A lição de Balzac


Um hábito salutar há muito tempo esquecido – especialmente numa era de redes sociais – é o compartilhamento de impressões ocasionadas pela leitura de um romance. Contrariamente às tendências que buscam transformar o comentário de obras literárias em uma atividade exclusivamente acadêmica e que, forçosamente, exclui os simples mortais, penso que a finalidade principal da leitura e do comentário dos clássicos da literatura seja esclarecer, para o indivíduo comum, experiências que ele já viveu, ou que poderá viver, mas que não tem condições de verbalizar. Talvez nunca isso tenha ficado tão claro para mim quanto ao terminar de ler o romance Memórias de duas jovens esposas, de Honoré de Balzac, um retrato vivo e tocante dos motivos que podem levar um casamento à felicidade ou à infelicidade.

A história se passa na França, alguns anos depois da queda de Napoleão Bonaparte, no período conhecido como “restauração”, época em que a antiga monarquia e a antiga nobreza tentaram, sem sucesso, restaurar as instituições que vigoravam antes da revolução francesa. Nesse cenário, Renée e Louise, duas amigas de infância, membros de famílias aristocratas, trocam cartas durante vários anos abrindo seus corações a respeito de suas vidas amorosas. Enquanto Louise, após sair de um convento de irmãs carmelitas, deseja encontrar um príncipe encantado que a ela se dedique como num conto de fadas, Renée, que também havia estado no mesmo convento, aceita um casamento arranjado – por motivos financeiros — com um homem mais velho, a quem ela não ama.

Não sendo eu pessoa isenta das influências que um ambiente impregnado de sentimentalismo barato como o nosso infunde sobre as pessoas, imaginei, em um primeiro momento, que Renée seria profundamente infeliz, ao passo que Louise – que seguia seu coração – estava no caminho certo em busca da felicidade. No entanto, com toque de gênio, Balzac nos surpreende com uma profunda lição no desenrolar da trama: Renée não se rebela contra o seu destino, mas decide amar o homem com quem se casou quase sem ser consultada e, com o passar dos anos, descobre na dedicação ao esposo e na maternidade um conjunto de alegrias que vão enchendo a vida de sentido e tornando-a não uma pessoa amarga, mas uma mulher verdadeiramente sábia.

Louise, de outra parte, logo encontra o príncipe encantado que desejava, Felipe Henárez, o Barão de Macumer, um nobre espanhol refugiado na França após participar de uma revolução frustrada contra o rei Fernando da Espanha. O amor de Macumer por Louise nada deixa a desejar se comparado aos sacrifícios dos príncipes dos contos de fadas: para ele, a amada adquire feições de verdadeira divindade e, ao se casarem, ela o trata como verdadeiro escravo que satisfaz todos os seus mínimos caprichos. Não seria de bom tom em um convite à leitura contar o final de uma obra que eu gostaria de ver lida e divulgada entre os jovens de hoje, mas adianto que a vida amorosa de Louise passará por grandes tragédias, todas antevistas e alertadas por sua amiga Renée.

Quando examino os relacionamentos amorosos de hoje em dia, vejo muitas pessoas, que tiveram sua sensibilidade corrompida buscando príncipes ou princesas encantados e esquecendo-se que o casamento é uma relação que envolve grandes sacrifícios de ambas as partes, mas que, conforme já dizia Aristóteles, raízes amargas podem produzir frutos doces. Como muitos temem esse tipo de sacrifício, não é de se admirar que hoje em dia tantas pessoas substituam o casamento pela mera união estável – facilmente desmanchada quando terminar a “química” – e a geração de filhos pela adoção de animais. Também nunca vimos os consultórios psicanalíticos e psiquiátricos tão cheios. Reflitamos, portanto, sobre a lição de Balzac.

Fabio Florence, 32 anos, é professor de filosofia, sociologia e idiomas e membro do IFE Campinas (florenceunicamp@gmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 09/08/2017, Página A-2, Opinião.




O Grande Gatsby (por Odorico Leal)


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Scott Fitzgerald e Zelda Sayre comprometeram-se em 1919. Zelda era filha de um juiz da Suprema Corte do Alabama. Embora tivesse estudado em Princeton, onde conheceu Edmund Wilson, Fitzgerald era um jovem sem outro patrimônio que não o próprio talento literário, que começava a se divisar no primeiro rascunho de The Romantic Egotist. Fora de Princeton, de onde saiu para se alistar para a guerra – que acabou antes de seu embarque -, e trabalhando numa agência de publicidade em Nova York, Scott não pôde convencer Zelda de que tinha condições de proporcionar à “garota dourada” o conforto que outros pretendentes abastados propunham. O relacionamento foi temporariamente encerrado. Os eventos que se seguiram são história clássica: Scott, profundamente magoado no orgulho e na ambição, trancou-se no seu velho quarto na casa dos pais, de volta à cidade de Saint Paul, revisou aquele manuscrito inicial e o transformou em This Side of Paradise, o romance que, literalmente, da noite para o dia, o elevou à celebridade, para o bem e para o mal. Com fama e fortuna, Scott casou-se com Zelda.

