Exotismo legal


A Bolívia está sob um maremoto social, embora seja cercada de terra por todos os lados. O presidente Evo Morales sancionou um novo código penal, cujo rol de tipos penais contempla alguns exotismos jurídicos, como os crimes de conversão religiosa, equiparado a recrutamento para confronto armado, e o de reunião pacífica para fins religiosos, ambos apenados com restrição de liberdade de 7 a 12 anos mais multa. Não haveria, a prevalecer a vontade do legislador penal, mais retiros, procissões, romarias e missões.

Em suma, a liberdade religiosa, assegurada pela constituição boliviana, restaria seriamente debilitada. A liberdade religiosa, ao lado da liberdade de expressão, compõe o marco jurídico elementar de qualquer país civilizado e ambas são um termômetro muito confiável do grau que o súdito de um Estado goza de respeito à dignidade humana.

Aliás, uma leitura mais aprofundada desse código penal permite-nos concluir que se trata de uma mistura de dicionário de utopias socialistas com a regulamentação minuciosa do desnecessário. Um excelente caso para estudo acadêmico num curso de pós-graduação.

Fica evidente que a premissa do legislador penal boliviano-bolivariano é a de que a liberdade religiosa (como, de resto, a liberdade de expressão) seria uma espécie de “concessão estatal”, ou seja, uma espécie de “faculdade administrativa” a ser destinada aos cidadãos, segundo as veleidades centrífugas do mandatário-mor de plantão.

A ideia tem o típico odor fétido de totalitarismo, cuja história, sobretudo no século XX, demonstrou que o bem que o Estado pode fazer é limitado e, o mal, infinito. E ainda é equivocada, pois, para ficar só no argumento sociológico, a religião, segundo Tocqueville, em regra, modela os costumes sociais e mostra ao poder político, sem se confundir com ele, os limites de sua atuação a valores – como a liberdade religiosa – que, na verdade, emanam diretamente da dignidade humana e não do decreto do soberano.

A liberdade religiosa, dessa forma, não somente seria um útil fator de coesão social, mas um direito inalienável plenamente compatível com qualquer regime político sério, o que não parece ser o caso da atual versão boliviana, uma espécie de cópia chinesa da matriz bolivariana.

Mas não é só. Nosso ilustre pensador político coloca a liberdade religiosa como uma das garantais de vitalidade de qualquer regime democrático. “É o despotismo que pode prescindir da fé, mas não a liberdade”, dirá Tocqueville. A centralidade da liberdade religiosa é tal que não se pode negligenciá-la para compreender uma sociedade num dado momento histórico e suas aspirações existenciais mais profundas.

Evidente que há pontos de tensão entre a liberdade religiosa e o poder político, a começar pela razão de ser de cada uma: o barco da liberdade religiosa navega pelas águas da salvação futura das almas, enquanto a política preocupa-se com o convés da realidade terrena do bem comum material e imediato dos corpos daquelas almas.

As relações entre a liberdade religiosa e o poder político ainda são um verdadeiro desafio. Ousaria dizer que se trata de uma assunto inacabado, porque, por muito tempo, acreditou-se que o processo de secularização e a separação entre religião e Estado seriam suficientes para dar uma solução final nas tensões entre César e Deus. Não foram, embora tenham aberto muitos e fecundos caminhos de diálogo entre a espada e a cruz.

Recordo-me, agora, de uma propaganda de uma famosa grife italiana de roupas. Líderes mundiais democráticos, conhecidos por sua notória inimizade ou divergência, de olhos fechados e de beijos apaixonados com seus pares ditadores ou aprendizes destes. Puseram até o papa Bento XVI dando um “selinho” no imã da Grande Mesquita do Cairo, mas senti falta mesmo do beijo entre Churchill e Hitler.

Aqui, temos a solução para o código penal bolivariano, caso não seja revogado naquilo em que “inova” legalmente. Quando algum boliviano for vítima dessa cartilha legal teratológica, a grife italiana nos dá um sábio conselho: feche os olhos, junte os lábios e beije seu presidente. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 07/02/2018, Página A-2, Opinião.