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Éticas ‘Light’, ‘Diet’ e New Age: o eu, o outro e a solidão

Sem Categoria | 16/12/2014 | |

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Pintor: Hans Thoma (1839–1924). Títlo: Loneliness (“Solidão”). Local:  [show]National Museum in Warsaw (NMW). A imagem está em domínio público.Hans Thoma (1839–1924), “Loneliness” (“Solidão”), National Museum in Warsaw (NMW)

Hoje, nossa cultura tem sido influenciada por dois extremos que, a meu ver, não ajudam a bem compreendê-la: de um lado, o discurso social alarmista que lamenta o fim da moral e, de outro, a manifestação festiva e cínica deste fato.

Não faz muito tempo, a sociedade buscava incessantemente sua libertação de tudo que representasse um passado moralista, porquanto se tratava de puro farisaísmo, efeito colateral da repressão burguesa reinante. De repente, por toda parte, assiste-se a uma louvável onda de imperativos éticos: luta contra a corrupção, proteção ao meio ambiente, ações humanitárias, códigos de linguagem não discriminatórios, chamamentos à responsabilidade e ética corporativa.

Os cantores de música oferecem seus decibéis aos mais necessitados e os artistas partem para ações de generosidade. Tal efervescência ética é tão plural que permitiu a restauração de antigos deveres, porque “já não é obrigatório ser liberal em tudo”. No entanto, causa-me a impressão de que a noção de dever absoluto e toda construção teórica que a cortejava desapareceu completamente. Ninguém quer mudar as coisas substancialmente, mas todos estão dispostos a corrigir a superfície.

Do mesmo modo que a sociedade moderna erradicou os matizes arbitrários do poder político, também desqualificou de vez a imposição de normas austeras e disciplinadoras sobre o comportamento dos indivíduos. A era pós-moralista não é transgressiva nem acanhada, é apenas “correta”. Ou melhor, politicamente “correta”.

A nova moral, uma espécie de ética light, é uma ocupação privada justificada desde o momento em que não existam causas públicas que demandem algum holocausto pessoal. Trata-se de um cosmético que ao menos torna mais gratificante sua apresentação externa, de sorte que todos os novos imperativos categóricos morais devem ter o mesmo padrão estético. A dúvida reside na sustentabilidade dessa versão light da ética social.

Aí está o berço da nova moral doméstica, do hedonismo ecológico, da obsessão pelo visual externo. No lugar de uma teia de relações e dependências inerentes às sociedades tradicionais ou até mesmo revolucionárias, existe, hoje, uma justaposição de indivíduos soberanos ocupados diuturnamente com a administração de sua qualidade de vida e com a otimização da gestão do eu.

Nessa ótica, é importante não depender do outro, a fim de se construir um ethos de autossuficiência e de autotutela, típico de uma época em que o próximo é muito mais um perigo ou uma moléstia do que um elo de atração. E o próximo tornou-se uma ameaça, porque, quando se perde a noção de transcendência vertical, fundamento último dos valores, o esfacelamento da transcendência horizontal é só uma questão de tempo. E de espaço.

Na era moderna, de várias maneiras procedeu-se à redução da ideia de Deus e do alcance desta, até sua eliminação implícita ou explícita, provocado por um secularismo dessacralizante da existência. De várias formas, as inúmeras correntes filosóficas indicaram valores objetivos determinados, na maioria das vezes, desligando-os de um vínculo divino. O Iluminismo, pai de todos os racionalismos, é um exemplo significativo desse eclipse transcendental, em razão do princípio de que os valores podem provir unicamente da razão humana.

De lá para cá, todos os valores proclamados pelo Iluminismo foram minguando-se aos poucos, justamente por estarem desvinculados daquele vínculo capaz de sustentá-los e de lhes conferir consistência ontológica. Hoje, como nenhum deles restou de pé, vivemos sob o império do niilismo, da completa ausência de juízos de valor e a máxima nietzschiana “Deus está morto” é uma expressão teórica extremamente lúcida, pois significa exatamente a separação dos valores de seu fundamento ontológico.

Privada de uma âncora de valores, a barca da humanidade está à deriva no oceano da realidade. Buscar uma tábua de salvação na ética light não resolverá a situação, porque os valores desta ética são como castelos de areia, que não têm solidez, desmoronam-se e, logo em seguida, a primazia do eu é restabelecida. A ética light é uma filosofia romântica e vaga: filosofia que serve de pouco quando nos deparamos com a inexorável realidade do outro.