A vida adulta de Scott Fitzgerald começa, assim, com um retorno ao passado, à sua Saint Paul natal. Muitas vezes durante a vida, Scott buscará essa mesma espécie de recomeço, mesmo no final, em Hollywood, tentando livrar-se do alcoolismo e engrenar a escrita de The Last Tycoon – lutava sempre por uma nova chance, que era na verdade a chance primordial, mesmo ciente de que, nas vidas americanas, como escreveu, não há segundos atos. Em grande parte de suas obras, seus personagens tentarão empreender essa mesma viagem de volta. São todos barcos contra a corrente, rumo ao passado, em direção a um momento irresgatável que, se pudesse ser consertado, permitiria a fluência justa da personalidade numa seqüência ininterrupta de gestos felizes. Nesse ponto é que Fitzgerald mais se aproxima do Alto Romantismo inglês, o romantismo, principalmente, de Keats, a quem tanto admirava: o embate exaustivo e autodestrutivo com o tempo, com a consciência da passagem do tempo e da deterioração de toda beleza.

Nas odes de Keats, encontramos o universo emocional da prosa poética de Fitzgerald, em especial na Ode to a Nightingale, que Fitzgerald lia com devoção (e de onde retira o título do romance Tender is the Night), poema imortal que nos fala daquela destruição de que o ambíguo espírito romântico se nutre ao mesmo tempo em que se põe sempre ansioso para a desafiar (a tradução é de Augusto de Campos):

Fade far away, dissolve, and quite forget
What thou among the leaves hast never known,
The weariness, the fever, and the fret
Here, where men sit and hear each other groan;
Where palsy shakes a few, sad, last gray hairs,
Where youth grows pale, and spectre-thin, and dies;
Where but to think is to be full of sorrow
And leaden-eyed despairs,
Where Beauty cannot keep her lustrous eyes,
Or new Love pine at them beyond to-morrow.

“Fugir e dissolver-me, enfim, para esquecer
O que das folhas não aprenderás jamais:
A febre, o desengano e a pena de viver
Aqui, onde os mortais lamentam os mortais;
Onde o tremor move os cabelos já sem cor
E o jovem pálido e espectral se vê finar,
Onde pensar é já uma antevisão sombria
Da olhipesada dor,
Onde o Belo não pode erguer a luz do olhar
E o Amor estremecer por ele mais que um dia”.

Aqui, onde a beleza não pode sustentar seus olhos reluzentes, o eu lírico do poema de Keats, que, na floresta, escuta o pássaro cantar, busca aproximar-se da morte, seduzindo-a com “suaves nomes”, morte que, quando vem ao seu encontro, tudo preenche de vida, morte sublinhada no desejo perigoso de misturar-se e de perder-se na natureza, na folhagem, como o rouxinol, para possuir, enfim, o momento de um presente incorruptível.

Em Fitzgerald, os personagens buscam não esse gozo do instante presente, mas a recuperação de um momento passado, que implica a reinvenção do presente – implica a condição de Gatsby, de viver o sonho e pelo sonho, nunca a realidade. Na obra-prima de Scott Fitzgerald, o presente apresenta-se assim sempre imerso numa atmosfera onírica, por vezes visionária, atravessada por fantasmas. O próprio personagem central é fantasmagórico. A primeira aparição de Gatsby, no livro, é de fato uma aparição espectral: Nick Carraway, o narrador, vizinho da badalada mansão do milionário misterioso, avista apenas por um instante, emergida das sombras, uma figura trêmula que se estica para as águas noturnas, em direção a uma luz verde. Nick olha um momento para a mesma luz, e ao voltar o olhar mais uma vez para Gatsby, já não o encontra. A figura esvanecera.

Max Perkins, editor de Fitzgerald, criticou o modo vago como o escritor construiu o personagem, sugerindo que era necessário desenvolver mais detidamente a história de sua ascensão pessoal. Fitzgerald conta-nos essa história, de modo apressado, apenas no sexto capítulo do livro: o conto fantasioso do filho de fazendeiros que, jamais aceitando sua posição, encontra aos dezessete anos a chance da vida, ao conhecer Dan Cody, que o introduz num mundo de oportunidades ilícitas, uma espécie de espelho distorcido do Sonho Americano.

Gatsby é a essência benévola desse sonho, possuidor de uma “sensibilidade exacerbada para as promessas da vida”, “um extraordinário dom para a esperança”. A crítica de Perkins não procede, porque, mais do que um personagem, Gatsby é uma espécie de impulso poético, de espírito que, no meio do vale de cinzas, nas paisagens desoladas, espreitadas pelos olhos do Doutor T.J. Eckleburg, devolve a tudo que o cerca uma luz redentora. A tragédia da novela reside no fato de que uma natureza de tal modo entusiástica e positiva não se abra para o futuro, para a purificação e ampliação daquele sonho coletivo, mas antes insista na contemplação doentia, melancólica e criadora do passado, o passado que é sempre, aos olhos de Gatsby e aos nossos olhos, um rosto belo e indiferente, que nos devolve apenas nossas exaustas ilusões, o rosto de Daisy Buchanan:

“Ele falou muito sobre o passado, e eu compreendi que ele desejava recuperar algo, talvez alguma idéia de si mesmo que existia em amar Daisy. Sua vida tinha sido confusa e desordenada desde então, mas se ele pudesse apenas uma vez retornar para um certo ponto inicial e aproximar-se lentamente, ele poderia descobrir o que era aquilo…”.

