Ativismo, aborto e Estado de Direito


O STF irá apreciar uma ação que discute a criminalização do aborto. É notória a polêmica que envolve o tema no Brasil e no mundo. Em consequência, os lados pró-vida e pró-escolha estão se movimentando, manifestando e debatendo.

O problema é que novamente a sociedade entra em conflito em razão do mérito de processos que chegam ao Supremo, esquecendo-se de um problema preliminar.

Caso o aborto seja legalizado pela via judicial, muitos dos que se alinham ao lado pró-escolha irão comemorar. Mas faz sentido comemorar uma decisão nesse sentido?

A questão é que a legalização através do STF representaria mais uma lamentável manifestação de ativismo judicial. A Constituição Federal protege a vida como direito fundamental, não fazendo qualquer permissão ao aborto (como o faz em relação à possibilidade de pena de morte nos casos de guerra). Ainda, o Pacto de San José da Costa Rica, norma de status supralegal, prevê expressamente que a vida deve ser protegida desde a concepção. O legislador ordinário, no Código Penal, regulamentou a proteção à vida, prevendo como crimes o homicídio, o infanticídio e o aborto – permitindo sua prática em apenas duas hipóteses: risco de vida para a mãe e gravidez decorrente de estupro.

Considerando as normas acima expostas, é evidente que somente “saltos triplos carpados hermenêuticos” poderiam justificar a ampliação, à revelia do Congresso, da permissão do aborto no país. Qualquer exercício honesto de interpretação das normas vigentes confirma que não há nenhuma inconstitucionalidade na criminalização da conduta, tanto que eventual decisão nesse sentido necessariamente se baseará somente em uma mistura confusa de princípios abstratos.

Uma decisão com estes fundamentos poderia ser traduzida da seguinte forma: a Constituição é aquilo que os Ministros dizem que ela é.

Quantas decisões semelhantes não temos visto nos últimos anos? Financiamento público de campanha, casamento entre pessoas do mesmo sexo, possibilidade de cumprimento da pena antes do trânsito em julgado da decisão criminal etc.

A Corte se inclina, por vezes, para um ativismo progressista, outras para um ativismo conservador. A sociedade, impotente frente a este poder ilimitado, aplaude ou vaia conforme as preferências pessoais. Até quando?

Enquanto não percebermos que o papel do STF é interpretar a Constituição – e não criar uma nova -, estaremos endossando um sistema político que se distancia da Democracia e do Estado de Direito (com seus procedimentos e limitações a poderes). Em um de seus famosos votos, o falecido juiz da Suprema Corte americana, Antonin Scalia, resumiu de forma brilhante a gravidade de nos submetermos a um regime em que alguns juízes não eleitos decidem, de forma ilimitada, o que é constitucional ou não: “A decisão de hoje diz que meu governante, e o governante de 320 milhões de americanos costa-a-costa, é uma maioria dos nove juízes da Suprema Corte. (…) Essa prática de revisão constitucional por um comitê não eleito de nove, sempre acompanhada (como hoje) por um extravagante louvor à liberdade, rouba do povo a mais importante liberdade afirmada na Declaração de Independência e conquistada na Revolução de 1776, a liberdade para se autogovernar”.

Salvo em situações excepcionais, é dever de todos respeitar as leis que existem em nosso país, bem como os trâmites legais para alterações e mudanças normativas. Não se olvida que a vida, a saúde, a liberdade e a intimidade são direitos fundamentais.
Mas também é fundamental para a vida em sociedade que os procedimentos sejam respeitados, que as decisões tomadas pelo povo sejam observadas, que estas se deem de acordo com uma Constituição que, apesar de defeituosa, não estabelece um regime totalitário ou injusto e, por fim, que nenhum poder torne-se ilimitado.

Editores IFE São Paulo




ADPF 442: aborto processual


Na falta de uma agenda parlamentar mais consistente, o partido de “oposição à esquerda”, cujo nome já se perde na contradição de expressões que lhe deram, resolveu ficar na oposição da democracia: ingressou com uma ação constitucional (ADPF 442) com o fim de atropelar o natural e insubstituível debate legislativo sobre o aborto por meio de uma resposta jurisdicional do STF, o qual, no frigir dos ovos, se verá, mais uma vez, tentado a prodigalizar outra aula de ativismo judicial.