Por outro lado, a cultura da autodeterminação narcisista, efeito atual de um processo de individualismo que culminou com o niilismo existencialista, não submeteu a esfera da moral às forças de um egoísmo impetuoso, mas a deslocou para uma variante muito sutil, a de uma moral sem deveres: a ética diet. Em voga, estão a caridade sem obrigação, o altruísmo brando e a ética mínima da solidariedade compatíveis, é claro, com a primazia do eu.

Nessa ótica, é importante não estar preso ao outro, sobretudo numa época em que o próximo é fonte de desejos inconfessados, mas também de receio ou de perigo. Por isso, o preservativo tem um valor simbólico muito grande e, porque não dizer, paradoxal. Trata-se de um envoltório que protege o indivíduo que não quer se comprometer com nada, porém deseja relacionar-se com o todo.

É um dos símbolos de uma cultura que, sob o manto de uma simpatia universal, esconde uma sensação de incômodo ante a presença ameaçadora dos outros. Equivale a uma situação de guerra de todos contra todos onde os combatentes foram privados de uma arma mortífera e só podem agir defensivamente. Só que, agora, não dá mais para ouvir Hobbes dizer que auctoritas non veritas facit legem (Leviatã, p.2, c.26), porque, afinal, cada um tornou-se a autoridade de si próprio.

Essa é a imagem do outro que fica no subconsciente das pessoas. Como exemplo, tome-se o bombardeio de propaganda contra a indústria do tabaco e do combate à AIDS, ações que, por si só, são louváveis. Quem é o próximo? O próximo reduz-se a um ser fumante e contagioso. O que é a sociedade? Um mero sistema de compartimentos estanques que permite somente o trato e a comunicação impessoais.

E o outro? Fica relegado ao ostracismo? O outro merece a devida atenção sempre e quando não se pretenda ir mais além de um altruísmo indolor, num altruísmo que não muda as pessoas substancialmente. Aliás, substância lembra robustez e, certamente, hoje, é o que menos se vê na aparência física das pessoas, principalmente no mundo da moda.

Assim, pode-se afirmar que esse afã estético acaba por refletir no agir ético de cada um: surge uma ética diet, uma ética sem robustez. Sem substância.Não é à toa que nunca se exibiram tantas realidades inadmissíveis, numa espécie de convocação à solidariedade, acompanhada de uma linguagem de reprovação.

Entretanto, tal êxtase de alteridade é epidérmico e pontual, pois é somente uma identificação superficial com o outro, devido à repugnância do espetáculo do sofrimento alheio. Um compromisso moderado e distante, sendo suficiente um gesto de indignação para que a consciência não fique dolorida.

Se todo um discurso moral limita-se à ótica narcisista, não há como se justificar o menor sacrifício. O problema do sacrifício (decorrente do dever) é um dos temas centrais da ética. O sacrifício é razoável, ainda que soe como um profundo mistério.

É uma ingenuidade pensar que se pode amar alguém, repartir os recursos escassos, tolerar as ideias contrárias ou proteger o meio ambiente sem carregar sobre si toda uma série de inconvenientes presentes e futuros, entenda-se, sem algum gênero de sacrifício.

Os homens ouvem as vozes dos seres que o rodeiam e é próprio do ser humano sentir-se obrigado por essas vozes. Elas são ouvidas, porque o homem é dotado de inteligência, a qual rompe o cerco da psicologia instintiva. Surge o dever de respeito por tais vozes e descobre-se que elas não existem apenas em função das necessidades do outro, mas subsistem por si mesmas e também têm necessidades profundas e não meramente superficiais. Eis o sentido do dever.

A ética diet exige muito do homem e, ao mesmo tempo, muito pouco: muito pouco, porque não o obriga a encarar as contingências da vida, nem o exorta ao dever e à responsabilidade; muito, pois o abandona em seus medos e o deixa sozinho ante a necessidade de orientação, desconhecendo a debilidade de sua natureza.

Não podemos esquecer o fato de que o ser humano tem o particular atributo de ser incapaz de viver sem deveres, os quais são, por sua vez, necessárias limitações de sua liberdade e protetores de sua fragilidade. Por isso, a apoteose do eu não causa uma eliminação da moral, mas apenas sua modificação.

Como a energia, os deveres não se eliminam, transformam-se. Motivo pelo qual o assento dos deveres nunca está vacante. Mas nem sempre está ocupado pelos mais razoáveis, principalmente quando o homem converte-se num ser egocêntrico: eis o principal efeito da ética diet.

Contemporaneamente, um dos males mais gritantes está na diminuição da estatura ontológica do homem a uma única dimensão, a dimensão física. Trata-se do resultado tardio do materialismo ontológico que, a partir do século XVII, formulou que tudo aquilo que existe é realidade física ou epifenômeno desta e, logo, o ser em todas suas manifestações possíveis, é reduzido ao plano físico.