É para esse ponto inicial que Gatsby canaliza todas as suas forças, em um movimento que, se por um lado o alimenta, por outro o devora. Assim, contra a passagem do tempo, contra a natureza indiferente e furiosa de Tom Buchanan e, finalmente, contra fatalidade e o absurdo encerrados na emblemática figura do débil Wilson, o dono do posto de gasolina no meio da terra desolada, Gatsby estica-se a ponto de partir-se para tocar a luz verde do outro lado da baía. A visão do passado que Fitzgerald enxerga através dos olhos de Gatsby é tão irresistível quanto a visão do futuro que vemos pelos olhos de Walt Whitman, e igualmente irrecuperável.

The Great Gatsby, no entanto, não perduraria para gerações de leitores no mundo inteiro caso não propusesse, como contraponto ao esforço romântico de Gatsby, um caleidoscópio de cenas urbanas, indicativas da modernidade de Scott Fitzgerald, da autoconsciência crítica em relação ao seu próprio tema. Esta autoconsciência, vale dizer, já se encontra na supracitada ode de Keats, na atitude visionária e cética do eu lírico que, ao final, retira-se de seu estado aberto, receptivo, para interromper a expansão sensorial que ameaçava destruir-lhe a própria identidade:

Forlorn! the very word is like a bell
To toll me back from thee to my sole self!
Adieu! the fancy cannot cheat so well
As she is famed to do, deceiving elf.

“Desolado! a palavra soa como um dobre,
Tangendo-me de ti de volta à solidão!
Adeus! A fantasia é véu que não encobre
Tanto como se diz, duende da ilusão”.

A realidade aos poucos se recompõe diante do eu lírico; a fusão da consciência do poeta com o canto do rouxinol, há pouco tão próxima, tão desejável, se enfraquece, e já não se sabe se se tratou de uma visão ou apenas de um sonho: foi-se aquela música, como foi-se a orquestra no jardim vazio da mansão de Gatsby. Resta a Nick Carraway contar a história.

Nick, na abertura do romance, nos fala de seu caráter reservado, pouco afeiçoado a julgamentos apressados. É através de seus olhos prudentes que assistimos ao espetáculo da pungente cidade de Nova York e seus arredores e, principalmente, à comédia humana de seus muitos personagens. Pelos seus olhos, afinal, Fitzgerald nos apresenta algumas das cenas mais memoráveis do modernismo americano, em que se destaca, no segundo capítulo do livro, a sórdida festa no pequeno apartamento de Myrtle, amante de Tom Buchanan, festa tão contrária às suntuosas celebrações na mansão de Gatsby. Em um espaço confinado, a truculência de Tom se revela sustentada pelo dinheiro e pela auto-afirmação sem mérito que o dinheiro proporciona, que é, afinal, um dos temas centrais do livro. Ao proibir a amante de pronunciar o nome da esposa e ao ver a proibição violada, Tom quebra o nariz de Myrtle com um golpe de mão aberta. Segue-se uma farsa decadente, descrita com atenção preciosa ao detalhe, típica de Fitzgerald:

“Mr. McKee acordou de seu cochilo e seguiu confuso em direção à porta. A meio do caminho, virou-se e observou a cena – sua mulher e Catherine, repreendendo e consolando enquanto tropeçavam, aqui e ali, com artigos para socorro médico, entre a mobília abarrotada, e a figura desesperadora no sofá, sangrando fluentemente, e tentando estender uma cópia de Town Tattle sobre a tapeçaria com detalhes de Versailles”.

As festas de Gatsby não escapam à observação irônica de Fitzgerald. É justamente nelas que a atmosfera de irrealidade mais se acentua. Uma cena é emblemática nesse sentido. Na biblioteca da mansão, enquanto procurava por Gatsby em meio a convidados cada vez mais excitados pelo álcool e pelo jazz, Nick encontra um homem de meia-idade, com enormes óculos em forma de olhos de coruja, sentado na ponta de uma mesa, olhando com atenção vacilante para os livros: “Estou bêbado há quase uma semana agora, e pensei que sentar numa biblioteca talvez me deixasse sóbrio”.

