Hospital da Cidade e na Winson Green Prison, ambos em Birmingham, Inglaterra. Escreve para o City Journal, publicado pelo Manhattan Institute, e para veículos como The British Medical Journal, The Times, The Observer, The Daily Telegraph, The Spectator, The Salisbury Review, National Review e Axess. Tem diversos livros publicados, entre eles A Vida na Sarjeta; Nossa Cultura… ou o que Restou Dela; Podres de Mimados; Em Defesa do Preconceito; O Prazer de Pensar; Qualquer Coisa Serve; e A Nova Síndrome de Vichy, todos editados pela É Realizações Editora.

Título: Não com um Estrondo, mas com um Gemido – A política e a cultura do declínio
Autor: Theodore Dalrymple
Tradução: Hugo Langone
Editora: É Realizações Editora
Preço: R$ 49,90
Nº de páginas: 256
Lançamento: outubro de 2016

Fonte: É Realizações.

Para comprar acesse: http://www.erealizacoes.com.br/produto/nao-com-um-estrondo,-mas-com-um-gemido—a-politica-e-a-cultura-do-declinio




Entrevista do IFE São Paulo com Anthony Daniels (Theodore Dalrymple)


dalrymple-copyO IFE São Paulo entrevistou Anthony Daniels – também conhecido como Theodore Dalrymple – em sua recente passagem pelo Brasil, promovida pela Editora É Realizações. Em nossa conversa com o médico psiquiatra inglês, autor de livros como A Vida Na Sarjeta, Em Defesa do Preconceito e Nossa Cultura…ou o que restou dela, foram tratados diversos temas sobre sua vida e obra:

Em seus livros você costuma fazer análises baseadas em sua experiência pessoal. Por que a opção por esta abordagem ao invés de um estilo mais formal, teórico ou acadêmico?

Em primeiro lugar, não sou qualificado para escrever academicamente.  Depois, a maioria dos acadêmicos escreve muito mal (risos). Além disso, a vantagem de escrever dessa maneira é que as pessoas podem ver que não se trata apenas de teoria, mas de uma espécie de experiência vivida. É uma dialética entre experiência pessoal e considerações mais amplas. Não acredito que a experiência pessoal seja um guia completo para a vida ou a resposta para perguntas difíceis, mas ela deve estar em uma espécie de diálogo com fontes de conhecimento mais amplas. O problema com os acadêmicos é que eles não acreditam que a experiência pessoal seja importante, e, assim, fazem violência até mesmo à sua própria experiência pessoal, o que pode levá-los a acreditar em qualquer tipo de disparate.

Mas é claro que a experiência pessoal não é a única guia. Deve haver um tipo de diálogo entre a experiência pessoal e considerações mais amplas. Assim, por exemplo, vamos supor que você seja vítima de um crime. Há crime em todas as sociedades, e o fato de ser vítima de um delito não o torna especialista neste assunto. Mas usando a sua experiência do medo do delito que aconteceu com você ou com seus amigos, você pode começar a pensar sobre crime e, em seguida, olhar estatísticas e assim por diante.

Sempre achei que uma das maiores causas do crime é a criminologia. Criminologistas no meu país, diante do aumento fenomenal da criminalidade, negaram que o medo que as pessoas sentem em relação aos delitos se baseava em qualquer tipo de realidade. As pessoas comuns foram mais precisas em sua compreensão do que os criminologistas, que se esforçaram para negar o aumento da criminalidade. Então eles consideram que o medo do crime é o problema, e não o crime em si. Qualquer um que vive em um alojamento público na Inglaterra saberá que o medo do crime não é irracional. Minha mãe, uma senhora muito idosa, não podia sair à noite. Os criminosos impuseram um toque de recolher a pessoas comuns. Aqui no Brasil ocorre a mesma coisa: disseram-me que não devo sair depois das 22 horas. Isto é um toque de recolher, e é imposto por criminosos. Suponhamos que eu saia às 22 horas. Provavelmente em nove entre dez vezes nada vai acontecer. Mas a vez em que algo ocorre é mais importante do que as nove vezes em que nada aconteceu. Então tento evitar em meus livros esse tipo de negação da experiência comum a que se inclinam muitos acadêmicos quando escrevem apenas academicamente.

Em seu livro Admirable Evasions (ainda não traduzido para o português) você afirma que correntes psicológicas não conseguem fornecer boas respostas sobre a natureza humana e questões importantes para a vida, apenas reconhecendo conquistas para problemas pontuais. Você vê alguma corrente ou escola psicológicas atuais que forneça boas bases para a compreensão da pessoa humana?

Não, porque não acredito que poderia haver uma escola assim. Acho que é impossível por razões metafísicas. Os problemas da existência humana são permanentes e acho que de certa forma insolúveis. Se voltarmos mil anos, não acredito que os seres humanos entenderiam mais a vida do que nós, assim como não entendemos mais sobre a vida do que Shakespeare ou os gregos e assim por diante.

Vem a minha mente a obra de Viktor Frankl e sua logoterapia. Qual é a sua opinião sobre isto?

Depende do que você quer chamar de terapia. Acho que para Frankl é algo mais como um diálogo socrático. Não o chamo de médico; seu ponto de vista é mais filosófico.

Claro que existem exceções, mas as exceções não fazem a regra. Como eu disse no meu livro: você não pode tratar a vida como se fosse um caso de aracnofobia. A aracnofobia pode ser tratada psicologicamente – isso eu aceito. Mas você não pode tratar os problemas da existência como se fossem aracnofobia. É isso que nego neste livro: que a psicologia será capaz de nos dizer algo importante sobre a vida como um todo. Pode ser que auxilie em alguns problemas específicos. Tomemos as fobias como exemplo: quanto mais específica a fobia, mais a psicologia pode ajudá-la. Mas isso também significa que a psicologia é menos importante em relação ao todo.

Então ela pode abordar certas questões específicas. Mas não fornece …

A resposta sobre a vida.

Em seu livro Qualquer Coisa Serve você afirma acreditar, embora não seja religioso, que devemos viver a vida como se certas coisas fossem sagradas. Qual seria a fonte ou o fundamento dessa sacralidade?

Eu diria que a necessidade, porque se não nos sentirmos assim, qualquer coisa vai servir. Não consigo fornecer uma justificativa metafísica completa para isso. É uma espécie de intuição. Não posso dar-lhe um princípio indubitável a partir do qual você pode deduzir que o que digo é verdade. Mas se não temos essa atitude, então qualquer outra coisa realmente serve. Não conseguiriamos dizer o que há, por exemplo, de errado com o genocídio.

Então é uma abordagem consequencialista?

Sim, mas não sou um consequencialista por completo. Se considerarmos, por exemplo, a justiça, não acho ela que possa ter uma explicação consequencialista. Não sou filósofo, então talvez tenha perdido algo. Mas se adotássemos uma visão completamente consequencialista da justiça seria perfeitamente correto punir pessoas inocentes caso as consequências de fazê-lo fossem desejáveis. Nós não o faríamos porque seria injusto, portanto a questão da justiça não pode ser observada apenas consequentemente.

Você escreve artigos para o City Journal. Você acha que a Política das Janelas Quebradas poderia dar boas respostas para problemas criminais em países diversos dos Estados Unidos?

A teoria é intuitivamente plausível. Pensei nas pessoas na Grã-Bretanha, por exemplo, que têm jogado muito lixo na rua. Quando o lixo torna-se geral, adicionar mais não faz qualquer diferença, porque não se pode dizer como o lixo estava antes de receber mais lixo. Então acho que é verdade, e não vejo razão para não ser verdade no Brasil também.

O problema na Grã-Bretanha é que realmente não percebemos os pequenos atos de desordem. Sei disso por causa do meu trabalho com prisioneiros, que muitas vezes começaram com crimes menores, e progrediram no seu repertório criminoso. Há naturalmente muitos que nunca cometem um grande crime, é verdade. Mas não há nenhum grande criminoso que não cometa crimes pequenos. Não creio que seja diferente com os brasileiros.

Relacionado a este assunto, qual a sua opinião sobre a questão da legalização das drogas? E quais seriam as consequências da legalização?

Primeiro é preciso esclarecer o que se entende por legalização, e a maioria das pessoas não é clara em relação a isto. Quando se fala em legalização das drogas, quer-se dizer que você poderia entrar em uma loja e comprar seu crack, sua cocaína, sua anfetamina, sua fenciclidina, sua cetamina, sua heroína, da mesma forma que poderia comprar seu café ou seu pão? Isso parece intuitivamente absurdo. Não me parece ser um cenário plausível em qualquer lugar no mundo. Esse é o primeiro ponto.

No mais, alega-se que todas as consequências ruins do consumo de drogas surgem da ilegalidade e não das drogas em si. Sabemos que isso não é verdade. Por exemplo, nos Estados Unidos há hoje 24.000 pessoas morrendo de overdose de opiáceos prescritos, drogas quimicamente semelhantes ao ópio, como a heroína, que são legais. Elas são prescritas por medicos – e acho que muito mal prescritas. Os médicos são completamente irresponsáveis, mas o entorpecente é legal, e 24.000 pessoas morrem por ano nos Estados Unidos por causa dele. Assim, podemos ver que os problemas decorrentes dessas drogas não são puramente a consequência da ilegalidade. Há mais pessoas morrendo em decorrência destas drogas do que em razão de entorpecentes ilegais. Então é falsa a ideia de que se tudo é legal, tudo está bem. A legalização do crack não significaria que não ocorreriam as consequências que, de fato, se verificam nos usuários.

Talvez pudéssemos fazer uma distinção entre legalização e descriminalização?

A descriminalização também não resolverá o problema. Não acho que resolveu o problema em Portugal. O índice de criminalidade não caiu em Portugal como resultado. Não subiu, mas também não caiu. Na verdade, em nossas sociedades, o consumo de drogas já foi descriminalizado, porque, pelo menos na Grã-Bretanha, as pessoas não são presas por usar drogas. Traficar drogas ainda é crime. Os descriminalizadores não estão dizendo que deveríamos descriminalizar o tráfico de drogas, que ainda é ilegal em Portugal. É ilegal produzir essas drogas, é ilegal distribuí-las, é ilegal vendê-las, mas de fato temos a descriminalização de qualquer maneira. Creio que ninguém esteja na prisão na Inglaterra ou nos Estados Unidos meramente por fumar maconha. E os descriminalizadores não sugerem descriminalizar o fornecimento, então nada muda na prática.

