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Reflexões de Auschwitz

Opinião Pública | 03/08/2016 | | IFE CAMPINAS

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Durante a semana da Jornada Mundial da Juventude, em Cracóvia, o museu de Auschwitz ficou restrito para visita dos quase dois milhões de peregrinos – entre eles, o mais querido peregrino, Francisco, que foi até lá rezar e se encontrar com os poucos ex-prisioneiros ainda vivos. O silêncio do papa nesse episódio expressa o que todos experimentamos: naquele local, as palavras falham.

Ao passar por Auschwitz me recordei dos escritos de um dos seus sobreviventes, Viktor Frankl. O psiquiatra, em seu livro “Em Busca de Sentido”, além de relatar o cotidiano dos prisioneiros no campo e todas as brutalidades que enfrentavam, suscita profundas e atuais reflexões sobre a liberdade humana. O tema é uma constante na história da humanidade: podemos citar o lema da Revolução Francesa, ou motes como “liberdade de expressão”, “liberdade de escolha”, “liberdade sexual” etc. Trata-se de um valor universal, de um desejo intrínseco do homem. No entanto, há uma carência na concepção de liberdade – inclusive nos citados motes – cujas consequências são, e tendem a ser cada vez mais, desastrosas.

Tem-se a visão de que liberdade consiste em livrar-se de todos os limites e autoridades. Para tanto, seria necessário eliminar obrigações impostas pela sociedade, sujeições a hierarquias e limitações culturais. Nessa concepção, a liberdade de um indivíduo está subordinada às circunstâncias exteriores em que se encontra. Tal perspectiva fundamenta-se em duas ideias características da sociedade moderna: a visão de que o ser humano é um ser completamente condicionado e a crença de que as fontes de felicidade são a comodidade e o prazer.

Em relação à primeira ideia, não houve maior “laboratório vivo” – como Frankl denomina – que o campo de concentração para comprovar que o ser humano determina se cede aos condicionantes que o cercam ou se lhes resiste. Com propriedade, ele pontua: “Sendo professor em dois campos, neurologia e psiquiatria, sou plenamente consciente de até que ponto o ser humano está sujeito às condições biológicas, psicológicas e sociológicas. Mas além de ser professor nessas duas áreas, sou um sobrevivente de quatro campos [de concentração] e como tal também sou testemunha da surpreendente capacidade humana de desafiar e vencer até mesmo as piores condições concebíveis.” Superar coações aparentemente absolutas é um chamado extremamente exigente, mas sempre possível, como nos provam os “heróis dos campos”, dentre eles o franciscano polonês, Maximillian Kolbe, que deu sua vida para salvar a vida de outro prisioneiro de Auschwitz.

No que concerne à segunda ideia, sabiamente disse o papa Francisco na ocasião da JMJ: “Quando escolhemos a comodidade, por confundir felicidade com consumo, o preço que pagamos é muito, mas muito caro: perdemos a liberdade. (…) É certo que as drogas fazem mal, mas há muitas outras drogas socialmente aceitas, que acabam por nos tornar tanto ou mais escravos.” Penso que o “laboratório vivo” desse contexto tem sido a sociedade moderna com seu tão disseminado fenômeno: o vazio existencial. No limite, a falta de sentido para a vida leva ao suicídio. Mas, comumente, a frustração existencial é mais sutil e transparece sob máscaras que tentam compensá-la, como a busca desenfreada por dinheiro, por poder ou por prazer sexual.

Mesmo no campo de concentração, onde os prisioneiros sentiam-se “cadáveres vivos”, não deixou de existir um resquício de liberdade interior no homem, isto é, a capacidade de escolher a atitude pessoal que se assume frente ao ambiente. Atualmente, ao perder de vista essa dimensão interior e tratar da liberdade apenas como uma realidade exterior, acaba-se refém das circunstâncias e, ao invés de libertar, a liberdade escraviza: busca-se a liberdade e torna-se escravo do dinheiro, escravo de drogas, escravo da pornografia.

Evidentemente, há inúmeras situações exteriores que necessitam de transformações e é nosso dever, enquanto seres humanos, lutar por elas. A questão é que há outras inúmeras situações em que acusamos as circunstâncias, quando o verdadeiro problema, assim como sua solução, está em nós mesmos. “A rigor, jamais importa o que nós ainda temos a esperar da vida, mas exclusivamente o que a vida espera de nós.” escreveu Frankl. Assim, quando retiramos o foco da nossa existência de nós mesmos, e colocamos nos demais, a vida configura-se de outra maneira e percebemos que, ao invés de sermos escravos de nosso egoísmo, somos sempre livres para amar.