É nesse emaranhado de instantâneos a um só tempo deslumbrantes e decadentes que a figura vaga de Gatsby transita, sempre a proteger, envolta em mistério, a dignidade ameaçada de seu sonho. Por toda a novela, com suas referências à terra desolada, há algo do “método mítico” de composição literária, comentado por T.S. Eliot em sua resenha, datada de 1923, sobre Ulisses, de James Joyce. Eliot, que aponta a poética de Yeats como origem desse método, aposta no recurso ao mito que, ao manipular “continuamente um paralelo entre a contemporaneidade e a antigüidade”, pode revelar-se um modo novo de “controlar, ordenar, e dar forma e significado para o imenso panorama de futilidade e anarquia que é a história contemporânea”.

Nesse sentido, os textos criados a partir desse método já não são romances, mas antes uma forma nova, a ser julgada por ela mesma, que lida com um novo material. Em um romance tradicional, o vago personagem de Gatsby seria um defeito intolerável. Em uma obra como The Great Gatsby, ele alcança todos os efeitos desejados. Aqui, o recurso ao mito revela-se mais claramente no coração do livro, ao final do sexto capítulo:

“Seu coração batia cada vez mais rápido enquanto a face clara de Daisy aproximava-se da sua. Ele sabia que quando ele beijasse essa garota, e para sempre devotasse suas visões inexprimíveis ao seu hálito perecível, sua mente nunca mais se elevaria como a mente de Deus. Ele esperou e ouviu por mais um momento o diapasão que soara contra uma estrela. E então a beijou. Ao toque de seus lábios, ela abriu-se para ele como uma flor, e a encarnação estava completa”.

Por Daisy, beleza esplêndida e vulgar, Gatsby, todo imaginação e sonho, desce à terra desolada que, não tarde, exigirá seu sacrifício.

Não por acaso T. S. Eliot afirmou que The Great Gatsby era o passo mais importante para o romance americano desde Henry James. Como que disfarçado de narrativa tradicional, o livro guarda um projeto profundamente experimental, conectado ao que de mais relevante se produzia nas vanguardas do front europeu. Este é sem dúvida um dos grandes sucessos do livro, paralelo ao enlace entre romantismo e modernismo: o casamento entre experimentação e tradição. Em Gatsby, por um lado, nos encontramos com Henry James; por outro, com James Joyce, e, ao final de nossa leitura, temos por um instante a sensação de estar “face a face, pela última vez na história” com algo proporcional à nossa capacidade de nos maravilhar.

Odorico Leal formou-se pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Ceará. Atualmente, é mestrando em teoria literária pela Universidade Federal de Minas Gerais, desenvolvendo pesquisa sobre impessoalidade na poesia moderna.

Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, edição nº 3, Junho/2009.




A Torre e o Príncipe: assombros de Lampedusa


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“Quando se chega ao declínio da vida, é preciso tentar reunir o quanto possível as sensações que passaram por nosso organismo. Poucos podem assim ter sucesso em criar uma obra-prima (Rousseau, Stendhal e Proust), mas todos deveriam, de algum modo, buscar preservar as coisas que sem este leve esforço estariam perdidas para sempre”.

A afirmação é de Dom Giuseppe Tomasi, Duque de Palma, Príncipe de Lampedusa. Aos 58 anos, depois de uma vida toda imersa em leituras, ele começava a escrever sua autobiografia – I luoghi della mia prima infanzia -, na monumental tentativa de preservar um mundo que se lhe escapava das mãos, em ruínas. Tendo por modelo e inspiração La vie de Henri Brulard, de Stendhal, Tomasi di Lampedusa não conseguiu fazer dos seus apontamentos de primeira infância uma obra-prima, como o haviam feito os franceses em que se espelhava, mas o fato é que esse processo de atualização da memória abriu-lhe as portas para uma produção literária que iria consumir os seus últimos três anos de vida e resultar no assombroso O Gattopardo, certamente um dos maiores romances do século XX.

E não foram poucos os degraus até esse longo resgate. Giuseppe Tomasi nasceu em Palermo, a 23 de dezembro de 1896, e alguns dias depois morreu-lhe a única irmã, atacada pela difteria. Foi educado em casa por um preceptor – mais tarde cursaria o liceu clássico – e desde cedo aprendeu o francês e o inglês como línguas nativas, além do alemão de que se encarregava uma governanta tipicamente rígida. E, com isso, lia, lia muito. Sua paixão pela literatura francesa era imensa: tinha Montaigne como o maior escritor de prosa e, em Stendhal – para ele o autor da maior obra-prima escrita em qualquer língua, A Cartuxa de Parma -, seu herói literário. Lampedusa chegou até mesmo a escrever um breve estudo intitulado Le lezioni su Stendhal, além de outro volume sobre literatura francesa antiga, Invito alle lettere francesi del Cinquecento.

Esse amor às letras de França equiparava-se apenas à obsessão que possuía pela Inglaterra, onde esteve pela primeira vez nos anos vinte – seu tio era o embaixador italiano em Londres -, encantado por conhecer as paisagens sobre as quais lia. Além de identificar-se com os modos ingleses – ele tinha a reserva, o autocontrole e o humor irônico característicos -, era apaixonado pela literatura do old empire: amava Dickens – especialmente The Pickwick Papers – e Sir Walter Scott, de quem havia lido e relido rigorosamente todas as obras. Lampedusa também conhecia a fundo as peças dos dramaturgos elizabetanos menores e recitava, de cabeça, poemas obscuros do período da Restauração.