Subjacente à descriminalização está a idéia de John Stuart Mill do princípio do dano. O problema é que é muito difícil, na sociedade moderna, isolar o dano que um indivíduo faz a si mesmo do mal que faz a outras pessoas, e também fazê-lo pagar por isso. Creio que seria impossível e desumano conceber uma sociedade que não tentaria ressuscitar alguém que consumiu heroína e teve uma overdose simplesmente porque aquela foi a decisão da pessoa. Não deixaríamos de levar alguém ao hospital caso o problema fosse uma overdose. Não diríamos “Nesse caso podemos deixá-lo morrer”. Ninguém iria querer viver nesse tipo de sociedade.

Já que você mencionou John Stuart Mill, estou certo em dizer que você é cético em relação ao libertarianismo?

Sim, precisamente porque o libertarianismo é uma espécie de utopia – e não acredito em utopias. Como eu disse, existe um grande problema: a ideia de que todos, na condição de indivíduos, podem fazer o que quiserem, contanto que não afetem os outros. São muito poucos atos que não afetam ninguém. Além disso, há algumas passagens de John Stuart Mill muito citadas, mas as pessoas não o citam quando ele diz: “Se um pai não sustenta o seu filho, ele pode legitimamente ser colocado para trabalhar à força a fim de sustentá-lo”. Se ele não quer trabalhar para prover ao filho, então podemos, de fato, escravizá-lo. E isso mostra o lado perigoso do libertarianismo, fazer as pessoas absolutamente responsáveis por si mesmas tem a consequência de que qualquer dano que fazem deve ser reprimido. Como disse Dostoiévski: “Partindo do princípio da liberdade absoluta, chegamos à tirania absoluta”.

O que há de correto nos libertários é que eles percebem que no mundo moderno estamos cada vez mais sendo geridos e deixamos cada vez menos espaço para o julgamento individual e para a confiança nas pessoas. Por exemplo, os professores – e acho que provavelmente acontece o mesmo no Brasil – têm uma enorme quantidade de obrigações burocráticas que torna difícil que deem o seu melhor. Acho que seria muito mais desejável dar liberdade aos professores para que pudessem fazer o seu melhor.

Acho que o libertarianismo é a tentativa de produzir um mundo perfeito em que tudo vai de acordo com uma doutrina.

Então, neste sentido, promete uma utopia como o socialismo, mas uma utopia diferente?

Sim, é uma utopia diferente. Como todas as utopias, não é muito realista e ninguém iria querer viver nela. Há muitas coisas que aceitamos, presumimos, mas que são produtos de regulação. Por exemplo, assumimos que a água é limpa. Não queremos ter de testar nossa água todas as vezes que a tomamos. E o fato de isto ser regulamentado nos liberta. Claro que os libertários diriam: “Na sociedade libertária, aqueles que fornecem água a testariam”, mas sabemos que não é realmente esse o caso. Se as pessoas tiverem oportunidade de vender água contaminada, elas o farão. Na verdade, elas o fazem em lugares como a Índia.

Aprendemos a partir da experiência prática, não da especulação…

Exatamente. É experiência prática.

Em seu livro Podres de Mimados você destaca o sistema educacional como uma causa da diminuição da alfabetização, da promoção da violência entre os jovens e de diversos problemas que o Ocidente começou a viver. Atualmente, o governo federal brasileiro está tentando implementar reformas no sistema educacional brasileiro. Estudantes, porém, estão rejeitando as reformas e ocupando escolas. Como resolver este círculo vicioso no qual estudantes que são o produto deste sistema educacional problemático se recusam aceitar reformas?

Qual é a idade destes estudantes que estão ocupando? E deveríamos chamá-los de pupilos, não de estudantes. Isso é parte do problema. A palavra “pupilo” quase desapareceu. Um estudante é alguém que, em parte, dirige seus próprios estudos. Ele escolhe o que estudar. Um pupilo é uma pessoa mais jovem a quem é dito o que vai aprender. E o ponto em que um pupilo se torna um estudante não é perceptível. Tradicionalmente é quando ele deixa a escola e vai para a universidade. Mas o problema é que agora a autoridade passou da pessoa mais velha para a pessoa mais jovem. A criança se torna uma autoridade. Vejo isso em coisas pequenas, como os pais na Inglaterra (eu não sei sobre a situação no Brasil) que perguntam aos filhos o que eles querem comer. Isto é errado. Você não pergunta à criança o que ela quer comer. Você dá à criança algo e diz: “Isso é o que você vai comer.” Exceto, talvez, em alguma ocasião especial. Há uma consequência enorme para a criança. Entre outras coisas, uma das razões para a existência de tanta obesidade é o fato de as pessoas comerem como crianças pelo resto de suas vidas. Elas puderam escolher desde muito cedo, na verdade, antes que tivessem qualquer base para fazer essa escolha.

Não sei qual é a situação no Brasil. Eu me pergunto se os pupilos que estão ocupando as escolas sabem o que estão fazendo e até onde estão sendo manipulados pelos professores em sindicatos. Não sei exatamente qual é a situação. Mas enfrentamos o mesmo problema na Inglaterra, onde por décadas os professores foram mal intruídos em métodos para ensinar as crianças a ler. Estabeleceu-se que qualquer criança, praticamente qualquer criança, pode aprender a ler bem, mesmo que venha de um lar desfavorável, mesmo que viva em circunstâncias muito ruins. E, no entanto, nossos professores não fizeram isso por décadas. Mas está começando a mudar.

Agora, imagino que o mesmo aconteceu no Brasil. E, possivelmente, de maneira pior, porque aqui é ainda mais ideológico. Então acho que o problema está, provavelmente, nos professores e não nos pupilos. E é claro que é um círculo vicioso. É muito difícil mudar um sistema altamente burocrático. O governo central pode dizer o que quiser, mas as pessoas que vão realmente determinar o que acontece estão muito abaixo na escala burocrática. Uma das possíveis soluções poderia ser abrir o sistema educativo à concorrência. Há um livro muito interessante escrito por James Tully sobre o estabelecimento de escolas particulares pequenas e baratas em Lagos, Bombai e outros lugares muito pobres, onde as pessoas em situação de pobreza estão dispostas a pagar algo para ter seus filhos educados. O problema com o sistema burocrático é que as pessoas mais vulneráveis às suas imbecilidades são, naturalmente, os pobres. Porque se você pertence à classe média, ou não vai aceitar essa situação ou vai tomar uma ação alternativa. Portanto, são os pobres que ficam vulneráveis. Dito isto, desde que cheguei ao Brasil conheci vários professores que estão trabalhando no sistema público, e pareciam ser pessoas muito boas. Estavam realmente tentando fazer o seu melhor, mas disseram que tudo está contra. Os professores estão contra, o ministro da educação é contra. Então, é um problema muito difícil.

Ainda sobre seu livro Podres de Mimados, nesta obra você descreve aspectos do sentimentalismo e destaca que, se algo ocorre apenas do âmbito privado da vida de alguém, é como se não tivesse ocorrido, a menos que essa pessoa o demonstre em público. Você acredita que o surgimento das redes sociais é consequência ou causa deste fenômeno?

É uma relação dialética, sem dúvida. Uma relação na qual a possibilidade se torna necessidade. Não sei exatamente, pois não uso redes sociais. Mas parece haver um pacto entre certas pessoas: eu finjo estar interessado na sua futilidade se você fingir que se interessa pela minha. Colocar o que acontece com você em um espaço no qual milhões de pessoas podem ver de alguma forma confere a estes acontecimentos uma importância maior. Ouvi dizer que diversas pessoas publicam coisas como: “Estou em uma loja” ou “Estou aqui, tomando café”. Por que alguém se interessaria por isto? É muito estranho para mim. De qualquer forma, eu diria que existem meios sensatos de usar estas mídias, mas muito delas é futilidade e somente tem por consequência aumentar a presunção e uma espécie de individualismo sem individualidade.

Sobre seu livro A Nova Síndrome de Vichy, você escreveu esta obra antes do Brexit, certo? Qual a sua opinião sobre a saída da União Europeia?

Em primeiro lugar, em muitos casos representou um protesto contra a classe política. Se o Sr. Cameron não tivesse dito nada é possível que o voto tivesse sido no sentido contrário. Se os políticos não tivessem dito nada, especialmente aqueles que eram favoráveis à permanência, é possível que o voto tivesse sido no sentido contrário.

E, na minha visão, a União Europeia está construindo a próxima Iugoslávia. Eu não sei se você já ouviu alguém dizer no que consiste o Projeto Europeu. Eles costumam falar do Projeto Europeu, mas você nunca ouve ninguém dizendo o que ele é. E somente pode significar uma coisa: a construção de um estado unitário. E é extremamente perigoso impor políticas a países do tamanho da Espanha ou da Itália sem que haja nenhum sentimento real de união entre eles. É algo extremamente perigoso e terminará em conflito.

E os alemães estão em uma situação complicada…

Os alemães estão em uma posição muito complicada porque eles são poderosos, mas não todo-poderosos. Então, por exemplo, se a França, a Espanha e a Itália fizerem uma coalisão contra a Alemanha – porque o interesse dos países são diametricamente opostos -, algo será imposto à Alemanha. E isto não é bom. Na verdade, não poderia haver melhor forma de fazer crescer o nacionalismo alemão. Ainda assim, eles me parecem preparados para continuar nesta rota, o que é muito perigoso.

Agora, em relação ao Reino Unido, é existencialmente importante para a União Europeia que o Brexit seja um desastre econômico, porque se não o for, se não houver deterioração, ainda que ocorra apenas estagnação, as pessoas na Europa vão dizer: “Qual é o ponto da União Europeia se sair dela não faz nenhuma diferença, não leva ao desastre?”. Então é necessário para eles que o desastre seja produzido.

Entendo que o Reino Unido tem salvado a Europa desde as Guerras Napoleônicas. Você acredita que é isto que vai acontecer novamente?

A questão é que nós temos diversos problemas no Reino Unido e não podemos pensar que eles decorrem da União Europeia. Isto não é verdade. Nossos problemas não têm por origem fundamentalmente a União Europeia. Mas se o Brexit levar à quebra da UE, então terá salvado a Europa de novo, sim, porque o futuro da Europa é o desastre, a menos que mudem de rota.

