Responsabilidade e Sentido


Pode parecer surpreendente a alguns o fato de que o ser humano é um ser que erra. Errare humanum est. Errar é humano, diz acertadamente o velho adágio. Todo mundo erra. Não existe nos assuntos meramente humanos algo como a perfeição, a infalibilidade. Igualmente surpreendente pode parecer a algumas pessoas outro fato importantíssimo: todo sujeito é responsável por seus atos, particularmente por seus erros.

Tais fatos parecem estar esquecidos por aqueles exageradamente preocupados com a busca de direitos, que procuram a felicidade por si mesma. Todavia, os direitos são inexoravelmente atrelados a deveres. Os direitos de uns implicam os deveres de outros. Não existem direitos sem deveres. Não há liberdade sem responsabilidade. O verdadeiro exercício da liberdade é responsável.

O famoso psicólogo clínico canadense Jordan Peterson tem insistido na importância de se valorizar a responsabilidade, especialmente aos mais jovens. Para ele, a responsabilidade é um meio pelo qual o indivíduo encontra um sentido para a sua vida. Segundo Peterson, uma vida sem responsabilidade acaba por ser uma vida inútil, sem sentido, niilista. Cabe a cada pessoa descobrir e decidir qual é o seu propósito, quais são suas responsabilidades. Mesmo diante de adversidades, a responsabilidade serve como motor para que a pessoa continue a lutar. A amargura, o ressentimento e a violência só pioram a situação, segundo a experiência clínica de Peterson.

Tais conclusões se assemelham às de Viktor Frankl. Sob condições terríveis dos campos de concentração, o famoso psiquiatra austríaco pôde refletir sobre o sentido existencial dos indivíduos e constatou que o fator determinante para superação dos problemas é a escolha, isto é, o desejo de agir livremente como um sujeito responsável, a fim de ser tornar um ser pleno apesar das circunstâncias. Durante o cárcere de Frankl, dois companheiros lhe confidenciaram, de modo independente, seus planos de suicídio. Alegavam que não esperavam mais nada da vida. A pergunta improvisada que os auxiliou a encontrar um sentido pessoal foi a seguinte: “Não seria concebível que seja a vida que espera algo de você?”. Cada um descobriu assim que podia fazer algo pelo mundo.

Mesmo diante do sofrimento, a pessoa que encontra um sentido – a responsabilidade por si mesmo, de fazer algo e de se tornar alguém – pode transformar a situação adversa numa realização pessoal. Se não podemos mudar a situação, ainda somos livres para mudar nossa atitude frente a tal situação. Para Frankl, a responsabilidade – a habilidade de responder à vida – é fundamental para que a liberdade não se torne mera arbitrariedade e chegou a recomendar que a Estátua da Liberdade na costa Leste dos Estados Unidos fosse suplementada pela Estátua da Responsabilidade na costa Oeste, como um símbolo de sua importância.

Outro sobrevivente de atrocidades, o escritor russo Aleksandr Soljenítsin (Prêmio Nobel de Literatura de 1970), autor de Arquipélago Gulag, poderia culpar Hitler e Stalin por suas prisões e sofrimento. Todavia, optou por fazer um exame de consciência e se perguntar como suas ações o levaram àquela situação. Refletindo sobre como poderia ter contribuído para a criação do regime que lhe oprimia, constatou que a degradação da sociedade e do estado é uma consequência da degradação do indivíduo: “Gradualmente me foi revelado que a linha que separa o bem e o mal não passa por estados, nem entre classes, nem entre partidos políticos – mas através de todo coração humano – e através de todos os corações humanos.”

A constatação de que erramos, de que somos falíveis, capazes de fazer o bem e o mal, deveria bastar para fomentar a humildade. Já foi dito que “a humildade é a verdade” e essa é a principal arma segundo Soljenítsin: a Verdade. Segundo ele, a verdade tem poder de derrubar impérios, sem necessidade do uso da violência. Por isso, temos uma enorme responsabilidade: a de defender a verdade, com integridade, com nosso testemunho pessoal, com nossa vida.

Por fim, inspirados nos ensinamentos de Frankl, podemos dizer que há dois modos de exercitar a liberdade: (i) acreditar que os fins justificam os meios; (ii) ter plena consciência de que existem meios que podem dessacralizar até o mais nobre dos fins. Resta a cada um de nós optar pelo modo que considerar mais responsável.