E, naturalmente, havia Shakespeare. Ainda criança, no pequeno teatro da propriedade de Santa Margherita Belice, assistia às peças encenadas por companhias itinerantes, e essa fixação o acompanharia por toda a vida. Lampedusa costumava trazer sempre um volume consigo – muitas vezes,Measure for Measure, a obra menor que admirava às escondidas, dizendo-a sua amante secreta -, para que se pudesse consolar ao ver alguma coisa desagradável na rua. E não hesitaria em sacrificar dez anos da vida para conhecer em carne e osso Sir John Falstaff. Ele amava os personagens de Shakespeare como pessoas reais: “em Shakespeare, não existem personagens simbólicos, mas simplesmente um número de homens e mulheres que sofrem, lutam e morrem, como nós”.

A literatura foi mesmo a vida de Lampedusa, que nunca considerou seriamente a hipótese de trabalhar. Em 1915, já morando em Roma, chegou a freqüentar a faculdade de Direito – talvez pensando em seguir carreira diplomática, como o tio -, mas deixaria os estudos inacabados ao ser convocado para servir o exército italiano. Lutou na batalha de Caporetto e caiu prisioneiro dos austríacos. Depois de algum tempo preso na Hungria, conseguiu fugir e voltar à Itália a pé.

Em 1925, numa viagem a Londres, Tomasi conheceu a baronesa Alexandra Wolff-Stomersee, da corte de Nicolau II, mulher interessantíssima e muito culta com quem acabaria se casando sete anos depois, em Riga. Viveram algum tempo juntos no Palazzo Lampedusa, mas as constantes brigas de Licy – como era chamada – com a mãe do escritor fizeram com que ela regressasse ao castelo da família, nos Balcãs. Voltariam a morar juntos apenas no auge da Segunda Guerra – à época, Lampedusa já havia herdado o título de príncipe -, quando ele e a mãe se viram obrigados a deixar Palermo para escapar dos bombardeios que destruiriam o lendário palácio de Via Lampedusa. Depois, Tomasi e Licy viveriam sem filhos na gentil decadência de um reformado palazzode segunda linha, com o gás permanentemente vazando. Ela ajudava-o a ler as obras russas no original e ele passava o tempo folheando volumes de Conrad como um antídoto contra a estagnação da vida siciliana.

Por volta dos cinqüenta e poucos anos, Lampedusa passou a dedicar grande parte do tempo a um grupo de jovens intelectuais. Os encontros furtivos em pequenos cafés acabaram transformando-se em aulas informais de literatura que ele ministrava no palazzo de via Butera. E Lampedusa sentia um enorme prazer em poder compartilhar, na verdade pela primeira vez, toda a sua erudição e paixão pelos livros. Sentia também inveja daqueles rapazes que ainda teriam o prazer de ler pela primeira vez obras que ele já conhecia e amava a fundo. Como material para o curso, escreveu mais de mil páginas com notas sobre literatura inglesa, de Beda a Chesterton e Graham Greene. Sãoinsights brilhantes e leves, não de um acadêmico metódico e aborrecido, mas de alguém confortável em sua vasta cultura, apaixonado pelo que escrevia.

As aulas prepararam o turning point do verão de 1954, quando Giuseppe Tomasi viajou para as Termas de San Pellegrino a fim de acompanhar o primo à convenção literária de novos talentos do Salão do Kursaal. Lucio Piccolo havia enviado seus poemas a Eugenio Montale e acabou premiado no evento. Aqueles acontecimentos marcaram-no profundamente, e Lampedusa voltou da viagem com a enorme impressão de que a ali elogiada nova geração literária italiana – inclusive o seu primo – não passava de um bando de beletristas. Ele diria por carta a um amigo, no Brasil: “Estando matematicamente certo de que eu não era mais estúpido do que Lucio, sentei à minha escrivaninha e escrevi um romance”.

De fato, a partir de então começaria a produzir diariamente, levando a cabo uma obra pequena, composta de O Gattopardo, sua autobiografia, alguns ensaios e uns poucos contos: I Gattini siechi (na verdade, o primeiro capítulo de um romance inconcluído); La gioia e la legge; Linghea; e Il mattino di un mezzandro. Morreria três anos depois, no verão de 1957, vítima de câncer pulmonar, sem ver o seu grande livro publicado.

É interessante acompanhar o percurso da produção literária de Lampedusa, partindo das aulas informais até que iniciasse O Gattopardo, depois do evento em San Pellegrino. Se a princípio escrevia apenas “pour s’amuser”, como dizia, Tomasi aos poucos foi sentindo a necessidade de ordenar as reminiscências pessoais como aquela urgente forma de preservação, o que explica o projeto paralelo de botar no papel os apontamentos de I luoghi della mia prima infanzia. No entanto, não demorou muito para que topasse com as limitações artísticas de uma simples memorialística. A certa altura, a amplitude do objeto perseguido obrigou-o a deixar de lado a autobiografia – que acabaria para sempre inconcluída -, e a dedicar-se integralmente à construção de O Gattopardo, uma obraespelhada naquelas experiências vividas, engrandecidas por todo o senso estético e a profunda erudição que o faziam ser conhecido por “Il Mostro”.