Se eu tivesse que resumir seu livro em uma frase, esta seria: a Europa está perdida. Estou correto?

Eu não acho que seja inevitável. Depende do que você quer dizer por perdida. Continentes não se perdem simplesmente. Mesmo depois da queda do Império Romano continuou havendo vida, e provavelmente não era tão ruim como costumamos imaginar. Então, nesse sentido não está perdida. E eu não quero dizer que a vida na Europa é um inferno, porque obviamente não o é. Mas estamos trilhando um caminho que vai levar ao desastre, provavelmente não no meu tempo de vida, pois não vou viver tanto tempo, mas eu acho que você verá desastre na Europa, caso continue se movendo nesta direção. Mas eles podem mudar de caminho por outras razões.

Já que estamos falando da Europa, não podemos deixar de mencionar o Islamismo. E me parece que você é mais otimista em relação ao Islã na Europa do que a maioria dos analistas, pois entende que, ainda que o Islã influencie a Europa, a cultura secular também influencia o Islamismo. Você, então, não enxerga o Islã como uma ameaça real?

Às vezes penso que sim, às vezes penso que não. A questão é que o Islã é intelectualmente muito fraco. E o Islamismo é a resposta a esta fraqueza extrema do Islã. O fato é que o Islã não tem nada a dizer ao mundo moderno, não pode cooperar com ele. E, ao mesmo tempo, pessoas que são muçulmanas percebem o que acontece com as religiões quando há total liberdade de inquirição, criticismo e assim por diante.

Assim como com o cristianismo…

O cristianismo desmoronou, ao menos na Europa. Talvez não no Brasil, mas provavelmente irá ocorrer aqui também. Veja a França, por exemplo. Eu estava lendo uma edição de Flaubert voltada para crianças de 16 anos nas escolas e neste livro os editores entenderam que precisavam explicar a doutrina da trindade. Eles entenderam que não era possível ter expectativas de que as crianças soubessem o que era a doutrina da trindade ou a confissão, e assim por diante. E esse é o país que é chamado de “a filha mais velha da Igreja”. Se os editores deste livro estão certos, e eu acredito que devem estar, significa que ocorreu uma destruição praticamente completa do cristianismo na França. E o mesmo é verdade na Inglaterra.

Então se eu fosse um muçulmano e quisesse manter o Islã, eu iria pensar que a única forma de fazê-lo é o extremismo. É a única solução para o Islã. A menos que seja mantido pela força, irá se tornar apenas mais uma crença pessoal – não mais do que a crença nos chakras da terra ou nos poderes curadores dos cristais. E, claro, sempre houve em si um elemento de força: na doutrina aceita na Sunnah – e não estou certo sobre o islamismo xiita – da pena de morte para apostasia. Para mim, soa um pouco como a Máfia (risos).

Como eu disse, eles entendem que, a menos que seja mantido pela força, o Islã irá desmoronar. De certa forma esta violência representa um entendimento implícito de quão frágil é o Islã. Isto significa que ocorrerão incômodos terríveis nos anos que estão por vir. Mas não é uma ameaça existencial real, pois irá desmoronar.

Você acredita que movimentos da extrema direita europeia, como o Front National na França, podem usar essa ameaça do Islamismo como meio para ganharem poder?

Sim, é claro. Se eu fosse um líder de extrema direita eu iria me aproveitar de todo exemplo de conduta islâmica que nós não gostamos. Por exemplo, existem ruas em Paris que são bloqueadas por pessoas rezando. Eu também não gosto disto. Eu acho que essas pessoas deveriam ser retiradas. Deveria ser dito a elas “Não faça isso, pois se o fizer será preso por criar obstruções”. O fato de que ninguém toma essa atitude obviamente dá força ao Front National. Mas você disse que é uma organização de direita. Em certos aspectos, porém, é claro que é também de esquerda, pois evidentemente não é economicamente liberal. Muitas de suas prescrições econômicas são exatamente aquelas desejadas pela esquerda ou, ao menos, por parte da esquerda.

Ao final do livro você menciona os Estados Unidos e se este país poderia ou não seguir o mesmo caminho que a Europa adotou. Roger Scruton deu uma palestra na Heritage Foundation e mencionou o livro A Decadência do Ocidente de Oswald Spengler. De acordo com Scruton, o que Spengler não previu foi a emergência dos Estados Unidos e a ajuda dada pelos EUA à Europa após a Segunda Guerra. Parece-me que no século XXI os Estados Unidos estão mais fracos do que antes. Qual seria o papel dos EUA no mundo neste século?

Em certo sentido, esta perda de poder é inevitável, assim como o foi a perda de poder britânico. Disraeli disse que “o continente europeu não permitiria que o Reino Unido fosse a oficina do mundo para sempre”. Em outras palavras, você não pode manter sua dominação econômica para sempre, e isto já está acontecendo com os Estados Unidos. Eu sequer acredito que, estritamente falando, continue sendo o poder militar dominante que era. Eu não acredito que os Estados Unidos iriam à guerra contra a China, por exemplo. Se a China invadisse Taiwan eu não acredito que os EUA iriam protegê-la. Isto significa que não é mais o superpoder único que o foi. Os EUA sequer iriam atacar a Rússia caso ela invadisse áreas como a Geórgia, a Criméia ou os Países Bálticos. Os Estados Unidos viriam ajudar os Países Bálticos? Faria muito barulho, imporia sanções econômicas, passaria resoluções, mas não iria para a guerra, e é por isso que o povo nestes países está nervoso.

Mas eu não culpo os Estados Unidos, pois isso é uma consequência da situação. Não acho que pudessem fazer muito melhor. Contudo, muito do orgulho dos Estados Unidos consiste exatamente em ser este grande poder e, quando este poder está evidentemente perdido, a moral do país pode deteriorar.

Você tende a ser cético quanto à ideia de excepcionalismo americano, certo?

Ah, sim. Eu não acredito em excepcionalismo americano. Quero dizer, todo país é excepcional, pois todo país é único. O Brasil é diferente de todos os outros países. A América é um pouco diferente porque ao contrário da maioria dos países é um país ideológico. É fundado em uma ideia, ao menos em teoria, fato que não ocorre com a maioria dos países. A França, de forma similar, é um país ideológico. E o sentimento de excepcionalismo é perigoso. O orgulho vem antes da destruição, um espírito arrogante antes da queda, como diz a Bíblia.

Um tema recorrente de sua obra é o dos intelectuais e sua influência na sociedade. Muitos problemas da sociedade ocidental parecem ser resultado de certas ideias promovidas por intelectuais. Você entende que estes intelectuais eram moralmente corruptos ou estavam buscando a verdade e foram incapaz de o fazê-lo?

Acredito que uma mistura dos dois, assim como provavelmente a maioria dos seres humanos. Inclusive, eu mesmo. Eu não quero atribuir más ideias de pessoas ao fato de elas serem más ou corruptas, apesar de ser possível traçar a origem das suas ideias em fatores pessoais, como ocorre com qualquer um.

Se pegarmos Foucault, por exemplo, e isto é apenas uma teoria: o pai dele era um cirurgião e costumava acordar às 03 horas da manhã para salvar a vida de pessoas, e ele era de direita. Este era um tipo de humanidade prática que eu não acho que Foucault poderia ter igualado. Não acho que Foucault iria levantar alguma vez às 03 horas da manhã por causa de alguém. Esta é a minha teoria, pode ser absurda e não posso provar. Mas pode ser que isto tenha o levado a ver naquilo que aparentava ser uma atitude humanitária algo por baixo que é menos respeitável. Assim, o pai dele acordando às 03 horas da manhã para salvar alguém, na verdade, seria apenas um exercício de poder, com o fim de se fazer importante.

Qual a sua opinião sobre o livro Pensadores da Nova Esquerda, de Roger Scruton?

É eficaz, pois ele leva os pensadores a sério. Devo dizer que é admirável que ele tenha se dado ao trabalho de ler centenas de páginas de Habermas (risos). É algo que vai além do dever, é heroico. É absolutamente impressionante que ele tenha pinçado o pouco de sentido de milhares de páginas de verborragia. Eu não o faria. Meu amigo Myron Magnet costuma dizer que você não precisa comer um pacote inteiro de manteiga para saber que está rançosa, mas Scruton comeu todo o pacote, e ele ainda se esforçou para ser justo. Scruton passou por esta enorme pilha de verborragia e manteve sua sanidade. Isto é admirável.

Na sua obra Em Defesa do Preconceito você emprega ao termo “preconceito” um sentido diferente daquele usual, certo?

Imagine que você está andando por uma rua em uma noite escura e vê se aproximando um homem jovem, com determinado modo de andar. Você sente medo. Agora, você não sente se ver uma velha senhora caminhando em sua direção. Isto é preconceito. Você está pensando em estereótipos. Por óbvio, na maioria das vezes o jovem não fará nada com você. Mas, ainda assim, é muito mais provável que ele o ataque do que a idosa. Se não tivéssemos este tipo de ideias, estaríamos no mundo como bebês. Você não pode limpar sua mente destas preconcepções, é impossível fazê-lo. Qualquer um que alegue não ter preconceitos é um mentiroso. O importante é ser capaz de controlá-los e de adaptá-los em resposta às situações.

O problema em dizer “Eu não tenho nenhum preconceito” é que se está fazendo violência a algo que se sabe ser verdade. Eu poderia te dar diversos exemplos de preconceitos que tenho, mas que preciso mudar à luz da experiência. Tenho preconceito contra tatuagem. Mas não é possível que a tatuagem tenha hoje o mesmo significado que tinha quando eu era criança, ou até mesmo o de 20 ou 30 anos atrás, porque um terço da população agora é tatuada. Então, eu tenho que controlar o meu preconceito. Eu ainda o tenho, tenho plena consciência disto. Eu tenho uma oposição estética à tatuagem também, mas originalmente meu preconceito tem por base meu entendimento de que 99% dos criminosos britânicos brancos são tatuados, e não acredito que seja apenas coincidência.

Qual ambiente mais te influenciou? Sua escola, sua comunidade, a universidade?