Explico. Esse partido, que porta a única dimensão existencial em que o socialismo rima com a liberdade, pleiteia a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação do feto, hipótese não contemplada pelos dois incisos do artigo 128 do Código Penal.

Em outras palavras, o partido pretende, por meio do exercício do direito à jurisdição, cujo véu, diáfano, permite vislumbrar o autoritarismo da atitude, que as onze cabeças iluminadas de nossa Suprema Corte, ao fim, acabem por legislar no lugar dos 513 deputados e 81 senadores que foram eleitos para isso.

Como diz a turma que defende o homicídio uterino, “precisamos falar de aborto”. Realmente. Mas venhamos e convenhamos: os argumentos lançados em prol da execução de seres inocentes e indefesos já viraram um grande e entediante monólogo de um mesmo e estultificante discurso pleno de razões e nulo de razão.

A ADPF 442, um verdadeiro e próprio panfleto abortista, estampa, em sua inicial, aquele monólogo, cujos argumentos, no limite, dada a inconsistência lógico-teórica invencível, mais lembram a arte de esgrimir a parede. Ei-los: retórica utilitária (“o futuro mutilado de adolescentes grávidas ou de mulheres abandonadas já com muitos filhos”), criminal (“só se punem as mulheres pobres”), sanitária (“abortos clandestinos matam muitas gestantes”), feminista (“sou dona do meu corpo”) ou eugênica (“sofre disso ou daquilo e não tem viabilidade existencial”).

Não se pretende dissecar todas essas linhas retóricas. Apenas uma delas, a mais sofisticada, a premissa retórica escrita na petição inicial, de que “seres humanos não nascidos não são pessoas, mas simples criaturas humanas intraútero”.

Quer dizer que, até o dia em que eu nasci, eu fui um amontoado celular, com uma vida manipulável ao sabor dos interesses alheios. Quando minha cabeça passou pelo ventre de minha mãe, num passe de mágica, eu virei pessoa e, a partir de então, minha vida passou a ser tutelada pela lei e pelo ente estatal. Ou, dito de outra forma, segundo o autor da ação, eu não precisaria esperar pelas 40 semanas para me tornar pessoa: a partir da 13ª, eu já poderia respirar aliviado.

Independentemente do suporte biológico que sustenta a tese da 12ª semana, que, no fundo, é uma desculpa científica que porta uma visão eugenista da vida, essa mesma tese parte de um pressuposto bem claro: uma espécie de reconhecimento do outro, como pessoa, baseado somente na projeção de uma identidade, quando o feto deixaria de ser feto e passaria a se chamar Elena ou Letizia.

O problema é que essa “validade onomástica” tornaria o direito à vida uma faculdade e não um dever. Privatiza-se a noção de vida humana. Para mim, é Sofia; para ele, é uma parte do corpo; para ela, um “ente” a ser validado por uma relação de identidade e, para os partidários da “liberdade socialista”, “simples criaturas humanas intraútero”.

Nietzsche recordava-nos de que “na história da sociedade, há um ponto de fadiga e enfraquecimento doentios em que ela até toma partido pelo que a prejudica e o faz a sério e honestamente”. É o caso da ADPF 442, um verdadeiro aborto processual, porque pretende inovar na ordem jurídica brasileira, ao arrepio do diálogo legislativo nas duas câmaras parlamentares, e fazer da pauta abortista – a pauta da cultura da morte – uma espécie de destino inexorável de nossa sociedade.

Corrijo: não precisamos falar de aborto. Precisamos falar de feto. O feto é apenas o que fomos antes da nossa configuração presente. O feto será uma criança, um adolescente ou um adulto se não existir nenhum obstáculo terminal pelo caminho. A questão fundamental está em saber que direito tem um partido de ser esse obstáculo. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 20/06/2018, Página A-2, Opinião.




Supremo desencanto


Em tempos de realidade social anônima, onde o vazio deixado pela ausência de uma ética social pretende ser preenchido exclusivamente com o direito, o STF resolveu, nas matérias que envolvem nossa combalida política, deixar o protagonismo moderador a que foi chamado em favor do vanguardismo tensionador. Em outras palavras, ao invés de jogar água na fogueira da política, tem aproveitado para despejar muita gasolina.

