Arquivo da tag: Reflexão

image_pdfimage_print

Tal e qual

Opinião Pública | 12/08/2015 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Diz um amigo que o “melhor é deixar a vida nos levar”. De fato, a sucessão temporal é inexorável. Mas isso não pode servir de entorpecimento existencial. Não se vive sem reflexão, por mais elementar que seja. Enquanto se pensa, examina-se, ainda que se passe uma vida inteira sem se atentar para isso.

Em tempos de “metas abertas”, a meta de quem resolve se esforçar a sair um pouco do mundo da correria do cotidiano poderia ser a de alcançar alguma intuição acerca do sentido do mundo e de nossa existência. E, depois, “dobrar” a meta: superar o primeiro passo, a intuição, rumo ao segundo, o conhecimento mais profundo daquelas dimensões de sentido.

Ao contrário da voz corrente, a autêntica riqueza do homem não está em satisfazer suas necessidades mais elementares, mas em saber “ver o essencial no invisível”. Sabedoria de pequeno príncipe. Nesse sentido, a reflexão não é uma tarefa reservada para especialistas, como os filósofos profissionais. Muitos bons insights provêm de filósofos amadores. Pode se dizer que a reflexão é uma tarefa e um desafio para toda pessoa. Deveria ser a coisa mais trivial do mundo começar uma conversa reflexiva não só na universidade, mas também nas ruas, nos cafés e bares.

Contudo, nesse momento, damo-nos conta de algo observado em quase todas as épocas e todas as sociedades: as pessoas que se dão ao “trabalho” de refletir, sejam filósofos profissionais ou amadores, são uns marginalizados, desde o comediante Aristófanes que, no século IV a. C., já satirizava mordazmente as ideias de Sócrates. Quem sabe ele fosse a versão arcaica do aposentado David Letterman, mas sem um Paul Shaffer para ficar comentando e rindo das piadas…

Hoje, no mundo do dinheiro e do sucesso a todo custo, é bem possível que, além das piadas, uma postura reflexiva inspire algum sentimento de pena. Por ser algo que o dinheiro não compra, pode ser visto como uma espécie de luxo intelectual, como já pude ouvir de uma distinta senhora com seus óculos escuros, motorista e bolsa francesa. E perfeitamente tolerável, pois, emendou ela, “enquanto uns pensam, outros trabalham”. Como se pensar não desse trabalho…

Sem dúvida, quem se habitua a refletir, se não toma um certo cuidado, deixa de ter os pés sobre a terra, já que algum distanciamento da realidade é necessário para bem analisar as questões vitais que nos cerca. E – o pior – sem estar ligado de alguma maneira com a realidade, completamente nas nuvens, sugerem-se respostas altamente sistematizadas e sofisticadas que, por estarem completamente desconectadas de nossa realidade, são castelos de areia que mais cedo ou mais tarde irão ruir. Assim foram os sistemas filosóficos que sustentaram os totalitarismos do século XX.

Esse é o perigo maior na tarefa reflexiva. O pensador desliga-se por completo do mundo cotidiano e mira o céu. Mas ninguém pode viver assim perpetuamente. Não somos espíritos puros. Temos um corpo bem material que necessita de comida, bebida e descanso. Precisamos de uma casa, de uma família, de um emprego e de convívio social. Se estou com dor de cabeça, não quero refletir sobre o mal da doença ou os fins do sofrimento. Quero imediatamente um analgésico e um pouco de repouso em silêncio.

Também é certo que, sem uma base material que assegure nossa existência, ninguém é capaz de filosofar. Não se reflete de barriga vazia, sedento ou sob os efeitos de uma enfermidade grave. Daí entende-se perfeitamente que Aristóteles tinha razão: refletir com o olhar no céu, mas com os pés no chão. As duas realidades devem agir em conjunto e não de costas uma para a outra.

Conta Platão que Tales de Mileto passeava contemplando o firmamento quando caiu num poço. Uma empregada, testemunha ocular do fato, caiu na gargalhada. Se alguém que tome a reflexão a sério pode ser motivo de risada, por outro lado, por viver num mundo em que os outros orientam-se exclusivamente por interesses pragmáticos, como o dinheiro, o poder ou o sucesso, ele não se dedica a algo que seja dotado de uma “utilidade intrínseca” e, logo, tem o espírito muito mais livre daqueles se guiam por aquelas ambições.