A comparação entre O Gattopardo e I luoghi della mia prima infanzia é importante para que se perceba o verdadeiro alcance de uma obra-prima. Em suasLectures on Literature, Vladimir Nabokov dizia que a literatura não nasceu no dia em que um garotinho Neandertal saiu correndo pelo vale, gritando “o lobo, o lobo”, com o bicho em seu encalço; mas sim no dia em que esse mesmo menino saiu correndo pelo vale, gritando “o lobo, o lobo”, e não havia nada à vista. O poeta é mesmo um fingidor. O autor transfere para a obra sua experiência da realidade e do humano, criando ambientes e paisagens, personagens e detalhes que se incorporam e expandem o universo do leitor. Civilizam-no. E o prazer que experimentamos ao mergulhar na voragem de cada detalhe é um reflexo – essencial –
desse resgate que a linguagem faz da realidade nas grandes obras da literatura.

Evidentemente, o caráter verídico não impede que I luoghi della mia prima infanzia seja formado por relatos deliciosos de um tempo que Lampedusa recorda como “o Paraíso na terra”. São descrições lindas de palácios e seus jardins, as viagens empoeiradas nas doze horas de trem para a propriedade de Santa Margherita Belice – onde a família passava os meses de verão -, a solidão e o lento correr do tempo entre leituras naquela casa imensa de trezentos quartos, e em que moravam apenas doze pessoas. Ele fala de cada canto e nós ficamos a enxergar a galeria de seus antepassados desde 1080, repleta de quadros com títulos e atos de bravura: “Riccardo, defendeu Antioquia contra os Infiéis”; as excursões de almoço na “cabana” de caça – impossível não imaginar o maccaroni com prosciutto e trufas, seguido de peru e bolinhos gelados, uma especialidade preparada pelos cozinheiros que chegavam ao amanhecer para deixar tudo pronto. O gênio de Lampedusa aparece em cada detalhe, no estilo sem pressas com que pinta – de fato, à maneira de um quadro – a Sicília da sua infância.

Mas a verdade é que aquilo não lhe poderia bastar. O Palazzo Lampedusaestava no chão, o mundo mudava vertiginosamente e o resgate artístico de certos valores e experiências teria de ir além das recordações autobiográficas, de modo que a realização de O Gattopardo foi esse passo adiante para que ele buscasse, realmente, “preservar as coisas que sem este leve esforço estariam perdidas para sempre”. E havia muito a ser preservado.

Como o Yeats de The Tower – sobre quem Lampedusa havia publicado um ensaio no periódico genovês Le opere e i giorni –  era hora de escrever seu testamento: “E para diante lanço a imaginação / Sob o luminoso dia que declina, e invoco / Imagens e memórias / De ruínas ou de árvores antigas, / Pois a todos interrogarei” (trad. José Agostinho Baptista). Tomando por base as reminiscências de infância, os diários do avô, sua larga erudição e o talento brutal, Lampedusa escreveu um dos livros mais sublimes do século, recriando aquele mundo que se desfazia, um mundo em defesa do belo contra o filistinismo de burgueses sem educação, em defesa de valores morais e estéticos que então pareciam completamente esquecidos.

O Gattopardo é um romance do gênero “história de família” – segundo Otto Maria Carpeaux, o maior deles – e conta a história de Dom Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina, no contexto do Risorgimento, a unificação italiana. A princípio, Lampedusa havia pensado o livro como o relato de vinte e quatro horas da vida do seu bisavô, no desembarque das tropas de Garibaldi em Marsala. Depois, reconhecendo que “não saberia fazer o Ulysses”, estruturou-o em três períodos de vinte cinco anos, de maneira que acompanhamos a trajetória dos Salina entre 1860 e 1910, em um testemunho impotente do declínio da aristocracia siciliana.

O Príncipe de Salina é um assombro: a personalidade forte – com todas as fraquezas a ela inerentes – e o porte físico de uma liderança natural que dão contornos à sua aguda percepção dos acontecimentos e à resignação orgulhosa de quem vê o inevitável na estupidez de uma revolução que, como todas, quer reinventar o mundo à base de abstrações conceituais. Ele procura o exílio solitário na companhia do cachorro Bendicò, em longas caçadas e na astronomia – o bisavô de Lampedusa fora realmente o descobridor de dois asteróides -, amargurado por não reconhecer nos filhos o próprio caráter. Mas enxerga-se em Tancredi, o sobrinho charmoso que adere à causa de Garibaldi e desaponta as esperanças apaixonadas de Concetta – sua filha sem-graça – para entregar-se à estonteante Angelica Sedàra. Há também Don Calogero – pai de Angelica -, enriquecendo rapidamente e ultrapassando a fortuna dos Salina, sem o menor gosto ou educação; e o espetacular Padre Pirrone, capelão jesuíta da família, que observa o desenrolar das coisas acuado perante o anti-clericalismo violento da revolução.