O que mais me influenciou foi ser médico e também viajar fez uma grande diferença para mim. Existe um verso em Kipling, no qual ele diz: “what should he know of England, who only England know?” E isto é verdade, pois, como afirmou Dr. Johnson: todo julgamento é comparativo. É preciso comparar as coisas. E viajar foi uma forma de conseguir fazer comparações. Por exemplo, eu trabalhei na Tanzânia, que é um dos países mais pobres do mundo, e lá descobri que as pessoas eram extremamente educadas. Eu não tinha nenhuma espécie de medo delas. Eles não tinham nada, absolutamente nada, mas eram muito educados. Então isto me levou a pensar sobre os efeitos da pobreza e que ela não necessariamente torna as pessoas brutais e agressivas.

As pessoas costumam me perguntar também qual autor mais me influenciou. Mas tenho dificuldade para responder. Eu nunca fui discípulo de ninguém, talvez porque seja muito egoísta.

Mas você acredita ter sido mais influenciado pela literatura do que por intelectuais?

Acho que sim. Chequei a esta conclusão tarde, mas Skakespeare disse praticamente tudo que qualquer um poderia pensar. Não há quase nada que alguém tenha pensado que não esteja em Shakespeare. E o que é assombroso em sua obra é que não é apenas o exterior que ele revela, mas também do interior. Ele te faz sentir aquilo que os personagens estão realmente sentindo. Não conheço nada parecido com isso.

Pergunta final: em seu livro O Prazer de Pensar, pelo exemplo de um incêndio, você demonstra que a primeira edição de um livro vale mais do que as demais, apesar de possuir o mesmo conteúdo. De forma similar, se você tivesse que salvar apenas um livro da sua biblioteca em um incêndio, qual salvaria?

É uma escolha estranha, mas salvaria o livro Sozaboy, de um escritor nigeriano chamado Ken Saro-Wiwa. Eu costumava encontrá-lo na Nigéria e quando ele vinha a Londres. Sozaboy é uma narrativa feita através da visão de um soldado nigeriano semialfabetizado, que é recrutado para a guerra civil ocorrida na Nigéria nos anos 70. Ele é capturado e luta pelo outro lado, sem ter ideia do porquê todos estão lutando. É um livro maravilhoso, é uma grande obra contra guerras. Quando eu estava na Nigéria, Saro-Wiwa fez uma dedicatória para mim no livro. Ele era originário de uma pequena tribo na Nigéria, na qual se localiza boa parte do petróleo do país. E a política da Nigéria se resume a quem controla o petróleo, assim como na Venezuela. Então ele iniciou um movimento político e lembro-me de ter dito a ele para não se tornar político, pois ele era um bom escritor e a Nigéria precisava mais de escritores do que de políticos. Ele, porém, insistiu e me disse “eles vão me matar”. De fato, ele foi enforcado. Criaram história sobre ele e o executaram. Então, eu salvaria este livro.

 




[RESENHA] Theodore Dalrymple: “Nossa Cultura ou o que restou dela” (por Pablo González Blasco)


Theodore Dalrymple: “Nossa Cultura ou o que restou dela”. E Realizações. São Paulo. 2015. 400 pgs.

Nossa cultura, ou o que restou delaO autor que está por trás do pseudónimo é Anthony Daniels, psiquiatra e escritor inglês, com experiência profissional em quatro continentes, incluídos trabalhos em prisões e hospitais de bairros pobres. A presente obra reúne uma coletânea de 26 ensaios, resultado das reflexões que o seu trabalho profissional lhe proporcionou ao longo do tempo. Uma atividade que o colocou junto a pessoas que são, nas suas próprias palavras, “cobaias da engenharia social parida no conforto das universidades pela elite politicamente correta e progressista”. Basta essa introdução para adivinhar o tom crítico que o escritor inglês emprega nos seus escritos.

O desenrolar dessa introdução não se faz esperar: surge nas primeiras páginas. “A fragilidade da civilização foi uma das grandes lições do século XX. Era de se esperar dos intelectuais – de quem imaginamos que pensassem mais longe e com maior profundidade-  que identificassem as fronteiras que separam a civilização da barbárie. Ledo engano. Alguns intelectuais abraçam o barbarismo, enquanto outros permanecem indiferentes, ignorando-o. (…) A civilização precisa de conservação tanto quanto de mudança. Nenhum ser humano é suficientemente brilhante a ponto de sozinho poder compreender tudo, e concluir que a sabedoria acumulada ao longo dos séculos nada tem de útil. (…). Os intelectuais têm que perceber que a civilização é algo que vale a pena ser defendido, e que um posicionamento hostil diante da tradição não representa o alfa e o ômega da sabedoria e da virtude. Temos mais a perder do que pensam”.

Os intelectuais politicamente corretos são alvo direto e constante das críticas de Daniels. “O intelectual se eleva acima do cidadão comum, que ainda se agarra quixotescamente aos padrões, preconceitos e tabus. Diferentemente dos outros, ele não é mais um prisioneiro de seu passado e de sua herança cultural; e prova a medida da liberdade de seu espírito em função da amoralidade de suas concepções”.

E as coisas se tornam ainda piores quando esses elementos pensantes simulam advogar em causa alheia.  São aqueles que “dão uma de pobre”, e o resultado seria cómico se não fosse trágico, pois ao invés de solidariedade com os necessitados, praticam uma paródia perversa deles. Neste ponto comenta os paradoxos da filosofia de Virginia Woolf que tanto se assemelham aos nossos intelectuais de esquerda de hoje, proveniente de altas camadas da sociedade, que defendem uma revolução na qual nunca se incluem. Criticam tudo sem construir nada. “VW ambiciona os dois lados, a aristocracia à qual pertence, e os excluídos. E quando se lhe oferece a inclusão, diz que não vale a pena. É uma versão sem graça de Groucho Marx, que não queria ser membro de nenhum clube que o aceitasse. Aquilo que é piada para Groucho Marx é alta filosofia política para Virginia Woolf”.

Os temas que aborda são variados, e o espectro reflexivo que o livro oferece é amplo. Mas um denominador comum é, sem dúvida, a crítica contumaz, não à miséria e às baixezas humanas, mas sim aos que podendo impedir tudo isto permanecem na inatividade, ou mesmo, justificam sua passividade com filigranas intelectuais que a ninguém convence.  Sublinha a conhecida afirmação de Edmund Burke:  “Homens de mente intemperada não podem ser livres. Para que o mal triunfe basta que os bons nada façam. Hoje em dia, a maior parte dos bons faz exatamente isso. Ao se temer mais a alcunha de intolerante do que a de perverso temos o cenário perfeito para que a malignidade esteja livre para prosperar”. E alerta contra o falso liberalismo que comprovamos diariamente: “O real propósito daqueles que defendem a denominada diversidade cultural é a imposição da uniformidade ideológica. A intransigência é a grande defesa contra a dúvida, impossibilitando a convivência, em termos de genuína igualdade, com outros que não compartilham da mesma crença”.

O problema do mal e os seus responsáveis ocupam grande parte dos ensaios, em variações sobre o mesmo tema. “Os homes cometem o mal dentro de um escopo disponível. Não se trata de demônios ou gênios malignos, mas daqueles que fazem o que podem para conseguir o que querem.  Quando as barreiras que seguram o mal são derrubadas, o mal floresce; e nunca mais acreditarei na bondade fundamental do homem, ou que o mal é um estado excepcional ou estranho à natureza humana”. Daí nasce o que denomina a frivolidade do mal, que naturalmente evoca a banalidade do mal da que falava Hannah Arendt, mas que vai além. “A capacidade do homem para a desumanidade transcende condição social, classe ou educação. O passado de alguém não se confunde com o seu destino e é de interesse próprio fingir o contrário. Cabe à responsabilidade e liberdade de cada um.  A elevação do prazer efémero que se sobrepõe à miséria de longo prazo, que se desencadeia sobre terceiros em relação aos quais se tem obrigações. Basta um exemplo: a mãe que põe para fora sua própria filha porque o seu atual namorado (da mãe, entenda-se) não a quer em casa! ”

Faz uma crítica feroz à sociedade inglesa, que “ troca profundidade por superficialidade, pensando que levam vantagem nessa negociação. São como aqueles que pensam que o tratamento adequado para a constipação intestinal seja a promoção da diarreia (…) A espiral decadente da cultura, a perda do refinamento, o dignificar certos comportamentos por meio de representações artísticas que acabam promovendo-os, tudo isso não é trabalho de um momento. Roma não foi destruída em um dia (…) A transgressão carrega um bem por si, independentemente do que está sendo transgredido. Basta com quebrar um tabu e tornar-se herói imediatamente, desconsiderando-se o conteúdo do tabu. Hoje em dia para mostrar-se como homem de gosto artístico, é preciso se abster de quaisquer padrões e acolher todas as violações, o que, como disse Ortega y Gasset, caracteriza o vestíbulo do barbarismo”.

Recomenda a leitura de Shakespeare, que “dá respostas muito mais sutis do que qualquer ideólogo ou teórico abstrato, pois é um realista sem o cinismo, um idealista sem a utopia. E mostra claramente que a linha divisória entre o bem e o mal não passa pelos Estados, tampouco entre as classes, menos ainda entre os partidos políticos; mas percorrer todos e cada um dos corações humanos (…) A prevenção ao mal sempre requererá muito mais do que arranjos sociais: exigirá o autocontrole pessoal e uma limitação consciente dos desejos. Devemos reconhecer as limitações que a natureza nos impõe e nunca desistir do esforço por controlar os próprios impulsos”. Assim como sugere outros autores que ajudam a pensar: “Ler Stefan Zweig é reaprender tudo aquilo que, por meio da estupidez e do mal, fomos perdendo de forma progressiva, ao longo do século XX (…) Lembremos a afirmação de Orwell: a linguagem politizada é elaborada para que mentiras soem como verdades, e para dar solidez ao vento. ”

Propõe coragem moral para ir ao núcleo dos problemas da sociedade e não uma cosmética de formas, uma maquiagem do que é politicamente correto, e nos exime de qualquer responsabilidade.  “A fim de compensar a sua atual falta de compasso moral, surgem espasmos de bondade autoproclamada que passam a funcionar como substituto da vida moral. E adverte, com Jung, que o sentimentalismo é uma superestrutura para encobrir a brutalidade”.