A filosofia não se presta a utilitarismos de vitrine. Recusa-se a objetivos que estão fora dela mesma. Filosofia não é sabedoria de funcionário, mas sabedoria de cavaleiro, com já disse o Cardeal Newman. Não é sabedoria útil. É sabedoria livre. Se for para ter alguma “utilidade”, mais do que buscar respostas para as questões vitais, uma vida reflexiva presta-se a conservar sempre viva uma pergunta: aquela que se refere ao fundamento último de toda existência humana. Mesmo que, para afirmar isso, tenha que provocar algumas risadas. Como faz o provérbio italiano: filosofia é uma ciência tal que, sem a qual, o mundo continuaria a ser tal e qual. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 12/8/2015, Página A-2, Opinião

Sócrates ou Prozac?

Opinião Pública | 05/08/2015 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Todo homem pode e deve perguntar para si mesmo sobre os motivos de nossa existência e do sentido mais profundo do mundo que nos cerca. Muitas das crises de depressões dos consultórios são crises de falta de sentido. Para aquele fim, é necessário o desenvolvimento de um conjunto de atitudes básicas para que a dimensão reflexiva possa produzir seus frutos ao longo da vida. Do contrário, outros fatores externos poderão corrompê-la, a ponto de não se ter a vida examinada da pesada sentença de Sócrates. Aliás, hoje, será a vez dele.

Uma atitude muito importante – e isso não é fácil na fogueira das vaidades do ambiente acadêmico – é fomentar a humildade intelectual. Não há espaço para uma estimativa exagerada de nossas capacidades intelectuais. Dizia meu professor de química dos tempos de Porto Seguro que, quanto mais se estuda, menos se sabe… Realmente, quando se resolve enfrentar a fundo um campo do saber, logo se nota que uma vida inteira, muitas vezes, é insuficiente para conhecê-lo com profundidade.

Mesmo que uma pessoa tenha uma experiência rica e uma compreensão profunda da vida humana, jamais deve perder o sentido da realidade: o indivíduo que tem uma vida de reflexão não é um sábio por excelência. Apenas ama a verdade, sente uma necessidade de compreender os últimos porquês do mundo que o rodeia e busca relações de sentido entre as coisas.

A antiguidade clássica sempre viu no ato de filosofar ou de refletir um ato de amor à sabedoria e à uma sabedoria que jamais chegará a ser possuída completamente. Uma pessoa que vive a humildade intelectual é consciente de não saber nada. Sócrates já admitia que só sabia que não sabia.

Hoje, é muito difícil que alguém saiba tudo, nem mesmo num campo mais especializado do saber. Começa-se a estudar algo, mas não se chega a um fim. Constantemente, descobrem-se mais campos de investigação. A especialização torna-se cada vez maior. Um amigo já descreveu esse fenômeno como sendo o “pontilhismo científico”: com o universo de pesquisa reduzidíssimo, as ciências, sobretudo as experimentais, transformaram-se numa espécie de pintura pontilhista vista de perto e sem uma imagem-tema.

Um cardiologista não entende nada de oftalmologia. Um advogado criminalista não tem a menor noção de direito previdenciário e um psiquiatra não entende de farmacologia. Essa especialização cria um risco maior de manipulação das ciências, porque um monte de dados soltos só dá uma imagem geral quando, como num mosaico, temos uma ideia prévia de onde encaixar as diversas peças, o significado de cada uma e a importância de sua contribuição para o todo.

Por outro lado, o esfacelamento científico ajuda-nos a desmistificar esse quadro atual de fé cega na ciência, pois demonstra que o ser humano tem uma mente limitada e que é incapaz de abarcar o todo. E Sócrates não se limitou a afirmar a própria ignorância: disse que jamais fora mestre de nada. Ou seja, não é possível dividir a humanidade em duas grandes classes, a dos que sabem, composta pelos sábios, e a dos que não sabem, formada pelos ignorantes. Todos estamos buscando a verdade e ninguém a possui completamente. Cada um de nós pode aprender dos demais e mesmo dos ditos ignorantes, porque – outra contribuição socrática – a ignorância é a base para o conhecimento válido.

Ficamos um tanto céticos ante as construções sistemáticas do saber moderno: assistimos à derrocada de sistemas ideológicos inteiros e à revisão dos fundamentos de vários campos do saber. Ao mesmo tempo, presenciamos o sepultamento de um sem número de tradições fundamentais da cultura ocidental.