As mudanças vertiginosas e as escolhas morais diante da agitação social e política, a grandeza de algumas atitudes, a covardia de outras, os dramas pessoais da inevitável passagem do tempo e da presença insondável da morte a cada instante, tudo isso é construído por Lampedusa com riqueza de cenas, paisagens e detalhes memoráveis, em um estilo límpido que, ao menos em tese, tinha Stendhal por modelo. Ele adorava citar o francês: “Meu ideal de estilo é aquele do Código Civil”, entendendo que a perfeição estética estava em “sugerir e evocar as paisagens e a atmosfera com toques sutis, sem quase nunca descrever”. Admirava grandemente a capacidade que escritores não-descritivos tinham de dar um “sentimento da paisagem” através de personagens e eventos, como a Escócia rural de Shakespeare, em MacBeth, ou a frase que Tolstói entendia como o máximo da concisão para descrever o inverno russo: “uma ponte de madeira sobre um riacho congelado, cruzada por duas botas andando sozinhas”.

No entanto, a verdade é que essa aversão à descrição não encontra eco na prática – ao que devemos agradecer. O Gattopardo é repleto de paisagens detalhadas e passagens muito belas, em um estilo que reflete o caldeirão de influências de Lampedusa, com o apuro estético francês – alternando muitos adjetivos com a exatidão cirúrgica do mot juste – refreado à justa medida pela ironia e o humor auto-depreciativo tipicamente ingleses.

Ele escreve sobre o perfume de laranjais que anulam a paisagem noturna e, da mesma forma – também por aromas – descreve o jardim dos Salina: “Mas o jardim, contido e macerado entre as suas barreiras, exalava perfumes untuosos, carnais e suavemente podres, como os aromáticos líquidos da decomposição destilados pelas relíquias de certas santas; as cravinas sobrepunham seu cheiro apimentado ao perfume protocolar das rosas e ao odor oleoso das magnólias que pendiam pesadas nos cantos; leve, corria por baixo destes o perfume de hortelã misturado ao cheiro infantil da acácia e ao aroma confeitado da murta, e por cima do muro laranjeiras e limoeiros transbordavam o perfume de alcova das primeiras flores. Era um jardim para cegos” [1]. Talvez essa seja também a melhor definição da literatura já feita: um jardim para cegos.

Em outra passagem, ele descreve com delicadeza o cair da tarde: “Tendo chegado ao alto da escadaria que através de lentas curvas e longas pausas nos patamares subia do jardim ao palácio, viram além das árvores o horizonte vespertino: do lado do mar enormes nuvens cor de tinta escalavam o céu”. Muito simples, muito bonito. E, naturalmente, há as famosas cenas dos banquetes, com “lagostas cor de coral cozidas vivas”, os “perus que o calor dos fornos dourara, as narcejas desossadas deitadas em seus túmulos de torradas cor de âmbar decoradas com as próprias vísceras trituradas, rosados patês de foie-gras sob a couraça da gelatina”.

E essas descrições não são um aspecto menor da obra. Muito pelo contrário, mostram toda a excelência artística e o prazer estético que a articulação da linguagem pode causar, resgatando a realidade em detalhes sublimes, como aquelas nuvens cor de tinta escalando o céu, do lado do mar. Em 1934, Hilaire Belloc assim justificava por que P.G. Wodehouse era então o maior escritor vivo: “A perfeição em toda arte é atingir o fim a que ela se destina. O fim da literatura é a produção de certas imagens e emoções. E o meio para esse fim é o uso de palavras em qualquer idioma; o uso perfeito desse meio é a escolha das palavras exatas, colocando-as na ordem correta”. Belloc estava certíssimo e Dom Giuseppe Tomasi fazia isso como poucos.

Naturalmente, o imaginário da maioria dos críticos da época não alcançava essa visão e o reducionismo marxista resultou em ataques ferozes a O Gattopardo. A sua riqueza de detalhes foi considerada apenas uma frivolidade decadentista e Lampedusa – já morto -, um fascista da pior estirpe.

A defesa da aristocracia contra as hordas de Garibaldi também causava arrepios na intelligentsia italiana, incapaz de perceber que a briga de Tomasi era muito maior: a guerra pela cultura e os valores espirituais do próprio mundo ocidental. Em uma cena clássica, o Príncipe de Salina tenta falar de arte com Don Calogero, mas o bom burguês, em todo seu filistinismo, só consegue pensar no dinheiro que as obras valem. Na verdade, ali é a civilização que agoniza, acuada pelos novos bárbaros de que nos fala Ortega y Gasset.

E se Lampedusa defende a figura em ruínas do gentleman, é por dar-se conta de que um homem bem-educado “no fundo nada mais é do que alguém que elimina as manifestações sempre desagradáveis de grande parte da condição humana e que exerce uma espécie de proveitoso altruísmo”. A boa educação tem para ele muito da fortaleza virtuosa que refreia os impulsos maus da nossa natureza.