 

No âmbito antropológico, negada a existência de qualquer outra dimensão que não seja a física, todas as características psicológicas do homem (no sentido etimológico do termo), segundo essa visão abrangente, seriam apenas epifenômenos do físico. Ou seja, um fenômeno secundário, que acompanha o principal e é por ele causado: em suma, sem existência própria.

A imagem do homem seria, então, aquela que nos é dada pelas ciências humanas, que têm, como modelo, as ciências da natureza. O homem é, assim, reduzido a uma mera peça da realidade material, subsistente por si mesma e sem referência ao transcendente, um elo da cadeia que se articula na dinâmica social, sobretudo da produção e do consumo, sujeito e objeto ao mesmo tempo de conflitos de natureza vária.

Um bom exemplo disto está na questão do belo, infectado pelo relativismo decorrente deste vazio transcendente, onde se supunha já haver alcançado um nível abissal: compara-se o concerto nº5 para piano de Beethoven com o batuque do Timbalada, uma poesia de Drummond com uma letra do MV Bill, os afrescos de Michelangelo com grafites de viaduto e “O Pensador” de Rodin com o urinol de Duchamp. Como dizia Leo Strauss, se todos os valores são relativos, o canibalismo é só uma questão de gosto…

Nessa imagem, a antiga máxima “o homem é um fim em si mesmo” perde todo significado e é substituída por outra “o homem é um meio”, isto é, um instrumento, um objeto, qualificativo atribuído aos escravos nas sociedades da História Antiga. E, assim, nessa ótica ética new age, todos os homens seriam, principalmente, instrumentos vivos de produção e de consumo, inseridos nas engrenagens de um sistema social cuja lógica lhes escapa. Não é à toa que, acerca da atual crise da razão, sentencia-se a morte do homem, o falecimento de sua dimensão metafísica.

No fundo, o homem perdeu a fé em seu valor, conforme dizia Nietzsche em seus Fragmentos Póstumos. Engendrado numa teia de relações sociais em que atua mais como objeto do que como sujeito, sem qualquer abertura ao transcendente, o homem só tem um refúgio a buscar, a saber, o próprio homem. E o individualismo que lhe resta nesta situação acaba por influenciar seu agir frente à ordem moral e reforçar o império das éticas light e diet.

As notícias da imprensa estão repletas de exemplos que fizeram do amor pelos seus apenas um meio de satisfazer seus próprios desejos. São políticos, empresários, cantores, artistas, atores que sacrificaram a plenitude de sua vida em nome da respectiva carreira, submetendo as necessidades alheias a seus próprios interesses e abraçando a ambição privada.

Depois, quando vem a fatura – o insucesso, o ostracismo, a doença, a velhice – descobrem-se como estranhos num mundo de estranhos mais excêntricos ainda, mas, ainda, desejosos de uma “nova” vida, algo que provavelmente não sucederá, porque a existência tão esperada se revelará uma trama de fracassos e desilusões latentes na memória.

Os homens do século XX trocaram o amor de doação, tão bem ilustrado na literatura, na pintura, na escultura, enfim, na história da arte, depositária das experiências mais ricas da humanidade, por um amor de aquisição, verdadeira máscara, bonita por fora, como as de Veneza, mas que, na face interna, a face oculta, representa o individualismo levado ao extremo.

Tais máscaras, vistas nas tragédias diárias das revistas especializadas, digamos, em retratar as amenidades alheias em pormenores (na falta de uma expressão melhor), escondem o progressivo esquecimento do sentido de doação, de serviço gratuito e de oferta sem pedir nada em troca. As miragens dos interesses individuais provocam um deslumbramento interior que, aos poucos, vai minando o rol cada vez mais diminuto de valores que a pessoa carrega consigo.

Um autor estrangeiro diagnosticou bem esse problema ao ter dito que “(…) as paixões que consomem se consomem velozmente; o amor se enfraquece multiplicando-se, e com o tempo se torna frágil. Os encontros que fazem nascer um novo amor matam o antigo amor. Os casais se desfazem, outros casais se formam e depois novamente se afastam. No amor entre o mal da instabilidade, da pressa, da superficialidade, que reintroduz o mal da civilização esmagado pelo amor”.

O individualismo exacerbado conduz a sociedade à atomização total dos indivíduos e, consequentemente, à inevitável solidão, seu efeito mais nefasto, e a resultante final das três éticas aqui abordadas: a light, a diet e a new age.

