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A playboy e o cão de Pavlov

Opinião Pública | 04/11/2015 | | IFE CAMPINAS

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A revista “Playboy” anunciou que não publicará mais o nu feminino, porque não consegue mais fazer concorrência com toda a pornografia da rede mundial de computadores. A partir de agora, só fotos insinuantes. Com as moças todas comportadamente vestidas. Muitas críticas a favor e contra a inédita decisão editorial. Muitas delas são irreproduzíveis nesse veículo midiático, em respeito ao público familiar que nos lê semanalmente.

Fui introduzido no mundo desta revista lá pelo primeiro ano do ensino médio. Depois, olhando retrospectivamente, percebi que debutei tardiamente, ao menos, se comparado com os colegas de classe. Lembro bem: em três amigos, o José, o Alexandre e eu, fomos passar as férias em Pouso Alegre, na fazenda do pai do primeiro.

Como sempre fui um rapaz de cidade grande, viajar para uma fazenda era um turismo exótico. E foi mesmo. Tirei muito leite de vaca, dirigi trator, montei cavalo e colhi café. Tudo isso regado ao inconfudível aroma campestre produzido a partir das necessidades fisiológicas de vacas e porcos.

Ali, aprendi, definitivamente, que não gosto disso. Por isso, nunca levarei meus filhos para programas em hotel-fazenda. Nem meus netos. Também, depois dessa temporada bucólica, aprendi a dar valor a mim mesmo. Explico. Logo no primeiro dia, o Alexandre abriu a mala e saiu a distribuir as “Playboys”: a da Fulana, a da Sicrana e a da Beltrana, todas já lidas e relidas por ele com as respetivas notas para os pormenores anatômicos de cada uma delas.

Recordo-me que, depois de umas duas horas de leitura sentado no canto da piscina, devolvi tudo para ele e disse: “É só isso?”. “Como assim só isso?”, respondeu ele. “Depois de duas horas de tanta nudez vulgar, me senti como o cão de Pavlov: fiquei babando à toa. Só faltou a revista vir com uma sineta junto!”, afirmei. A partir de então, declarei minha independência do mundo das carnes gráficas expostas.

Com a massificação da indústria das revistas masculinas, a vulgarização da nudez feminina chegou a um patamar sem precedentes, ao ponto de a própria nudez virar uma espécie de indumentária uniforme e o consumidor transformar-se num ginecologista sem diploma. Sem contar o tédio sexual, a demandar doses mais cavalares de nudez e, depois, de nudez com as variáveis sexuais majoritariamente ortodoxas, para não entrar nos casos patológicos.

A nudez vulgarizada é uma espécie de ida ao açougue. Carnes, carnes e mais carnes. Sem mistério. No lugar da atração, a provocação. Da beleza do corpo humano, a fealdade de sua reificação. Um ávido indivíduo começa como leitor carnívoro e, com a náusea pornográfica, termina vegetariano.

A nudez vulgarizada inclui elementos e temas sistematicamente ofensivos à dignidade da mulher, porque, implícita ou explicitamente, ela é apresentada como uma espécie de brinquedo sexual do homem. E, como todo brinquedo, uma hora satura-se e se quer outro no lugar. E assim por diante.

A nudez feminina vulgarizada é um tema pouco falado na opinião pública, mas que influi muito na sociedade. Desde os hábitos sexuais até as perspectivas de ser a próxima capa da “Playboy”. Nesse ponto, agora já não mais, a não ser a disputa silenciosa para ser a última capa. Por aqui, ainda não surgiram pretendentes. Na terra do tio Sam, parece que a Kim Kardashian já se prontificou para tal.

A revista que, como símbolo de status social para muitas mulheres, despiu muitas coelhinhas durante muitas décadas, agora, volta a vesti-las. Peça por peça, página a página. Cruel ironia dos tempos. Tempos em que, na competição com a “internet profunda”, onde o Kama Sutra é vendido com literatura de iniciação sexual para a juventude, a nudez gráfica feminina é vista como um produto ultrapassado.

Ultrapassado ou não, substituindo-se a nudez por poses insinuantes sem muita carne à mostra, uma coisa permanece: os reflexos condicionados da concupiscência masculina, agora, movidos pela imaginação que irá despir os trajes das moças. É a salivação do cão de Pavlov.

Como ele, nós também podermos ser adestrados para babar à toa. No meu caso, esse foi o legado da “Playboy”. No fundo, é o que a nudez feminina vulgarizada e, de resto, toda a pornografia pesada e a literatura “pornosoft” produzem. Transformam os homens em bestas e as mulheres em sua presas, dentro da “cadeia alimentar” do sexo mecanicista e pronto para consumo. Com respeito à divergência, é o que penso.

PS: em dezembro, um grupo de juízes, do qual faço parte, lançará a obra “Literatura em prosa e verso”. Colaborei com quatro crônicas forenses inéditas e uma sentença penal em verso, proferida num caso real. Quando souber de maiores detalhes, avisarei por aqui. Por ora, sei apenas que o evento será na Livraria Cultura do Shopping Iguatemi. Estarei vestido.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 4/11/2015, Página A-2, Opinião.