Fábio Maia Bertato é membro do IFE Campinas e Coordenador Associado do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência – Unicamp (fmbertato@cle.unicamp.br).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 9 de Janeiro de 2018, Página A2 – Opinião.




Bioética: Fundamentos


A bioética descobre seus fundamentos quando chega a uma série de questões que, implícita ou explicitamente, cada um responde ao longo de sua vida. Às vezes, são como as tranquilas águas profundas de um oceano agitado e, em outros casos, agem na pessoa como um tsumani que arrebata a tudo que está em seu caminho.

Estas perguntas tocam em questões fundamentais: a vida humana, sua dignidade, o amor humano, seu sentido e alcance, o nascimento, o sofrimento, a doença, a morte e as relações com outros seres vivos e o meio ambiente. São temas muito amplos e que não podem ser abordados com pressa. As respostas dadas a cada uma daquelas perguntas, consciente ou inconscientemente, moldam cada um de nossos comportamentos.

As ações que empreendemos diariamente influem sobre a própria vida e sobre as daqueles que vivem ao nosso redor. Num certo sentido, não existem atos indiferentes, pois mesmo as omissões podem ser danosas, como por exemplo, deixar de praticar exercícios, o que favorece a obesidade e “hibernar” aos finais de semana, quando se poderia aproveitar o tempo com os outros.

O estudo da bioética pretende orientar e avaliar nossas ações de maneira a promover um mundo mais saudável, mais solidário e justo, mais atento para os indefesos, para aqueles que sofrem e mais preocupado com a proteção adequada da pessoa e do ambiente.

Isso implica, em primeiro lugar, na elaboração de uma antropologia dotada de validade, a qual deve estar em diálogo constante com as mais sólidas propostas filosóficas elaboradas ao longo dos séculos, fruto destilado de uma longa e contínua investigação e teorização da natureza humana, bem como com as descobertas da psicologia moderna e das ciências biológicas e médicas, sem prejuízo dos trabalhos sociológicos e pedagógicos.

Ao mesmo tempo, a antropologia confronta com a visão particular da identidade própria e da alheia. É impossível, como em qualquer área das humanidades, um estudo neutro da antropologia, pois, por intermédio deste ramo do saber, pomos em claro as próprias ideias sobre o que somos como seres humanos.

Em segundo lugar, a bioética depende de uma série de princípios éticos fundamentais. A ética, como a antropologia, é apresentada segundo diferentes formas e teorias, por vezes, absolutamente contraditórias, o que dificulta o estudo da bioética.

Diante deste panorama pluralista, faz falta ter uma noção das principais teorias bioéticas em suas relações com as linhas éticas do passado ou do presente. Concomitantemente, a reflexão sobre os desafios éticos interpela a consciência de cada ser humano, seja leigo ou intelectual, pois o conhecimento do bem e do mal permite o julgamento de nossas ações e daquelas realizadas pelos outros.

Em terceiro lugar, o estudo da bioética está em estreita relação com outras áreas afins, especialmente com a medicina, a biologia, a filosofia e o direito. De fato, ao se estudar a bioética, não pode encarar tantas disciplinas simultaneamente. Felizmente, o mundo contemporâneo difunde numerosas e ricas ideias sobre estas áreas do conhecimento, de forma que resulta possível a elaboração de uma visão pessoal sobre o que seja mais adequado para preservar a própria saúde, a dos outros, sobre a importância da proteção do indivíduo e assim por diante.

Em quarto lugar, a bioética questiona e julga as distintas formas de organização da sociedade, bem como a correção das leis estabelecidas por escrito ou de modo habitual nos povos. Evidente que isso acarreta o domínio do Direito, a fim de que o estudioso possa analisar quais os segmentos da vida são dignos de atenção e de tutela legal pelas autoridades e quais outros podem ser objeto de uma livre escolha dos indivíduos.

Por fim, a bioética deve ter um matiz metafísico, buscando os princípios primeiros e as razões últimas do valor da pessoa, sua concepção, sua relação de prioridade e de complementaridade para com a sociedade, a fim de que não seja mais ameaçada de instrumentalização pelo próprio homem. Em suma, a busca dos fundamentos da bioética encerra uma urgente tarefa e um enorme desafio.