Impõe-se, por tanto, aprender a contemplar o mundo, os exemplos bons e os ruins. E refletir para tirar consequências. “Quando leio algo sobre o Khmer Vermelho, ou sobre o genocídio em Ruanda, reflito longamente sobre minha vida, meditando um pouco sobre a insignificância dos meus esforços, o egoísmo de minhas preocupações e a estreiteza de minhas afeções (…) Ou aquela pianista tocando Mozart na National Gallery enquanto as bombas da Lutwaffe caiam sobre Londres, ou os quatro homens cultos que, esperando a Gestapo para serem presos (o que acabou não acontecendo) passaram a noite tocando um quarteto de Beethoven”.

Quando lia estas linhas lembrei daquela cena do filme Titanic, com os músicos tocando enquanto outros se desesperam para conseguir um lugar no bote salva-vidas. ‘Foi um prazer tocar com você esta noite’, diz um deles. O prazer de saber pensar, refletir, e atuar de acordo, destacando-se da fauna humana, do rebanho inconsciente. Um prazer que é também um dever, uma missão que nos cabe como homens. Para cumpri-la, a leitura pausada deste livro -em cómodas prestações, um ensaio por dia- é uma ótima ajuda.

González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/06/27/theodore-dalrymple-nossa-cultura-ou-o-que-restou-dela/#more-2659




A pobreza do mal – por Theodor Dalrymple


I. A única causa inquestionável da violência, tanto política como criminosa, é a decisão pessoal de a cometer. (Excluo aqueles casos raros nos quais está em jogo uma malformação neurológica ou distúrbio fisiológico). Deste modo, qualquer estudo sobre a violência que não leve em conta os estados de espírito é incompleto e, na minha opinião, seriamente insuficiente. É Hamlet sem o Príncipe.

Evidentemente, os estados de espírito têm também suas causas. Mas a procura por causas remotas ou supostamente últimas constitui freqüentemente o meio pelo qual evitamos a consideração de causas próximas, sempre inconvenientes ou desconcertantes. Tentamos esvaziar o mundo do seu conteú- do moral atribuindo tudo a forças impessoais que, naturalmente, só nós, espertos como somos, podemos remediar – logicamente, tão logo nos dêem o poder para tal.

Ironicamente, contudo, o hábito de se enxergar pessoas como exemplos de abstrações políticas ao invés de se olhar para a sua realidade concreta como indivíduos foi umas das causas mais poderosas da assustadora violência política do século passado. Matar um inimigo em virtude da raça ou classe à qual pertence é mais fácil do que matar o Sr. Smith ou o Sr. Jones. A própria extensão do massacre servia para assegurar àqueles que o cometiam de que estavam a serviço de algum propósito mais elevado, pois, caso contrário, jamais teria sido levado a cabo.

II

Meu interesse pelas causas da violência, se não foi de todo extenso em minha vida, ao menos tem sido bastante intenso. Por inúmeros anos, viajei por países fustigados pelo flagelo de guerras civis, inclusive na América Latina. Foi na América Central e do Sul que aprendi aquilo que talvez tivesse sido uma conclusão óbvia extraída dos livros de história, particularmente a da Rússia do séc. XIX, de que a violência política prolongada não é a expressão espontânea da frustração, da pobreza ou da revolta contra a injustiça, por mais gritantes que sejam, mas sim de disputas entre elites que competem entre si e entre facções ansiosas por se tornarem uma delas. Quanto à explicação das causas da revolta, muito mais importante do que as condições econômicas dos países foi a rápida expansão das universidades para além da capacidade da economia nacional de empregar os serviços dos jovens segundo o patamar a que eles julgavam ter direito com base no seu nível de educação. Revoltas violentas emergem não da miséria, mas do orgulho e da importância autoconferida, e depois frustrada.

Em nenhum outro lugar o papel das universidades no estímulo à violência foi melhor e mais catastroficamente ilustrado do que no Peru. De todos os movimentos de guerrilha latino-americanos que conheci, o Sendero Luminoso foi de longe o pior, e incomparavelmente o mais brutal. Vi certas coisas em Ayacucho, no auge da insurreição, que me convenceram de que, caso o Sendero não fosse desmantelado, o Peru se tornaria o próximo Camboja, e isso numa escala muito mais assustadora. De fato, a ambição do Sendero era levar o Ano Zero de Pol Pot ao mundo inteiro.

O Sendero não surgiu de uma revolta espontânea de camponeses oprimidos desde tempos imemoriais, como muitas vezes foi pintado, mas foi sim um filhote intelectual do professor de filosofia Abimael Guzmán (que tinha escrito sua dissertação sobre Kant), da Universidade de Ayacucho. Um maoísta insano que não hesitou em criar um culto absurdo da sua própria personalidade – vindo a ser celebrado por seus sectários como o “Presidente Gonzalo” –, Guzmán arregimentou seus primeiros recrutas entre os próprios discípulos. Era preciso um forte descolamento da realidade para que os estudantes tivessem se comportado da forma como se comportaram; coisa que foi proporcionada por uma aceitação acrítica das abstrações maoístas.

A Universidade de Ayacucho, que tinha encerrado as suas atividades no séc. XIX, foi reativada na segunda metade do séc. XX pelo governo peruano numa tentativa de estimular o desenvolvimento econômico numa região empobrecida, segundo os padrões do país. Ao invés disso, essa iniciativa provocou o terror num patamar raramente atingido em outros lugares, e uma bestialidade tão pavorosa, que até hoje tento afastar de minha memória aquelas cenas.

III

Em seguida fui para a Libéria, um país cujas frágeis infraestruturas e instituições foram completamente devastadas numa guerra civil supostamente conduzida em nome da justiça social e política, embora fosse a evidente expressão de uma vontade nua e crua de poder, bem como de enriquecimento ilícito. A história do país na década anterior fora um mergulho num caos e numa anarquia ainda maiores, no curso da qual um oitavo da população foi aniquilada, sendo cada uma das suas etapas acompanhada pela retórica dos propósitos mais elevados.

Conheci pessoalmente um dos líderes do último estágio enquanto estava na Monróvia[1]. Ele assinava como “Marechal de Campo Brigadeiro General Prince Y. Johnson”, e fui aconselhado a falar com ele pela manhã, já que pela tarde ele costumava tomar a sua arma automática e, sob influência do álcool e da maconha, sair atirando nas pessoas mais ao menos ao acaso. Johnson me disse que gostaria de se tornar, ao fim da guerra, um pregador religioso. Discorreu ainda sobre a necessidade de “eleições livres”, “justiça social” e assim por diante.

Um pouco depois, assisti a um conhecido vídeo de Prince Y. Johnson. Não foi fácil, já que na época não havia fornecimento de energia elétrica na Monróvia, uma vez que a usina fora destruída (assim como os bancos, as lojas, as escolas, a universidade e todo o resto). Todavia, consegui acesso a um dos geradores privados ainda em operação e a um projetor de vídeo. O que vi serviu para colocar em alguma espécie de contexto as aspirações e altos propósitos de Johnson.

Prince era o líder da facção que havia capturado o presidente anterior, Samuel Doe. O próprio Doe fora o líder dos soldados que haviam eliminado o seu predecessor, William Tolbert, matando-o brutalmente, bem como todos os membros do seu governo. Nos anos seguintes, Mestre Sargento Doe, com uma aparência algo manca e faminta, transformou-se no suave e gordo Dr. Samuel K. Doe (tendo-lhe sido concedido um doutorado honoris causa por uma universidade sul-coreana, como retribuição pelas concessões de direitos de exploração madeireira na floresta da Libéria – uma confirmação, se acaso fosse preciso, do grande dictum do mais tarde Marechal Mabuto Sese Seko, segundo o qual são precisos dois para que se possa falar em corrupção).

No vídeo Prince Y. Johnson – aquele da “justiça social” e das “eleições livres” – senta-se junto a uma escrivaninha enquanto bebe algumas latas de cerveja diante de Samuel Doe nu e acorrentado no chão. Entre um gole e outro, exige de Doe os números das suas contas bancárias em Londres; e quando este nega que tenha qualquer dessas contas, ele ordena ao seu assistente que tome uma faca e corte as orelhas de Doe a fim de encorajá-lo a falar.

Doe, deposto em nome da democracia e da justiça social, foi torturado até à morte por hemorragia.

Foi na Libéria que eu descobri o quão poderosa e irrestrita pode ser a revolta contra a civilização. É claro que eu tinha lido sobre essas coisas nos livros; minha mãe fora uma refugiada da Alemanha nazista. Mas não acreditamos realmente em algo até que o tenhamos visto com nossos próprios olhos; ou melhor, nada tem o mesmo impacto do que aquilo que vemos com eles.

A Libéria, antes da queda dos presidentes Tolbert e Doe era sem dúvida atrasada e primitiva em vários aspectos, mas não em todos. O hospital principal da capital, por exemplo, realizava nessa época cirurgias cardíacas com o coração exposto; um tipo de procedimento que requer uma infraestrutura altamente confiável e sofisticada. No tempo em que fui visitá-lo, entretanto, já estava completamente destruído, como todos os demais hospitais do país. Não falo de bombas ou morteiros; as estruturas estavam intactas. Delinqüentes, na verdade, tinham-no percorrido de cima a baixo, destruindo sistematicamente cada um dos equipamentos, do primeiro ao último, de modo a incapacitar seu funcionamento e eliminar qualquer possibilidade de reparo. O trabalho despendido nessa destruição foi considerável, e realizado sem nenhum outro objetivo que não fosse a própria devastação; a roda de cada uma das macas foi cuidadosamente serrada, e isso com um grau de atenção ao detalhe que teria sido absolutamente admirável caso se tratasse de uma tarefa de maior valor. E nada foi roubado: os restos de cada peça dos equipamentos foram mantidos no mesmíssimo lugar, como se fosse uma advertência dirigida a quem quer que pretendesse reavivar a instituição de que seus esforços seriam inúteis – pois o anjo da destruição retornaria.

IV

Resisti à conclusão de que essa revolta simbólica contra a civilização fosse algo peculiar ou exclusivo da África, o resultado de uma estrutura mental primitiva ou carente de sofisticação intelectual. Em primeiro lugar, jamais notei tal carência nos anos em que vivi por lá; o atraso em termos materiais nunca é um sintoma de atraso mental. E, além disso, uma leitura dos livros do jornalista francês Jean Hatzfeld sobre o genocídio na Ruanda bastaria para fazer desmoronar essa idéia.