Beatriz Figueiredo de Rezende é graduanda em Ciências Econômicas na Unicamp e membro do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 03/08/2016, Página A2 – Opinião.

A hora e a vez das Humanidades

Política e Sociologia | 28/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Joven Lendo - Matthias

Já dizia Nietzsche, no final do século XIX: “Cada vez mais é possível perceber o vazio e a pobreza de valores. Por fim, o homem ousa uma crítica dos valores em geral. Conhece o bastante para não acreditar mais em valor nenhum. (…) A história que estou relatando é a dos dois próximos séculos”.

Esse panorama traçado pelo filósofo expõe uma visão corrente: a constatação de uma ausência de referências estáveis que, como resultado, gera um vazio existencial, uma falta de sentidos últimos para a vida. Perguntas como “É possível acreditar em verdades seguras?”, ou “Existem valores universais?” deixam de obter respostas, suscitando uma situação em que impera a dúvida ou até um ceticismo radical.

Nietzsche não lamentou o cenário que vislumbrou: pelo contrário, celebrou-o, enxergando ali a oportunidade para que tivéssemos um tipo de vida grandiosa, nobre, tornando a existência algo sublime, livre dos ídolos do passado.

O fato é que a vida de Nietzsche não terminou de modo “sublime”. Aliás, muito longe disso…

Ao enxergar o vazio existencial como uma “oportunidade” e não como um problema preocupante, ele cavou a própria cova: não entendeu que a falta de sentido é algo devastador para o ser humano.

Portanto, o que poderia ser chamado de “crise de sentido na modernidade” – abordada, de diferentes modos, por vários outros autores, como Camus, Beckett, Sartre, Musil, Kafka – não se mostrou como a salvação: é na verdade um problema a ser enfrentado. E aqui surge um vácuo que não pode ser preenchido com estatísticas, gráficos e porcentagens.

Nesse contexto, têm sido freqüentes discursos que buscam revalorizar as Humanidades.

Para ficarmos apenas com alguns exemplos, em recente livro, o professor de literatura italiana, Nuccio Ordine, ressalta como a lógica economicista imperante tem enxergado as Humanidades como algo inútil, por aparentemente não trazer benefícios imediatos. O autor procura desmontar tal visão, recuperando a importância dos clássicos, não por mera erudição, mas para lidarmos com os dilemas próprios do mundo contemporâneo.

Em um de seus últimos livros, a filósofa Martha Nussbaum diagnostica o que considera um “câncer” nas discussões atuais sobre educação: a tendência a abordá-la sob uma visão que busca meramente capacitar as pessoas para contribuírem para o PIB per capita da nação. Isso teria desvalorizado o apreço pelas Humanidades, o que segundo a autora é um perigo para qualquer sociedade que intenta promover valores democráticos.

Enfim, essas percepções tem sido uma tendência. Mas, o que a valorização das Humanidades poderia ajudar no que diz respeito ao vácuo existencial do mundo moderno?

Justamente, na questão da busca pelo sentido. Como afirmou o psiquiatra Viktor Frankl, reinterpretando ao seu modo justamente uma frase de Nietzsche – “quem tem um por que para viver, suporta quase qualquer como”.

E, se a frase citada “faz sentido”, também poderíamos dizer que “quem NÃO tem um porque para viver, NÃO suporta qualquer como”. E, com isso, temos indivíduos sem grandes perspectivas de futuro; insatisfeitos com os menores incômodos que aparecem; centrados nos seus próprios desejos superficiais; incapazes de lidar com os fracassos; e, para melhorar a situação, sempre prontos a demandar os seus “direitos inalienáveis”, como se o mundo estivesse ao seu dispor. Não é por acaso que os psicoterapeutas tem feito tanto sucesso: afinal, o sentido ficou nebuloso, mas a vida continua. E, uma vida vazia não é uma “oportunidade”, mas sim uma prisão, um absurdo.

Em um de seus quadros mais famosos, Paul Gauguin deu o seguinte título: “De onde viemos? O que somos? Para onde vamos?”. Talvez seja um bom momento para enfrentarmos novamente essas questões fundamentais da existência, não para cair na prisão do absurdo, mas para vislumbrar novos horizontes de sentido. E é por isso que talvez essa seja a hora e a vez das Humanidades.

Guilherme Melo de Freitas é mestre em sociologia pela USP, professor e Gestor do Núcleo de Sociologia do IFE Campinas (gmelo.freitas@gmail.com).

Artigo publicado originalmente no jornal Correio Popular, 11 de Julho de 2014, Página A2 – Opinião.

Imagem:Jovem lendo“, de Mathias Stomer (1615–1649) – Holanda. Imagem em Domínio Público.