No entanto, isso não implica saídas fáceis e polarizadas. Lampedusa não poupa ninguém. Há um certo cinismo, mas também a profunda percepção de que os novos tempos anunciados pela revolução não mudarão a natureza do homem. Se muita coisa será mesmo pior, por outro lado já antes os homens eram vaidosos, prepotentes, e assim continuarão. Depois da vitória fácil de Garibaldi, Dom Fabrizio recebe a visita de um mensageiro que o quer fazer Senador do novo regime, e a oposição entre os dois é evidente. Chevalley, o enviado, olha o universo dos Salina com desprezo e orgulho: “Este estado de coisas não vai durar; a nossa administração, nova, ágil, moderna, mudará tudo”. De seu lado, o Príncipe mantém a dignidade de não se deixar seduzir pelo cargo, mas se resigna às mudanças inevitáveis: “Tudo isso, pensava, não deveria poder durar; mas vai durar, sempre; o sempre humano, é claro, um século, dois séculos…; e depois será diferente, porém pior. Nós fomos os Gattopardos [“Leopardos”] e os Leões; os que vão nos substituir serão pequenos chacais, hienas; e todos, Gattopardos, chacais e ovelhas continuaremos a crer que somos o sal da terra”. A falta de senso histórico e temporal é mesmo a mãe do orgulho.

Em O Gattopardo, Lampedusa retrata com genialidade as tensões que envolvem a passagem do tempo, entre a permanência do que é possível e as mudanças do mundo. Se a precariedade da vida é a realidade humana mais imediata, essa presença incessante da morte é contrastada com detalhes e instantes tão intensos quanto o protesto dos reis e o consenso dos mártires –copyright Bruno Tolentino. E o livro torna esses instantes também nossos.

Talvez a cena mais bonita – e marcante – ocorra durante o baile no palácio Ponteleone. Enfastiado, Dom Fabrizio isola-se na biblioteca e, a partir de uma reprodução pendurada à parede de A Morte do Justo, de Greuze, começa a meditar sobre a própria morte: com que roupa seria enterrado – talvez aquele mesmo fraque -, a necessidade de fazer alguns consertos no túmulo da família, etc. A essa altura, é surpreendido pelo sobrinho Tancredi e a bela Angelica Sedàra: “Os dois jovens olhavam o quadro com absoluta indiferença. Para ambos o conhecimento da morte era puramente intelectual, era, digamos, um dado cultural e nada mais, não uma experiência que lhes varasse a medula dos ossos. A morte existia, sim, sem dúvida, mas era coisa para uso alheio”.

Angelica pede-lhe então uma dança e o Príncipe dirige-se ao salão, contentíssimo. Dançam: “Os enormes pés do Príncipe moviam-se com delicadeza surpreendente e os sapatinhos de cetim da sua dama não correram o risco de serem aflorados; a patorra dele apertava-lhe a cintura com vigorosa firmeza, o queixo encostava nas ondas letéias dos cabelos dela; do decote de Angelica subia um perfume de bouquet à la Maréchale, sobretudo um aroma de pele jovem e lisa. […] A cada rodopio um ano lhe caía dos ombros; logo estava se sentindo como aos vinte anos quando nesse mesmo salão dançava com Stella, quando ainda ignorava o que eram as desilusões, o tédio, o resto. Por um instante, aquela noite, a morte foi novamente aos seus olhos ‘coisa dos outros’”. Há melancolia, mas uma doce melancolia. E grandeza em cada palavra.

A passagem é mesmo tremenda e o talento de Lampedusa equilibra as tensões da incessante marcha do tempo com aqueles breves instantes de eternidade. Algum tempo depois, no leito de morte, o Príncipe de Salina faz o balanço da sua vida – o trecho é de um lirismo irônico e comovente – e recorda-se desses momentos fugazes, que talvez fossem “doações prévias das beatitudes mortuárias”.

O Gattopardo é, ao mesmo tempo, um longo adeus e o esforço monumental de preservação contra a finitude inevitável. Aqui nesse mundo, o resgate artístico pela memória é tudo o que resta para que nossos impulsos rumo à imortalidade não pereçam. E fazê-lo, atendendo à vocação insondável, é um dever do escritor. Em Moby Dick, Ismael é o único sobrevivente do desastre e a ele cabe contar a tragédia do Pequod. O Príncipe de Lampedusa talvez tenha sido também o último sobrevivente de um mundo imemorial, e a ele coube preservá-lo, transcendendo as limitações da tarefa com o sublime e a beleza de palavras que fazem da experiência estética esse espelho misterioso com seus breves lampejos de eternidade.

por Rodrigo Duarte Garcia, poeta, escritor e ensaísta, é formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e trabalha como advogado em São Paulo (IFE Brasil).

* Texto originalmente publicado na revista-livro Dicta&Contradicta, ed. nº 1, principal publicação impressa do Instituto de Formação e Educação (IFE).