Esses revezes podem ser benéficos para uma pessoa e mesmo para a sociedade, porque uma crise não é sinônimo de catástrofe: pode ser útil para se voltar a tomar consciência dos próprios fundamentos vitais. Uma oportunidade de ouro para um espírito comodista transformar-se num espírito reflexivo.

Mas sem se esquecer de que uma boa pitada de humildade é o condimento necessário para uma vida de reflexão sadia. A mesma humildade que produz um efeito irônico na relação ao outro, ao criar o atrito que, por sua vez, gera a centelha do diálogo. Moral da estória: mais Sócrates e menos Prozac. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no Jornal Correio Popular, edição 5/8/2015, Página A-2, Opinião.

Hannah Arendt: o compromisso de pensar, por Pablo González Blasco

Cinema | 19/03/2015 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

“Hannah Arendt” – Direção: Margarethe von Trotta. Barbara Sukowa, Axel Milberg, Janet McTeer, Julia Jentsch, Ulrich Noethen,. Alemanha, Luxemburgo, França. 2012. 113 min.

     Todos os comentários que me chegaram deste filme eram unânimes: cinema de primeira categoria. Direção perfeita de Margarethe Von Trotta, interpretação magistral de Bárbara Sukowa. Magistral e realista: fumando o tempo todo, como a personagem que encarna, embora o filme não chegue a mostrar os charutos que Hanna fumava em público. Os intelectuais, os filósofos e o tabaco: alguém já escreveu sobre isso, eu não me detenho nessa particularidade, até porque estou em atraso com estas linhas. Explico.

Deixei o filme em suspenso, e debrucei-me sobre um livro que repousava na minha prateleira. Quis lê-lo antes de assistir o filme, para ter uma ideia da vida e obra da pensadora alemã. Levou-me algumas semanas, mas valeu a pena.  É pouco provável que os leitores tenham a oportunidade de ler alguma das obras de Arendt antes de ver o filme. Mas seria muito útil que, ao menos, lessem o comentário que fiz a esse livro, antes de mergulhar na fita. Sem preocupação; não conto a trama do filme, até porque o aspecto em que se foca a produção é pontual: a cobertura jornalística que Hanna Arendt fez para o New Yorker do julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém.

O filme serve a modo de aperitivo a vida da Hanna Arendt e do seu marido Heinrich Blucher, as reuniões na sua casa com a tribo de pensadores e artistas,  e até alguns flash back com Heidegger, o amante da juventude. Mas o prato forte é, sem dúvida, a vivência do julgamento do criminal nazista. Arendt foi a Jerusalém para cobrir o evento como jornalista –mais colunista do que repórter, diríamos hoje- mas o resultado foi uma verdadeira experiência filosófica, a contemplação de uma realidade que se lhe figurava com perfis diferentes aos que todos os outros conseguiam enxergar. Tudo culmina no discurso onde, diante uma plateia de universitários absolutamente seduzidos pela pensadora, dá razão da sua perspectiva, e dos seus escritos que cristalizaram na obra polêmica: “Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal”.

     A cena do discurso cativou-me. Imediatamente a inclui no meu repertório de clips cinematográficos, e a utilizei seguidamente em duas conferências que tive de dar em dois congressos médicos diferentes. O impacto no público foi notável. E as ideias que me sugeria foram se desdobrando, com rapidez, enquanto eu tentava alinhavá-las para anotá-las nestas linhas.

Independente do tempo histórico e de uma possível justificativa para os que a criticavam por entender, equivocadamente, que estaria negando o holocausto, Arendt estabelece um paradigma de capital necessidade para o momento presente. Eichmann funcionou apenas como uma desculpa – um caso extremo- de alguém que abdicou de uma das características integrantes do ser humano: o compromisso de pensar. “Não encontrei ali um ser diabólico, nem a encarnação da perversidade. Deparei-me com um funcionário, um burocrata que se adaptou ao sistema e abriu mão de pensar”. E a seguir o grande recado: “Os maiores males do mundo são causados por gente comum que deixa de refletir, que não pondera suas ações, porque interrompeu o diálogo intimo que devemos ter conosco mesmos. Desta atitude medíocre nasce o que eu denominei a banalidade do mal”.