Esse clima de tensão tem chamado nossa atenção. Quatro parlamentares, pegos em evidências de crimes de igual gravidade, receberam tratamento diverso. A presidente impedida teria praticado desvio de finalidade ao nomear, como ministro, um ex-presidente condenado judicialmente e o atual presidente não teria feito o mesmo, quando alçou, ao mesmo cargo, um apaniguado investigado por crimes contra a improbidade administrativa, em ambos, os casos, só para lhes asseguram o foro privilegiado.

O STF autorizou a prisão de condenado em segunda instância e alguns ministros, monocraticamente, continuam a conceder habeas corpus contra a jurisprudência consolidada pelo plenário. A restrição ao foro privilegiado, que já conta com maioria favorável no julgamento, resta obstada, porque um ministro pediu vista para que o Congresso Nacional manifeste-se a respeito.

Mas não é só. Ainda temos um inédito ministro que afirma que um de seus pares “não passa na prova dos nove do jardim de infância do direito constitucional” ou “que sempre tem algo a nos ensinar”, que o outro tem “uma moral bem baixinha”, que aquele outro é “velhaco”, que aquele lá “inventou o AI-5 do Judiciário”, sem dizer que já chamou o ex-Procurador Geral da República de “delinquente” e um dos procuradores da Operação Lava Jato de “cretino absoluto”. Inclusive, é o mesmo ministro que não se dá por suspeito nos casos em que seus amigos, tanto empresários como políticos da velha guarda, são julgados pelo STF.

A lista poderia seguir adiante. Mas não quero cansar o leitor. No avultamento institucional do STF, em que esse órgão passou a ser um convidado de última hora no baile decisório entre Legislativo e Executivo, sobretudo quando resta diminuído à condição de terceira câmara legislativa ordinária ou de constante censor de atos administrativos tipicamente discricionários do Palácio do Planalto, há muitas causas concorrentes. Destaco uma: a tentação do governo de juízes ou o ativismo judicial.

Sabemos que a última palavra acerca da constitucionalidade das leis é dada pelo STF e, de fato, quando provocado, este tribunal, de certa forma, acaba por governar aqueles que governam dentro de seus limites naturalmente institucionais.

Mas, se o Executivo sempre predominou historicamente e Legislativo tem deixado de legislar e fiscalizar, quando o STF é chamado a se pronunciar nas ações em que uma dessas instituições peca pela falta ou pelo excesso, é difícil estabelecer, ainda que seja possível, uma resposta entre uma postura de joelhos e outra de dedo em riste, dada a elasticidade na interpretação desse pronunciamento.

Se o ativismo judicial tem prevalecido, isso se explica – e não se justifica – pelo crescente vácuo institucional e social que os outros poderes deixaram pelo caminho, fato que capta a sensibilidade dos ministros do STF, a ponto de, diante de uma falta de perspectiva de mudança, provocar a chamada a um estimulante e indevido protagonismo na condução de boa parte dos destinos políticos da sociedade.

Dessa forma, como já salientado nos exemplos acima citados, o STF torna-se um incansável árbitro social, porque o diálogo entre a sociedade e os outros dois poderes políticos padece de uma ética social comum, batendo-se em suas portas, em busca de uma resposta judicial, toda vez que aquele vazio de valores é notado e precisa ser preenchido.

Contudo, tomado de surpresa para a magnitude do desafio, o STF não soube reagir com prudência judicial e, ao não exercer sua função de árbitro social imparcial, passou a corroer sua própria pretensão de legitimidade sociológica.

A corte que, antes, era vista como solução do problema, transformou-se num novo problema, porque, ao tensionar e não moderar, potencializa as incertezas e acirra os conflitos entre os demais poderes e a sociedade. Enquanto essa for sua tônica institucional, o único efeito que teremos de supremo será o de nosso desencanto. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 21/02/2018, Página A-2, Opinião.




Uma droga de argumento


O STF está em vias de decidir sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. É uma ideia, com o perdão do trocadilho, bem opiácea, por produzir, nas mentes, uma expectativa de efeito narcótico, em regra, tranquilizante, já que seria a óbvia solução diante dos problemas sociais envolvidos no consumo de narcóticos, como a violência gerada pelo tráfico, a redução de danos para a sociedade e o enfrentamento do problema como uma questão de saúde pública.