Hatzfeld apresenta em seus livros entrevistas com grupos que sobreviveram ao genocídio e também com grupos responsáveis por ele. Posteriormente, ele os entrevistaria mais uma vez após estes últimos terem sido liberados da prisão e mandados de voltas às suas cidades lado-a-lado com seus vizinhos, aqueles que mesmos que antes tinham tentado exterminar. É difícil pensar em algo mais terrível de se narrar.

Mas os entrevistados dos livros de Hatzfeld falavam sobre o que tinham sofrido e realizado de modo eloqüente, e com uma sofisticação intelectual muito maior do que a que se espera de um cidadão médio em meu próprio país. Qualquer que tenha sido a causa do genocídio de Ruanda, não é possível se falar em incapacidade intelectual por parte dos cidadãos ou em uma simplória falta de noção do que estava em jogo em termos morais.

Um primatologista contou-me certa vez que 40% da discrepância entre países no que diz respeito ao nível de violência era atribuível a diferenças na taxa de crescimento populacional. Quanto maior o crescimento da população, maior a disseminação de violência política e criminosa. E, certamente, o crescimento populacional em Ruanda foi surpreendente: cada mulher dava à luz, em média, a nove crianças – e isso contando-se só as sobreviventes.

Todavia, esta explicação tão abstrata está muito longe de dar conta do que de fato aconteceu em Ruanda. Qualquer um que leia os livros de Hatzfeld não tem como não se espantar com a expansiva e prazenteira maldade dos criminosos, os quais, depois de um duro dia de chacina, costumavam festejar e dançar, antes de ir dormir alegremente exaustos. Eles estavam passando, literalmente, os melhores dias das suas vidas.

As barreiras civilizacionais normais tinham sido demolidas, e os preconceitos em favor do comportamento minimamente decente superado (quantas vezes não nos esquecemos de que os preconceitos, com a mesma freqüência com que nos impedem de ser civilizados, também nos mantêm civilizados). Talvez a civilização não passe mesmo de uma fachada que recobre nossa verdadeira natureza, como tantas vezes tem sido acusada; mas isso só faz dela algo mais, e não menos, essencial.

V

Após passar alguns anos vagando por guerras civis, retornei ao meu país, a Inglaterra, para exercer a medicina num hospital localizado num bairro pobre, e também na grande penitenciária que havia ao lado. O que descobriria nos próximos quinze anos alarmou-me mais do que qualquer coisa que tenha observado nos países assolados pela guerra pelos quais passei.

Até o meu retorno, tinha conservado uma visão levemente cor-de-rosa sobre meu país. O General de Gaulle começou as suas memórias com essa frase prosaica “toute ma vie, je me suis fait une certaine idée de la France” – toda a minha vida fiz uma certa idéia da França – mais especificamente uma idéia de glória e grandeza, de um país que era uma luminária para o mundo no que se refere a todas as artes da civilização. Bem, de certo modo eu fazia uma certa idéia da Inglaterra: de um país exemplar em matéria de civilidade, cujos habitantes mantinham uma visão intrinsecamente irônica da vida, o que lhes permitia agir com um louvável auto-controle. O que eu descobri foi precisamente o oposto.

Nos anos que se seguiram ao meu nascimento (ao qual não atribuo, é claro, nenhuma significância causal nessa matéria), meu país deixou de estar entre as nações mais civilizadas e livres do crime no mundo ocidental, para estar entre as mais inseguras e ameaçadas por ele. É como se, nesse intervalo, a população tivesse experimentado uma mudança radical de gestalt: o que era visto como bom era agora mau, e vice-versa. O auto-controle passou a ser visto como mera hipocrisia e (o que é muito pior) uma traição ao próprio eu. Uma visão sub-freudiana das conseqüências do controle sobre nossos desejos tinha tomado conta das pessoas. Não se acreditava mais que desejos arbitrários cresceriam a medida que fossem excitados; mas que, como um fluido num recipiente fechado, não podiam ser comprimidos, tendo de ser libertados de um modo ou de outro.

VI

Essa mudança de atitude ocorreu sem dúvida lentamente. Lembro-me, por exemplo, de um debate nos anos 70 sobre as conseqüências para o comportamento social do aumento crescente do nível de violência em programas de televisão. Os participantes dividiram-se em dois grupos principais: aqueles que acreditavam que a violência cada vez maior na televisão e no cinema seria imitada na vida real, com um correspondente crescimento da violência; e aqueles que, ao contrário, pensavam que isso teria efeitos catárticos, levando a uma queda nos níveis de violência na realidade.

De acordo com o primeiro grupo, aqueles que assistiam ininterruptamente a uma série de filmes ou programas de televisão violentos acabariam mais inclinados a cometer atos de violência. De acordo com o segundo, por sua vez, essas mesmas pessoas ficariam, pelo contrário, menos inclinadas a isso. Sua justificativa era que dentro de cada pessoa haveria um potencial fixo ou uma certa quantidade de violência concentrada, a qual tinha de ser descarregada tal qual eletricidade estática, fosse virtualmente pela imaginação, fosserealmente pelas vias de fato. Se a violência fosse descarregada pela imaginação, haveria conseqüentemente menos violência na realidade.

No debate, acabei por me alinhar instintivamente, e sem dúvida a partir de fundamentos inadequados, com a primeira escola de pensamento. Em minha época de estudante, havia visto o filme de Stanley Kubrick baseado no livro de Anthony Burgess, A laranja mecânica, e ficara horrorizado ao me deparar, fora das salas de cinema, com alguns jovens vestidos como o gratuitamente violento protagonista do filme. Não sei se esses rapazes chegaram alguma vez a cometer realmente um ato de violência, mas o simples fato de terem achado aquele personagem tão brutal uma figura atraente e digna de imitação era já algo suficientemente assustador. O bom senso sugeria naturalmente que era muito mais provável que aquela admiração gerasse a violência do que a inibisse.

Essa experiência, mesmo sendo uma evidência tão precária, inclinou-me psicologicamente a aderir à primeira (e mais cautelosa) linha de pensamento sobre o problema. Mas na verdade, até onde sei, as evidências indicam que as representações de violência na tela não levam de modo algum pessoas adultas normalmente pacíficas a se tornarem violentas. Todavia, crianças que crescem desde os primeiros anos expostas diariamente a uma boa dose destas representações ficam muito mais inclinadas – apenas estatisticamente, e não em todos os casos –  a adotarem um comportamento violento. Em sociedades no seio das quais, fosse por seu isolamento ou por qualquer outro motivo, a televisão foi introduzida em um estágio comparativamente tardio, verificou-se que os índices de violência não subiram imediatamente, mas dez anos depois; justamente no momento em que a primeira geração de crianças expostas a ela atingia a idade na qual se tornaram capazes, sem dúvida por razões biológicas, a cometer atos violentos.

Na Inglaterra, certamente as águas desse debate tornaram-se turvas em razão do problema da censura. Pois os liberais intuíram instintivamente que, caso ficasse provado que a violência nas telas acarretava de fato a violência na vida real, surgiria uma forte demanda pela censura. Diante desse risco, eles passaram a empregar um imenso esforço intelectual tentando negar as evidências que apontavam numa única direção – embora de fato estivessem longe de serem totalmente conclusivas. Esqueciam-se de que o fato de a violência nas telas efetivamente promover, segundo as estatísticas, a violência na vida real, não implica necessariamente que a censura seja a única solução; assim como do fato de que o álcool cause cirrose no fígado (com muito mais certeza do que a correlação entre as telas e a violência), não se segue que ele deva ser proibido. Poucos fins são tão desejáveis a ponto de justificarem o uso de quaisquer meios; e, do ponto de vista lógico, é perfeitamente possível aceitar que a violência nas telas leve à violência na vida real e ainda assim recusar o uso da censura, ao menos pelo poder público. Afinal de contas, os remédios se revelam com freqüência muito piores do que a doença.

VII

Uma nova versão desse debate surgiu com a retomada da psicologia evolucionista ou darwiniana. Segundo esse ponto de vista, em poucas palavras, nós, enquanto espécie, utilizamos a violência para preservar e promover a disseminação dos nossos genes. Isso explicaria, por exemplo, porque há uma tendência muito maior ao abuso e assassinato de crianças por seus padrastos ou madrastas do que pelos pais biológicos. Padrastos que assassinam seus enteados seriam como os leões que, ao se tornarem machos dominantes de seu respectivo grupo, matam os filhotes do antigo macho alfa. O novo leão não tolera – ou melhor, os seus genes não toleram – que a Dona Leoa desperdice as suas energias maternais promovendo ou disseminando os genes de outro leão em prejuízo das chances de sobrevivência e crescimento da sua própria prole. Isso valeria para os padrastos humanos em geral: eles não aceitariam que a mãe dos seus filhos biológicos atuais ou futuros se dedicasse a cuidar dos filhos de outro homem; e tampouco aceitariam gastar as suas energias com uma tarefa tão contraproducente do ponto de vista dos seus próprios genes.

É desnecessário dizer, entretanto, que tal hipótese – por mais atraente que possa ser para aqueles que, como alternativa às concepções de Marx e Freud, buscam uma explicação total e definitiva para o comportamento humano – jamais será suficiente para explicar a variação, no tempo ou no espaço, das taxas de violência homicida contra crianças. Não explica, por exemplo, porque a maioria dos pais adotivos não mata ou abusa de seus filhos não-biológicos, embora, segundo essa concepção, isso devesse ocorrer com maior freqüência do que no caso dos pais biológicos. Tampouco explica porque a relação entre padrasto e filho, antes rara na Inglaterra, tenha se tornado tão comum nas últimas décadas. Quando eu nasci, menos de 5% dos nascimentos procedia de pais não casados; agora a taxa é de 42%, e segue crescendo. É provável que pelo menos 40% das crianças britânicas de hoje passem, ao menos em algum período da infância, pela experiência de morar com um pai ou mãe solteiros, ou casados com outros parceiros (ou, evidentemente, ambos ao mesmo tempo). Certamente, hoje em dia é mais comum que crianças britânicas tenham uma televisão em seus quartos do que um pai em suas casas: com efeito, há duas vezes mais crianças britânicas (36%) que nunca desfrutam de uma refeição com outros membros da família, do que crianças que não têm um televisor em seus quartos (21%). Esses desdobramentos recentes, bem como o correlato crescimento do número de paternidades putativas (envolvendo padrastos e madrastas), dificilmente podem ser explicados pela psicologia evolucionista; a não ser que se valham do tipo de ação de retaguarda intelectual tal como a usada pelos astrônomos que queriam preservar a todo custo o sistema ptolomaico contra o desafio copernicano.