O caso extremo do carrasco nazista que despacha pessoas para os campos de concentração como quem controle estoque de mercadorias com apurada competência, serve para ilustrar aspectos menos chocantes, mas de premente atualidade. Lá está o tema que me ocupa habitualmente –a Humanização da Medicina- motivo dos convites e das conferências apontadas. Não tanto a humanização, mas o por que nos desumanizamos.

     As palavras em inglês arrastado de Hanna Arendt funcionaram como veículo perfeito para dar o meu recado. A grande –e preocupante- questão, é que os médicos que destratam o paciente, aqueles aos que lhes falta humanismo, não são pessoas más, cruéis e insensíveis: são, simplesmente, profissionais que entraram no sistema, que fizeram o que todos fazem, que não se deram ao trabalho de pensar na sua missão, no compromisso vocacional. Veio à mente algo que me aconteceu há já muitos anos. Foi também durante uma conferência, nessa ocasião dirigida a estudantes. Quando acabei, aproximou-se de mim uma aluna –os alunos nem sempre falam diante da plateia, reservam as melhores questões para os momentos em que o professor começa a abandonar a sala- e me disse que estava em crise. Sorri, e olhei para ela convidando-a a desabafar. “Estou no quinto ano de medicina. Ontem dei plantão no pronto socorro da obstetrícia, e chegou uma mulher que tinha provocado um aborto. Estava sangrando, com dor, assustada. O residente encarou-se com ela e gritou que essas coisas há que pensá-las antes. Foi se preparar para fazer a curetagem e eu segurei a mão da paciente e disse a ela que o médico (residente) não era má pessoa, que estava cansado do plantão”. Devo ter colocado uma cara compreensiva, porque ela continuou: “Professor, eu conheço esse residente. Ele estava no quarto ano quando entrei na faculdade. Era uma pessoa ótima, alegre, animada. Hoje ele é assim….” Minha cara deve ter assumido um interrogante, porque ela disparou: “Minha angústia é …..Quando é que a gente vira bandido, professor?”.

Não lembro o que respondi àquela aluna. Talvez não respondi nada. Mas contei este fato inúmeras vezes nos meus encontros com estudantes. Hoje, se tivesse ocasião –quem sabe agora com as redes sociais onde todos ficam sabendo de tudo ela leia estas linhas- lhe diria: convide-o, em nome dessa velha amizade, para assistir o filme de Hanna Arendt. Lá veria a pensadora apaixonada explicar por que abdicamos de ser pessoas –nos desumanizamos- quando abrimos mão da característica que define o homem como tal: a capacidade de pensar. Entenderia que a incapacidade de pensar é o que permite que gente normal, medíocre, cometa as maiores atrocidades.

     Naturalmente as conclusões no nosso cenário não são tão evidentes como no caso de Eichmann. É preciso conduzir a reflexão da plateia para que se atreva a pensar que o recado é para eles, para todos nós.  Até porque abdicar da reflexão, atitude frequentíssima, costuma estar disfarçada de condutas equívocas. Falávamos das redes sociais e da aluna de quem nunca mais tive notícia. O que poderia ser um bom recurso para oferecer agora uma ajuda concreta, é também uma arma de dois gumes. É difícil que alguém que passa a vida se comunicando com metade do planeta, imagine que não dedica um minuto da sua vida a….pensar. Troca informações, “curte” notícias, compartilha fotos, tem a vida –e a intimidade- como livro aberto, em vitrine comunitária. O barulho virtual é tanto, que não há espaço para o silêncio que a reflexão requer. E quando alguém põe as manguinhas de fora e se atreve a socializar uma carga de profundidade reflexiva, é muito provável que receba um comentário irônico, ou que seja sumariamente eliminado de grupo de “amigos”, que rapidamente podem substitui-lo por outras duas dúzias de elementos que transitam no universo de mediocridade não pensante.