Há dois argumentos-chave, um filosófico e outro pragmático. Hoje, ficaremos no primeiro: o Direito Penal não deve ser ativado nos casos em que uma conduta pessoal não interfira nos direitos alheios. É uma espécie de progressão da mentalidade reflexiva. Primeiro, o impensável torna-se pensável e, subitamente, deixa a heterodoxia e se transforma em ortodoxia, cuja verdade surge tão elementar que, a partir de então, ninguém mais se lembra que já se pensou de forma diferente.

O desejo humano de tomar substâncias que alteram a mente é tão velho quanto a própria sociedade, à semelhança das tentativas de regulação de seu consumo. Mas nenhuma época humana teve de lidar com um duplo dilema: a disponibilidade de inúmeras drogas diferentes e a demanda crescente de um conjunto de cidadãos desejosos do exercício de seu “direito” de gozar de seus próprios prazeres à sua maneira.

Numa sociedade livre, a lei deveria permitir que os indivíduos pudessem fazer o que lhes conviessem, incluídos desejos e apetites, contanto que assumissem as consequências de suas próprias escolhas e não causassem danos diretos aos outros. A ideia, que remonta a Mill, é muito atraente na teoria.

Na prática, a teoria, como dizia Goethe, é cinza e, verde, a árvore da vida: é muito difícil garantir que assumamos todas as consequências de nossos atos, ainda mais quando o consumo de drogas tem o efeito imediato de reduzir a liberdade individual e, como resultado, mitigar o senso de responsabilidade.

Essa ótica libertária impede a sociedade de conceber qualquer código moral. No limite, seria como se não tivéssemos nada em comum, mas nosso “contrato social” de não interferência mútua permaneceria, enquanto buscássemos nossos prazeres privados. Você acende seu cigarro aí e eu me injeto aqui.

Em minha experiência profissional, a demanda recreativa de drogas atinge não apenas o usuário. Sempre leva junto o cônjuge, filhos, colegas de trabalho, amigos e parentes. Ninguém, exceto um eremita, é uma ilha. Estou saturado de mandar internar judicialmente drogadictos – que começaram como inocentes usuários – a pedido, justamente, daquelas pessoas que, segundo os defensores da descriminalização, estariam imunes à conduta daqueles.

Por isso, a aplicação do princípio de Mill às ações humanas em geral beira à inutilidade, quanto mais para justificar a descriminalização do porte de drogas para uso privado. Eis o erro de nosso filósofo utilitarista: os assuntos humanos – sobretudo no campo penal – não podem ser decididos por um apelo a uma regra infalível, expressa em poucas palavras, cuja mera aplicação possa decidir corretamente todos os casos. Fundamentalismo filosófico não é preferível à sua variante religiosa.

Todos valorizamos a liberdade, mas também a ordem; às vezes, sacrificamos a liberdade em favor da ordem e, outras vezes, a ordem em prol da liberdade. Uma vez retirado o véu, nesse caso, da proibição das drogas, será difícil de restaurá-lo, mesmo quando a liberdade recém descoberta revelar-se ter sido socialmente desastrosa.

Mill, anos após, viu as limitações de seu próprio princípio na ação social, quando negou que todos os prazeres tinham igual significado para a existência humana: era melhor, disse ele, ser um Sócrates descontente a um tolo satisfeito. Assim, nosso pensador inglês concluiu que nem todas as liberdades são valorativamente iguais e nem todas as limitações são impeditivas de seu exercício.

Com a palavra os demais ministros que ainda não apresentaram seus votos. Espero que se recordem que caprichos pessoais não são fontes do direito e que o homem mais livre não é aquele que obedece servilmente a seus apetites, porque a premissa da descriminalização defende o contrário, o que a torna, em outro trocadilho, uma droga de argumento.

E, caso se esqueçam, lembrem-se que chancelarão outro parasitismo social. Já descemos ladeira abaixo nesse tema da descriminalização. Mas não precisamos chegar ao fim da rua, ainda mais quando essa rua parece nos levar para um beco sem saída. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 22/03/2017, Página A-2, Opinião.