Arquivo da tag: Sully Prudhome

image_pdfimage_print

A verdadeira tradição

Literatura | 08/07/2014 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Nunca me sai da memória o poema Gesso, de Manuel Bandeira – para o meu gosto, o maior poeta brasileiro. “Essa minha estatuazinha de gesso quando nova, o gesso muito branco, as linhas muitos puras” são os versos iniciais. Uma rápida paráfrase: a partir de um pequeno acidente doméstico – a queda de uma estátua de gesso – o poeta realiza uma consideração filosófica. Após colar os pedaços do objeto, olha novamente para a estátua refeita e conclui: “só é verdadeiramente vivo o que já sofreu”. A simplicidade profunda!

Pois bem. Outro dia estava lendo uma coletânea de poemas franceses traduzidos por Guilherme de Almeida. Encontrei um chamado o verso partido, de Sully Prudhome. São poemas bem diferentes, já que o do brasileiro é em versos livres e o de Prudhome é composto por quadras de versos de oito sílabas. Contudo, o tema é semelhante. O poeta francês conta que um vaso é derrubado por um leque. Ele trinca, mas ninguém nota. Por isso “Ill est brise, n’y touchez pas” (“já se quebrou, não toquem não”). Assim ocorre com o coração de quem teve uma desilusão amorosa.

Essa semelhança em poemas tão diferentes lembrou-me do que é a tradição.

O assunto não é nada novo, já que Cícero, com a herança grega em mãos, refletiu sobre a tradição e modos de não ser mero imitador daquela cultura.Tratava-se, então, de uma questão relevante, já que a literatura romana “nasce sob o signo da tradução, e sob o impulso de um grego de Tarento, Lívio Andronico, que traduz a Odisseia e ainda outras tragédias e comédias gregas.” (Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica II – Cultura Romana, Calouste Gulbenkian, 2002, p. 63).

Também Petrarca, tido como o primeiro dos humanistas dizia, a respeito da relação da arte nova e a tradição: “Devemos cuidar para que, quando uma coisa for semelhante, muitas sejam diferentes, e o que é semelhante deve estar tão escondido que só possa ser captado pela busca silenciosa da mente, sendo mais inteligível do que descritível. Portanto, devemos recorrer ao tom e à qualidade interiores de outro homem, mas evitar suas palavras, pois um tipo de semelhança está oculto, e o outro salienta; uma cria poetas, a outra, macacos” (Francesco Petrarca, Le familiari, XXIII, apud. Ernst Gombrich, Norma e forma, Martins Fontes, 1990, p. 161).

Bandeira leu Prudhomme e escreveu: “Foi ele que me deu a vontade de estudar a prosódia poética francesa” (Itinerário da Pasárgada, p. 43). Vase brise e Gesso mostram o valor de uma tradição bem entendida: não mera imitação, mas recriação a partir de tópicas semelhantes ou iguais.

A morte do antigo sempre acaba na morte do novo que, sem referência, pensa que cria, mas repete. Quando cria, é vazio, inflado apenas de… nada.

Eduardo Gama (IFE Campinas)