Eu costumava ilustrar o descaminho do médico na figura do Cavalheiro Jedi que se passa para o lado negro da força. Alguém muito bem treinado, com poderes formidáveis que por medo cai para a escuridão.  Os olhos vermelhos de Anakin Skywalker transpirando medo de perder a mulher que ama são o prenúncio da metamorfose em Darth Vader. Agora, Hanna Arendt me mostra que a questão não é tão simples, e que os bandidos nem sempre estão integrados num Império que conspira. O perigo que nos ameaça, está dentro de cada um de nós, em tênue divisão, onde a reflexão é a verdadeira fronteira. Muito bem o adverte um conhecido educador quando escreve: “O  meu problema imediato sou eu mesmo, e o pacto silencioso que estabeleço com o sistema e que permite que “o de sempre” governe a minha vida e as minha decisões” (Parker Palmer: The Courage to Teach). Cruzam-se os limites sem maldade intrínseca, num deixar-se levar, maria-vai-com-as-outras; tudo sem grandes traumas, amparados pelo sistema, enfeitado com o cintilar de bijuterias que piscam alegremente no smartphone fazendo sentir o aconchego de um mundo virtual –milhares de amigos- que compartilham e “curtem” um gregarismo medíocre que promove a banalidade do mal.

O imenso conhecimento que temos ao alcance da mão não dispensa o compromisso de pensar. Essa advertência seria a principal função dos professores universitários, ao invés de vomitar repetidamente informações que os alunos adquirem por si sós, mais rapidamente, de pijama nos respectivos domicílios. Advertir e provocar, fazer pensar: um verdadeiro desafio para os que se envolvem na educação, que não é simples treino, mas fomentar uma atitude de reflexão de por vida. Não dar peixes, ensinar a pescar, entender por que se pesca, e abrir espaço à criatividade e a novas modalidades de pesca.  As frases finais do contundente discurso de Hanna Arendt servem para fechar estas considerações: “A manifestação do ato de pensar não é simples conhecimento. Mas é a habilidade de distinguir o bem do mal, o feio do bonito. Sem pensar nos tornamos incapazes de fazer juízos morais. Espero que essa capacidade de pensar dê às pessoas a força para evitar as catástrofes nos momentos decisivos”.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

 

Fontehttp://www.pablogonzalezblasco.com.br/2013/10/25/hanna-arendt-o-compromisso-de-pensar/

A Árvore da Vida: Terrence Malick em busca de Sentido – por Pablo González Blasco

Filosofia | 08/12/2014 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

 

Poster-arvore-da-vida-734278

The Tree of Life (2011). Diretor: Terrence Malick. Brad Pitt, Sean Penn and Jessica Chastain. 139 minutos. 2011.

Este é um desses filmes que eu nunca teria me animado a assistir, mas não tive escapatória. A convocação me chegou a través de um amigo, depois outro, e mais um. “Você tem que ver esse filme que ganhou Cannes”. Assim de simples. Na verdade, o que se deve ler é “Você tem de ver esse filme, e escrever sobre ele, porque quero saber o que você vai comentar”. É o que da quando a gente se mete a crítico de cinema – que, aliás, nunca afirmei ser, nada mais longe do meu propósito. Apenas compartilho as ideias que me ocorrem quando vejo filmes, na tentativa –isso sim é verdade- de promover a reflexão.

A bandeira do humanismo que, também é fato, levanto sempre que se me oferece a oportunidade, é estandarte confeccionado à base da reflexão. Educar no humanismo não é tanto ensinar coisas novas, mas, sobretudo ajudar a lembrar das raízes que todos levamos dentro. Ou, como me dizia o outro dia um professor universitário envolvido com os temas da bioética, trata-se de despertar o humano que está adormecido, esquecido dentro de nós. Não se trata de inventar nada, ou melhor, é pura invenção, no sentido latino que Ortega lembra nos seus escritos: inventar- invenire, descobrir, encontrar. Não é criar–afirma o filósofo-, mas aprender a demorar-se em contemplar as coisas próximas da nossa intimidade, do nosso âmbito doméstico, que preenchem as horas da nossa vida. Lá encontramos o filão do humanismo, das raízes, das aventuras que somos chamados a viver.

Terrence Malick é um diretor muito peculiar, um cult. Como já comentei em alguma ocasião, não sou entusiasta dos diretores que fazem um filme a cada 5 ou 10 anos, e depois desaparecem. Uma espécie de cometa Halley do Cinema. Mas a insistência dos amigos e o premio de Cannes –logo mais volto sobre isto, pois tem sua importância- foram o motor de arranque para enfrentar as quase duas horas e meia de filme.