VIII

Seja como for, fiquei chocado, e bastante perturbado, com o nível de violência que descobri entre os meus pacientes na Inglaterra. Tal violência não era de modo algum uma resposta ao desespero econômico, ao menos em nenhum sentido muito óbvio ou direto, como a fome ou a falta de moradia. A carência total de meios materiais, do tipo que meu pai presenciou na zona leste de Londres durante e logo após a Segunda Guerra, já havia sido completamente erradicada na época. De fato, meus pacientes, embora relativamente pobres segundo os padrões médios da sociedade em que viviam, tinham acesso a confortos e comodidades que teriam feito Luís XIV perder o fôlego de surpresa e admiração. (Realmente não há modo melhor de avaliar o progresso material conquistado por nós do que considerar as doenças e o tratamento médico de gente como Felipe II da Espanha, Luís XIV da França e Carlos II ou George III da Inglaterra. Quase ninguém, nos dias de hoje, sofre as agonias experimentadas por esses monarcas ou as atrocidades a que foram submetidos pelos médicos da época). Mas essa era uma consolação inútil para meus pacientes, que se comparavam não a Luís XIV, mas aos seus contemporâneos ricos.

O desespero nas sociedades contemporâneas não é absolutamente um estado psicológico que possa ser explicado pelo desconforto ou pela frustração de quaisquer necessidades materiais. Há muito se sabe que nas sociedades ocidentais o suicídio é tão freqüente nas classes sociais mais altas quanto nas mais baixas. Hoje em dia, não só as classes baixas não sofrem, como outrora, carência em nível calamitoso, como também as mais altas não são minimamente afetadas por ela. Assim, nas sociedades modernas, é impossível sustentar que o desespero e a angústia estejam diretamente relacionados às circunstâncias econômicas.

Entretanto, o desespero desolador dos meus pacientes – entre os quais contavam-se tanto vítimas como autores de violência doméstica – estava fora de qualquer dúvida. Devo observar que examinei entre 10 e 15 mil casos de tentativa de suicídio, envolvendo graus variáveis no que diz respeito à vontade de morrer. A cada ano, procuravam-me mais ou menos 400 mulheres que tinham sido espancadas pelos seus parceiros, e por volta de 400 homens que tinham acabado de espancar suas parceiras. Era também consultado por um número cada vez maior de mulheres que tinham cometido atos violentos – mais de cem por ano. De fato, a violência por parte das mulheres aumentava rapidamente. É como se elas estivessem determinadas a provar que eram iguais aos homens em tudo… até na violência.

A minha amostragem do material humano inglês era, evidentemente, peculiar; mas estava longe de ser pouco numerosa. Cada paciente contava-me não só coisas sobre a sua própria vida, mas também sobre as vidas de quatro ou cinco pessoas conhecidas. Em todo esse tempo no qual trabalhei no hospital, devo ter ouvido sobre as vidas de pelo menos 5 a 10% das pessoas que viviam numa cidade de um milhão de habitantes. Uma vez que havia outros dois hospitais muito parecidos com o meu na cidade, nos quais números similares de tentativas de suicídio eram tratados, pode-se concluir razoavelmente que as histórias que me eram contadas representavam as vidas de algo em torno de 15 a 30% de sua população. E isso constituía um número mínimo, porque evidentemente nem todos os que eram tratados tinham um parente próximo ou amigo que tivesse tentado o suicídio. Em outras palavras, a violência estava de fato se alastrando amplamente.

Havia também outras razões para se supor que ela estava crescendo. O número de pessoas que tomavam overdoses tinha aumentado, enquanto a população mantinha-se mais ou menos estável; o número de homens que haviam ingerido overdoses crescera de modo particularmente rápido, tanto absoluta quanto relativamente. Quando comecei a trabalhar no hospital, mais mulheres do que homens tomavam overdoses; quando saí era o contrário.

Os homens que tomavam overdoses eram predominantemente jovens, e mais ou menos um quarto deles tinha acabado de cometer violência contra suas namoradas. É claro que a intensidade dessa violência variava, mas normalmente tratava-se de algo suficientemente assustador, fato confirmado pela natureza das histórias contadas pelas vítimas. Além disso, os jovens que cometiam violência contra suas namoradas eram também freqüentemente violentos no trato com outras pessoas: sua violência era fruto de uma propensão geral.

Não desenvolvi nenhuma espécie de tipologia formal baseada nesses atos, mais eis uma pequena amostra: estrangulamento, muitas vezes até a perda de consciência; chutes no estômago com a finalidade de provocar abortos; arrastar a mulher no chão pelos cabelos; bater a sua cabeça contra uma janela e mesmo através dela; trancafiá-la num armário por um dia inteiro; queimá-la com cigarros acesos; esmurrá-la repetidamente no rosto; ameaçar jogá-la de uma sacada situada muito alto (um homem chegou inclusive a suspender sua namorada pelos tornozelos da sacada do décimo primeiro andar).

IX

Assim, das duas uma: ou essa violência estava se tornando mais freqüente, ou era o hábito de se tomar overdoses após praticá-las que aumentava. A primeira hipótese parece mais provável. Mas porque essas pessoas tomavam overdoses depois de se comportar dessa maneira?

Haviam três razões principais para isso. A primeira, e menos freqüente, era que, depois da mulher violentada apresentar uma queixa à polícia, o seu parceiro tomava uma overdose a fim de deixar claro que ele sofria de algum desequilíbrio, psicológico ou fisiológico, coisa que ajudaria a provar sua inocência caso o inquérito chegasse à Justiça.

A segunda razão era um pedido de perdão dissimulado à mulher agredida, que ameaçava deixá-lo. Era dissimulado porque, como veremos adiante, a sua violência era deliberada, astuta, calculada e propositada. Contudo, as desculpas fingidas muitas vezes eram bem-sucedidas. Elas sempre traziam um componente de chantagem emocional: “Se você me deixar eu me mato e você jamais será capaz de se perdoar por isso”.

A terceira razão era talvez um pouco mais sutil. A maioria das pessoas desejam ter uma boa imagem de si para si mesmas. Elas aceitam implicitamente a visão de Rousseau (sem nunca ter ouvido falar em Rousseau, é claro, já que a influência intelectual é muitas vezes indireta), segundo a qual o homem nasce puro e bom, mas as influências perturbadoras do meio social acabam por pervertê-lo. Tomando uma overdose e recebendo atenção médica, o homem violento encontra os meios de se persuadir a si mesmo de que não há nada errado com ele – pois caso contrário ele não teria tomado uma overdose –, e de que ele é, na verdade, a maior vítima da sua própria conduta. Ao mesmo tempo, sendo a mente humana um instrumento complexo e contraditório, ele sabe perfeitamente bem que continuará a cometer os mesmos atos violentos já que eles servem aos seus propósitos.

Pessoas assim buscam apresentar a sua violência como uma espécie de enfermidade neurológica incontrolável, um pouco como um ataque epilético. Seriam, assim, incapazes de evitá-la: “ela simplesmente toma conta de mim”, como dizem sempre. Estranhamente, trata-se de uma idéia que a própria mulher agredida tende a abraçar de forma entusiástica. Ela prefere não acreditar que o homem a quem ama, ou que crê amar, seja de fato um perverso que age por pura maldade; que a sua imagem dele era uma mentira, e seus critérios suspeitos. Deseja continuar ao lado do homem que a espancou, desde que ele passe por um tratamento. Assim, ela joga o jogo de faz-de-conta de seu parceiro, fingindo, como ele, que tudo é decorrência inevitável de algum distúrbio clínico do qual é inocente.

Participei de conversas como a seguinte talvez milhares de vezes:

Mulher agredida: Ele precisa de ajuda, doutor.

Eu: Que tipo de ajuda?

Mulher agredida: Algo toma conta dele. Os seus olhos ficam estranhos, e é como se ele não estivesse mais lá. Ele não consegue se controlar, doutor, ele me bate… me estrangula… dá socos…

Eu: Diga-me uma coisa: por acaso ele faria isso na minha frente?

Esta única perguntinha, bastante simples e óbvia, tem muitas vezes a força de uma epifania para a mulher agredida. Como a resposta é obviamente “não”, a conclusão inescapável é que o parceiro é de fato perfeitamente capaz de se controlar e simplesmente opta por não fazê-lo. Deste modo o auto-engano da mulher acaba por se revelar repentinamente nesse diálogo. Trata-se de um momento sem dúvida desconfortável para a mulher violentada, pois, em primeiro lugar, ninguém gosta de se ver exposto às suas próprias mentiras, mas, sobretudo, porque isso transfere do médico para ela mesma o ônus da responsabilidade por tomar alguma atitude em relação ao problema, e a obriga a fazer uma escolha nua e crua entre duas alternativas, ambas inevitavelmente dolorosas: aceitar o parceiro como ele é ou simplesmente abandoná-lo. Ao mesmo tempo, a dissolução do mecanismo de auto-engano é experimentada como um alívio; é como se um fardo fosse subitamente tirado dos seus ombros, pois com algum grau de consciência é certo que no fundo sempre soube que estava contando uma mentira para si mesma. Manter um fingimento é um trabalho árduo, e para se dissimular uma mentira é necessário um grande dispêndio energia – especialmente quando se trata de mentir para si mesmo. Mas então a mulher torna-se capaz de ver o absurdo do seu auto-engano, bem como de rir dele.

X

De modo igualmente tortuoso, o agressor sabe perfeitamente bem que não se sente culpado pelo que fez, que só está fingindo a vontade de superar o seu problema, e que, na realidade, pretende continuar a se comportar exatamente como antes. Mas porque ele age assim? Quais possíveis vantagens aufere através da sua conduta violenta?

Em primeiro lugar há o amor puro e simples pela crueldade em si mesma: é prazeroso, ao menos para algumas pessoas, causar sofrimento a outras. Mas mais importante é entender a natureza do desejo sexual tal como se manifesta na Inglaterra contemporânea.