A solidão sempre nos conduz à uma reflexão pretérita, mas de nada adianta olhar para trás, pois o tempo cobriu nosso passado existencial com invisíveis mortalhas. Esse mesmo passado é o porto de onde a nossa embarcação já se afastou há muito. Vemo-lo ao longe, por entre as brumas. Mas, certamente, não há mais chance de regresso. Só de inconfessáveis lamentos.

por André Fernandes (IFE Campinas)

De quem é a culpa?

Opinião Pública | 07/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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Conta-se que certa vez o jornal London Times pediu a alguns escritores responderem à pergunta “O que há de erra- do com o mundo?” G.K. Chesterton, escritor, filósofo, jornalista (e tantas outras coisas) enviou a resposta mais sucinta que o jornal teria recebido: “Prezados Senhores: Eu. Atenciosamente, G.K. Chesterton”. Desde que começaram as manifestações no País em tempos recentes, pus-me a meditar sobre alguns chavões que ouvia aqui e acolá, num jornal, na televisão, na boca de um manifestante, de outro, de um grupo etc. Um chavão que me chamou a atenção foi este: percebi que muitos colocavam a culpa no Estado, num determinado partido político, em um grupo social, mas não ouvi da boca de ninguém — mesmo tendo levantado mui- tas informações de fonte primária — algo como: “Eu também sou responsável por aquilo que se passa em meu País.” A culpa era sempre do outro.

Mas as coisas não param por aqui. Percebi que esse costume de sempre colocar a responsabilidade nas costas de outrem não se limitava a esse episódio recente da história do Brasil, mas aparecia em diversos setores da sociedade brasileira,como comércio, em- presas, indústria, universidades, escolas e praças. Parece- me que onde quer que se vá sempre se encontra na boca do brasileiro o seguinte: “nosso País é corrupto” ou “nosso governo é corrupto” ou “aquele grupo é corrupto”. Claro que não quero tirar a responsabilidade real — que de fato existe — de pessoas que formam um governo, um partido, uma organização. É verdadeiro dizer que o Estado é corrupto em muitas de suas esferas e precisa ser punido por isso, efetivamente. Mas o problema está em descarregar toda responsabilidade nesse mesmo Estado, esquecendo que ele é formado de pessoas singulares, concretas, e que nasceram em nossa própria sociedade, sejam eles os de origem simples, sejam aqueles de origem nobre (riqueza).

Dentre os governantes e representantes, vemos corrupção nos de origem simples, média e rica. Claro também que se pode atribuir ao Estado a culpa de corromper aqueles que nele entram, dado o grau de institucionalização da corrupção, e isso daria outro artigo. Mas o que aqui quero chamar a atenção é que a corrupção não se limita ao Estado, a organizações etc. Ela está em toda a sociedade, mesmo porque são homens da sociedade que for- mamo Estado. Em última análise, é o homem quem criou as instituições, os sistemas econômicos e tudo quanto o que a sociedade possui. Nesse sentido, se olharmos com atenção, muitos daqueles que nas manifestações estavam dizendo que o Estado é corrupto são aqueles que, em seu dia a dia, tentam levar vantagem em uma situação aqui e ali, tentam tirar uma casquinha, esconder umas coisinhas para ninguém ver, violar algo discretamente e por aí vai.

Dizem que um outro é corrupto, mas não admitem que eles mesmos o são de algum modo em seu dia a dia. Como a base da sociedade são os homens, e vemos que muitos no Brasil são assim como descrevi no parágrafo anterior, isto é, são de algum mo- do corruptos em seu dia a dia, penso que devemos parar para pensar em nossa própria responsabilidade dentro da sociedade em que vivemos.

Eu, que culpo o Estado, aquele grupo e outros de corruptos, será que não contribuo para que esse Estado e essa sociedade continuem corruptos como estão com meus pensamentos, ações e/ou omissões? E aqui entramos no cerne da questão:não basta que as instituições mudem para que uma sociedade melhore ou deixe de ser corrupta. (Prova disso são os regimes totalitários do século XX que fizeram revoluções e cujo resultado mais notável foi a morte de milhares de inocentes.) É necessário que a mudança comece na base da sociedade, que é o homem e, mais do que isso, no mais íntimo dessa base, o coração do homem. Muitos de nós sabemos que é dos pensamentos e, sobretudo do coração que vêm as maquinações, os esquemas, as trapaças e até as pequenas corrupções. Nesse sentido, enquanto cada um não procurar mudar seu próprio coração, que é onde tudo começa, penso que não podemos esperar uma melhora ética efetiva em nossa sociedade. O que há de errado com o Brasil e com o mundo? Prezado leitor: eu.

■■ João Toniolo é mestrando em Filosofia e gestor do Núcleo de Filosofia do IFE Campinas.

Publicado no jornal Correio Popular, dia 24 de setembro de 2013, Página A2 – Opinião.