Malick deve ter suas razões para trabalhar assim: estudou filosofia em Harvard, foi para Oxford onde desenvolveu uma tese sobre Heidegger. Temos, pois, um filósofo atrás da câmara, e nada surpreende a profundidade das suas produções – que, naturalmente, ele mesmo escreve – e que não são acessíveis para qualquer um. A Árvore da Vida é um claro exemplo de cinema de autor, no caso, de cinema de filósofo. E em se tratando de um filósofo sintonizado com os existencialistas, o resultado sempre será denso. Até agora não estou certo se isto é um filme, ou uma reflexão existencial desenhada em fotogramas. O que não subtrai o mérito, inegável, deste espesso mergulho vital.

Vale dizer, para nos entender melhor, que o menos acessível é a forma, não tanto o fundo do que Malick transmite. É possível ventilar questões existenciais e perspectivas transcendentes, em linguagem aberta. O cinema está repleto de exemplos: das comedias americanas de Frank Capra, até os ensaios de transcendência de Clint Eastwood; do cinema de Chaplin e os dramas de William Wyler até Peter Weir ou Spielberg, por citar alguns. Mas tudo isso é Hollywood, um modus dicendi direto, aberto, onde as questões existenciais estão diluídas em histórias fortes, cativantes. Malick não é Hollywood, e a advertência procede.

Uma história pessoal esclarecerá melhor esta temática. Há já alguns anos, durante a defesa da minha tese doutoral em Medicina -coloquei lá vários filmes como recurso pedagógico para fomentar o humanismo nos estudantes de medicina- um professor da banca me interpelou: “Noto que você utiliza somente filmes americanos. Seria de esperar que alguém com a sua formação humanística e filosófica, além da sua origem europeia, utilizasse autores como Bergman, Kurosawa, Kieslovsky. Por que essa preferência por Hollywood? Não estará adotando um viés muito americano em sua docência?”. Limitei-me a sorrir, enquanto buscava as palavras mais delicadas para responder ao professor. Para minha felicidade as encontrei em tempo. “Sem dúvida, os autores que o senhor cita são de fundamental importância para provocar a reflexão do estudante. Mas, devemos convir, que o que Kurosawa diz em 30 minutos, Hollywood consegue de algum modo coloca-lo em 5 segundos. E eu, professor, não tenho todo o tempo do mundo para ensinar. A economia do tempo orienta os autores que escolho”. Parece que minhas razões convenceram, porque o diálogo se encerrou por ali mesmo.

Voltando ao nosso filme: Malick não é Hollywood, e a temática do filme é servida em ritmo lento, pausado, com um visual atraente, que solicita continuamente a cooperação do espectador, sua interação vital, como vital é a posta em cena, onde se adivinha a própria alma do diretor. Uma alma repleta de sensações e vivências, de dúvidas e de procura, onde se mesclam numa estética visual espetacular os mais diversos ingredientes.

A dor da mãe que perde um filho – ponto de partida do filme, e de todos os interrogantes-, o relacionamento familiar com luzes e sombras, as omissões no amor, a celebração da vida, a criação do universo com Big-Bang incluído, os dinossauros, a vida além da morte. E, como uma constante, Deus. Não um Deus panteísta, difuso, que se confunde com o universo. Um Deus que se busca com afinco, com quem se pode falar e a quem se pedem explicações; um Deus pessoal em quem se busca o sentido do sofrimento, do amor, da vida como um todo. Ver as coisas como Deus as vê: “Quero ver o que você vê” clama a protagonista no meio da sua aflição. Vulcões e lava, trovões e criaturas pré-históricas, seres humanos frágeis que proferem verdadeiros gemidos de transcendência. É tão explicita a forma com que Malick o apresenta, que até São Paulo veio à minha memória, quando fala dos gemidos inenarráveis da criação, que espera a manifestação dos filhos de Deus.

Os tais amigos não deixaram por menos, e sabendo que já tinha assistido, perguntaram-me: “O que te pareceu?”. Eu, que estava alinhavando –ainda estou- o impacto das reflexões, respondi de bate pronto: “Uma mistura de Viktor Frankl com Santo Agostinho”. Perplexidade: “Como assim? Explique-se”. Nisso estamos, nas explicações.