Todas as pessoas – e particularmente os homens – buscam conquistar, por um lado, uma liberdade sexual absolutamente irrestrita e, por outro, a exclusividade total da posse sexual sobre outra pessoa. Não é difícil ver como esses dois desejos completamente incompatíveis, quando disseminados massivamente por uma população (como de fato vem ocorrendo na nossa), levam à violência e a um caos incontrolável. Pois se um homem é deliberadamente um predador sexual; se, por exemplo, sua namorada atual foi “roubada” de seu melhor amigo – um padrão recorrente, diga-se de passagem –, ele naturalmente acreditará que cada um dos outros homens age do mesmo modo, e que, portanto, todos eles representam uma constante ameaça a ele e à sua masculinidade. Ele será totalmente incapaz de confiar em alguém; sequer em seus assim chamados “amigos”. Isso explica porque os infiéis incorrigíveis são também, com freqüência, ciumentos mórbidos. Explica também o motivo pelo qual tantos casos de violência doméstica começam com um homem olhando diretamente para a mulher de outro em algum bar ou casa noturna. O sujeito acredita que está sendo desafiado diante de sua mulher, a qual estaria sendo cogitada por outro como uma possível parceira sexual. O fato de que em outras circunstâncias ele se comporte exatamente do mesmo modo só faz aumentar ainda mais a sua indignação.

Nada disso importaria muito se a exclusividade da posse sexual não fosse tão importante para esses homens – mas o problema é que ela é. Eles não são sutis o suficiente para disfarçar o seus instintos predatórios, mantendo-os em segredo; o velho hábito de lançar um véu sobre eles, e de disfarçá-los como se fossem alguma outra coisa, subitamente desaparece. Uma irrupção crua leva instantaneamente à violência real.

Uma das maneiras que um homem que vive em tais ambientes tem de assegurar a exclusividade da posse sexual sobre sua mulher, ao menos até o momento em que ela o deixe definitivamente, é ameaçá-la com agressões arbitrárias e imprevisíveis. O homem que vê em todos os outros um possível predador sexual será, decerto, extremamente ciumento e possessivo; e usará a suposta inclinação à infidelidade da parte de sua mulher como um pretexto para agredi-la. Ela, que é inocente dessas acusações, emprega uma quantidade enorme de tempo e energia mental tentando provar essa inocência – o que, evidentemente, não pode ser feito, já que, para começo de conversa, no fundo ele não acredita realmente nessa culpa – e impedir a todo custo os acessos de cólera do parceiro. Sendo esses acessos completamente arbitrários, ela nada pode fazer para evitá-los: eles são exercícios de profilaxia e não de punição. Uma mulher que está constantemente preocupada com uma agressão iminente e com os meios de impedi-la é incapaz de olhar para qualquer outro homem. Pelo contrário; os seus pensamentos estão incessantemente concentrados no homem que a agride ou violenta – e é precisamente isso o que ele quer. A sua violência pode portanto ser arbitrária, mas não é, como se vê, de todo desprovida de propósito.

Antes que eu passe a considerar as razões pelas quais a exclusividade da posse sexual sobre outro tornou-se algo tão importe numa sociedade que, contraditoriamente, disseminou tão abertamente a liberdade sexual, permitam-me uma brevíssima digressão a fim de mostrar mais uma vez que, infelizmente, o homem é constituído de tal forma que o domínio sobre os outros lhe é extremamente gratificante. A partir do momento em que as barreiras e limites desmoronam, todo um mundo de prazer sádico irrompe; essa é precisamente a razão pela qual as multidões excitam tanto os seus participantes, e pela qual a conservação dessas mesmas barreiras e limites é uma missão tão fundamental para a sociedade. Um dos aspectos mais horripilantes das fotografias tiradas na prisão de Abu Ghraib era o prazer evidente saboreado pelos agressores. Mesmo que o gozo do sadismo não seja universal entre os homens, ele é suficientemente comum e arraigado para, dadas as condições propícias, disseminar o inferno sobre a Terra. Uma tese minha, embora fundada num argumento um pouco diferente, é que foi a política social liberal inglesa, difundida por muitos anos de propaganda liberal, aquilo que permitiu, numa parcela tão grande do país, o desenvolvimento e a infestação de tal inferno.

XI

Agora voltemos à questão das razões pelas quais a exclusividade da posse sexual de outrem é tão importante para tantos jovens que, paradoxalmente, não acreditam em qualquer espécie de restrição à sua própria liberdade. A resposta não tem, evidentemente, nada a ver com o amor – a não ser que seja amor ao próprio ego. O ciumento não ama o objeto do seu ciúme, mas a idéia do seu poder e da sua posse sobre ele.

Nesse ponto, vale a pena refletir sobre três características da sociedade ocidental moderna, da qual é exemplo a britânica. Em primeiro lugar, ela é altamente desigual num ambiente cultural no qual a igualdade é tida como a única base ética da sociedade, sendo de fato o critério absoluto do qual se vale para testar a legitimidade moral. Em segundo, ela é meritocrática, tanto na sua auto-imagem como no fato de que não há nenhuma barreira legal para que uma pessoa ascenda socialmente (ou desça, é claro, mas poucas pessoas se preocupam com esse corolário). Na verdade, essas barreiras legais são inclusive proibidas pelo sistema jurídico. Em terceiro e último, ela é grosseira e cruamente materialista: ou seja, tanto o sucesso como o fracasso são medidos quase que exclusivamente em função das posses materiais, ou pela capacidade de uma pessoa de adquiri-las. É por isso que entre os jovens da zona na qual eu trabalhava havia uma intensa preocupação em usar roupas de marca com logotipos visíveis, cuja posse conferia status, e cuja ausência significava inferioridade. Tive conhecimento de um caso de disputa entre jovens envolvendo o status relativo a uma marca dos tênis usados por um deles, a qual começou com insultos e terminou em assassinato. Nunca o dictum de Freud – e eu não sou freudiano – sobre o narcisismo envolvendo minúsculas diferenças manifestou-se tão clara e tragicamente.

Esses jovens tão violentos procediam de camadas sociais mais baixas do ponto de vista econômico e educacional. Eles tinham poucas chances de sucesso real por não possuírem nem as habilidades nem os talentos necessários para tanto. O seu estado psicológico era uma mistura altamente inflamável: de revolta e ressentimento, por um lado, em razão da frustração de direitos derivados do igualitarismo – o fundamento exclusivo das nossas concepções de justiça –; e, por outro, da consciência do fracasso pessoal e de inadequação, uma consciência excitada pela natureza meritocrática da sociedade. Numa sociedade meritocrática, afinal de contas, o sucesso é merecido: o corolário disso é que o fracasso é igualmente merecido. E quando a posse material é o único critério de sucesso, aqueles que têm poucas posses (ainda que algumas delas tivessem sido suficientes para deixar o Rei Sol maravilhado) são tidos por homens fracassados. Mas homens fracassados com excesso de testosterona.

Uma compensação por esse fracasso só pode ser procurada em outro lugar, em um campo diverso. O controle absoluto sobre uma mulher compensa a total ausência de controle em outras esferas das suas vidas. Um jovem pode não valer nada a partir do momento em que põe o pé fora de casa (embora tente provar aos outros com a sua jactância e o seu andar malicioso que vale alguma coisa), mas dentro do lar ele é mais poderoso do que Stalin. Pela sua violência, ele se torna, ao menos para uma pessoa, todo-poderoso.

A sua violência é genérica, entretanto, e só pode ser inibida pela presença de pessoas mais fortes, mais capazes de a exercer do que ele. Em parte, essa violência se deve também à sua educação. Numa situação de colapso social generalizado, a disciplina nunca se funda sobre princípios, sobre aquilo que em geral é tido por correto praticar. Ela depende, na verdade, do ânimo arbitrário e momentâneo de pessoas que são fisicamente mais poderosas do que o indivíduo, e do que ele é capaz de fazer em tal situação. Nessas circunstâncias, todas as relações humanas se convertem em relações de poder, como na questão de Lênin colocada em forma sintética: “Quem para quem?”; ou seja, quem faz o que para quem? E um poder desse tipo constitui um jogo de soma zero: o poder de um homem é a impotência de outro.

* * *

A violência, portanto, não é jamais uma pura e simples reação a condições sociais adversas. Não é como a chuva, que cai tão logo se verifiquem as devidas condições climáticas. E tampouco é em si mesma um sinal de injustiça social ou de uma situação política intolerável (uma prova disso é que nem sempre as sociedades pacíficas, não-violentas e isentas de crimes são locais onde o direito e a legalidade prevalecem). A violência jamais poderá ser compreendida corretamente se não levarmos em conta as idéias que as pessoas têm sobre o que é certo; o que é justo; o que é correto; o que cada um merece; quais são as conseqüências para quem a pratica; e, acima de tudo, sobre o que é realmente importante na vida. E isso prova a verdade daquele grande dictum de Pascal: esforcemo-nos para pensar com clareza, pois isso constitui o princípio da moralidade.

Theodore Dalrymple é um dos pseudônimos literários do psiquiatra inglês Anthony M. Daniels. Daniels trabalhou no Zimbábue, Tanzânia, África do Sul, Kiribati, e mais tarde no east end londrino e, até aposentar-se em 2005, em um hospital e uma penitenciária situados em uma área de cortiços de Birmingham. Tem escrito regularmente em diversas publicações inglesas e americanas sobre cultura, arte, política, educação e medicina. Publicou já várias coletâneas de ensaios e relatos de viagens, dentre os quais: Fool or Physician: The Memoirs of a Sceptical Doctor(1987), The Wilder Shores of Marx: Journeys in a Vanishing World (1991), If Symptoms Persist: Anecdotes from a Doctor (1994), Life at the Bottom: The Worldview That Makes the Underclass (2001), Our Culture, What’s Left of It: The Mandarins and the Masses (2005), Making Bad Decisions. About the Way we Think of Social Problems (2006), In Praise of Prejudice: The Necessity of Preconceived Ideas (2007), Not With a Bang But a Whimper: The Politics and Culture of Decline (UK edition; 2009).

Tradução de Julio Lemos e Marcelo Consentino.


[1] Capital da Libéria.

Texto publicado na revista-livro do IFE Dicta&ContraDicta, edição nº 4.