V. Frankl, psiquiatra e neurologista vienense, sobrevivente de Auschwitz e fundador da Logoterapia, recolhe na sua obra “Um psicólogo num campo de concentração: um homem em busca de sentido”, os fundamentos dessa escola psicológica. Valha um resumo em poucas palavras. Não é falta de prazer o que frustra o homem, como dizia Freud, de quem Frankl foi discípulo; nem a falta de poder, opinião da Adler, seu colega. O que afunda o homem é a falta de sentido na vida. Sem sentido, sucumbe-se: no campo de concentração, e em Wall Street, tanto faz. Frankl afirma que todo homem precisa de uma sadia dose de tensão para conservar na sua vida um sentido claro para viver. Essa sadia tensão vem em forma de dor, de sofrimento, de privações; um tempero necessário para manter-se em forma, para não adormecer.

     E como bússola do sentido, o amor. “Ama e faz o que quiseres” – diz Santo Agostinho, em frase tão conhecida, como frequentemente mal interpretada. Não por falta de limpidez, pois o recado é claro. Diz assim a frase completa: “Ama e faz o que quiseres. Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos.” Os mal-entendidos não são por conta do que Agostinho escreveu, mas do mercado negro onde o termo amor se ventila em subasta pública. Até o próprio Ortega – nada suspeito nestes temas teológicos-, comentando este pensamento se atreve a afirmar que Agostinho foi um dos temperamentos mais eróticos que já houve, um campeão do amor, porque colocava em Deus todo o seu peso, a sua densidade, o seu sentido de existência. “Deus meus, amor meus et pondus meus– Deus é o meu amor, o meu peso, a minha medida”.

A Árvore da Vida são inúmeras pinceladas, a modo de quadro impressionista, que desenha os contornos que o espectador deverá adivinhar e completar em si mesmo. Perfis que se projetam no sentido que é preciso buscar na vida, e no amor que sara as feridas que se produzem nessa procura. Lesões que nos mesmos causamos naqueles que amamos, por insuficiência e desatenção, por pura falta de jeito, quando não por orgulho e despeito. Estragos que a vida infecta, mas que o sofrimento e o amor purificam.

Este amplo repertório de questões existenciais não chega por surpresa, pois a abertura do filme é clara e contundente. Quem avisa, amigo é. Diz assim, em tradução livre: “Ensinaram-me que há dois modos de viver a vida: o modo da natureza, e o modo da graça. É preciso escolher qual dos dois vai seguir. A graça não busca o seu conforto; aceita ser esquecido e desprezado. Aceita insultos e injurias. A natureza somente busca satisfazer-se e que os outros a agradem; e encontra sempre motivos para não estar alegre, mesmo com o mundo brilhando à sua volta, e o amor transpirando em todos os cantos. Ensinaram-me que quem escolhe o modo da graça, nunca se da mal. Venha o que vier, sempre chega a bom termo”.

E agora, a pergunta fatal. Como um filme assim conquista a Palma de Ouro de Cannes? Vai ver que é o intelectualismo de Malick, o cinema de autor, enfim, motivos que sempre se ventilam nestes palcos. Mas depois do que aconteceu no ano passado, onde os nove monges da Argélia levaram a Palma, (Homens e Deuses), tudo isso não me convence. Perguntei a um amigo, filósofo, o que está acontecendo na França onde os prêmios os levam filmes que falam abertamente de transcendência, da alma, de Deus. “Deve ser a crise” – me disse, sem dar muita importância ao tema. Sim, a crise, pensei; mas não a do euro, nem a da bolha imobiliária, mas a emparentada com sua própria etimologia. Em latim, crisis, mudança; em grego, krisis, momento de decisão. As mudanças que, antes ou depois, teremos de enfrentar para decidir o sentido que vamos dar à nossa vida. Um filme ou uma reflexão? Tanto faz. Se catalisar nossas crises, já cumpriu o seu papel.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005). 

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2011/10/24/a-arvore-da-vida-terrence-malick-em-busca-de-sentido/

Sobre o mesmo filme também indicamos o texto “As lágrimas da Criação”, de Martim Vasques da Cunha, publicado no site da revista Dicta&Contradicta.

Quem tem razão?

Opinião Pública | 28/10/2014 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

 

— Bom, mais importante agora é garantir o controle da inflação — diz o jovem ao cobrador do ônibus, repetindo o que ouvira no telejornal.

— Ah, o povo quer mais é bandido da cadeia — foi a resposta.

O leitor, a essa altura, já está tomando consciência que o debate político que tomou conta do País vai começar a diminuir no cotidiano das pessoas, e conversas como a transcrita, tão comuns nas últimas semanas, vão cada vez ter menos espaço. Muita gente pode ter se surpreendido com o alcance que tiveram as ideias, propostas e acusações lançadas durante a corrida presidencial, na qual cada um queria ter a razão. Não era pra menos, dada a temperatura dos embates e a importância das eleições.

Entretanto o que faz com que as pessoas entrem em discussões tão complexas não é o calor do momento ou a relevância de uma escolha. A tomada de posições tem raízes mais profundas, ligadas diretamente à natureza dos homens. Cada pessoa, dotada de inteligência e vontade possui uma irresistível atração pela busca da verdade. São Tomás de Aquino, ilustre pensador do século 13 e proclamado pela Igreja Doutor Angélico ensina, na sua Suma Contra os Gentios, que a busca citada é o fim último de cada homem,ou seja, aquilo que nossa alma aspira em última instância.

Com isso em mente, vejo que o momento atual pelo qual passa nossa pátria não poderia ser mais oportuno para uma breve reflexão sobre o tema. Antecipo, caro leitor, o meu prognóstico: se continuarmos a fazer uso de nossa capacidade racional da maneira que estamos fazendo, a sociedade vai de mal a pior.

Ao meu ver, uma maneira muito simples de chegar a essa conclusão é observar a relação das pessoas com a mídia. Acostumadas à velocidade do tempo da internet e da pressa que se impõe aos cidadãos do século 21, cada vez mais as pessoas se contentam em ler apenas manchetes. Com isso, não somente exaurem sua busca sobre determinados assuntos em fontes pouco abrangentes e duvidosas (como a linha do tempo do facebook, por exemplo), mas, ainda mais preocupante, é que não dedicam tempo nenhum à reflexão sobre as informações que recebem.

Começarei citando como exemplo o que foi veiculado sobre os relatórios do Sínodo dos Bispos, que aconteceu em Roma e tratou sobre os desafios pastorais relativos à família. Os mais antenados irão concordar comigo que os mais sérios e respeitados veículos de comunicação do Brasil e do mundo noticiaram que os pastores da Igreja, como aval do Papa, promulgaram um documento que mudava a visão dos católicos sobre o homossexualismo, dando a aprovação e a benção. Ora, é fato que o pontificado de Francisco pode ser considerado um pouco mais liberal que o de seu antecessor, mas o que saiu da mídia extrapola o limite da interpretação e passa a ser uma mentira deslavada. O relatório do sínodo publicado pelo Vaticano, se lido na íntegra, jamais deixa espaço para tal entendimento. Qualquer pessoa que se dignou a ler os não mais que 70 parágrafos verão que esses — inclusive os não aprovados pelos bispos — reafirmam a doutrina católica,como fez a Igreja nos últimos 2.000 anos.

Para citar outro exemplo abrirei espaço novamente à política. Na última semana, uma enxurrada de pesquisas foi divulgada, apontando resultados que conseguiam agradar gregos e troianos. Em meio a essa confusão, o número de eleitores que não queriam “perder seu voto” e acabaram por escolher o candidato que estava à frente segundo o instituto X ou Y foi assustador. Quem agiu assim não foi diferente da criança que, ao ver o colega relutando em fazer o que lhe foi ordenado, não resiste e cai, inocentemente, no mesmo erro.

Não quis nas linhas acima criticar as pessoas que não possuem um conhecimento mais profundo sobre certos temas. O que pretendi tomando o tempo do leitor (que estava,inclusive, buscando um texto de autoria de outra pessoa) foi deixar um aviso. Buscar a verdade, estudar, refletir, não é fácil, é custoso. Toma tempo, atenção e, sobretudo, a nossa disposição, que poderia ser gasta em algo mais prazeroso. Todavia, se entregar à preguiça não trará como consequência apenas uma pequena chateação por não poder rebater os argumentos daquele nosso amigo que crê estar sempre com a verdade, ou o breve incômodo de ficar na dúvida sobre em qual notícia acreditar.Se entregar a essa preguiça representa uma renúncia da busca mais nobre do homem ante a um vício da carne, o que seria a negação da própria natureza humana.

Pedro Toledo é estudante de Direito da USP e colaborador do IFE – Instituto de Formação e Educação.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 28 de outubro de 2014, Página A2.