Arquivo da tag: Poderes

image_pdfimage_print

Novo giro na Suprema Corte

Opinião Pública | 08/08/2018 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Um novo “juiz associado” foi indicado para a Suprema Corte dos Estados Unidos. Toda vez que isso acontece, o mundo jurídico dá uma pausa na correria forense e assiste, com algum encanto e expectativa, o processo sucessório desencadeado pelo “juiz associado” que deixou o tribunal bicentenário.

John Adams, na linha de Platão, descreveu a república como “um governo de leis, não de homens”. James Madison afirmou que “num governo republicano, o Poder Legislativo naturalmente predomina”. Quanto ao Poder Judiciário, Alexander Hamilton pensava que seria “politicamente inofensivo” e o “menos poderoso”, porque “o Poder Executivo possui as baionetas, o Poder Legislativo detém as cordas da bolsa e o Poder Judiciário somente o juízo”. Dito de outro modo, para os pais fundadores da América, o parlamento era o mais importante dos três poderes.

A Suprema Corte, para os pais fundadores, atuaria estritamente dentro da Constituição, cujos parâmetros seriam delineados pelos representantes do povo no congresso. Contudo, os pais fundadores não previram que tal corte assumiria uma relevância ímpar e bem maior do que aquela inicialmente idealizada: os nove juízes não eleitos protagonizariam, em muitas pautas, o papel de arbitragem social destinado aos 535 parlamentares eleitos que compõem as duas câmaras congressuais.

Como exemplo disso, tivemos Roe vs. Wade e Obergefell vs. Hodges, decisões que, respectivamente, legalizaram o aborto e o casamento gay em âmbito nacional e que, na prática, criaram legislação federal para questões sociais outrora normatizadas pelo congresso. Para entender esse processo de virilização da Suprema Corte, é preciso compreender, em poucas linhas, o problema das cosmovisões hermenêuticas do direito anglo-saxão.

Os “textualistas” entendem que uma constituição deve ser interpretada a partir do texto escrito e conforme as intenções do legislador originário. Os “não-textualistas” ou “pragmatistas”, por sua vez, entendem que uma constituição é um documento vivo, um corpo que cresce e muda com o tempo para atender às necessidades de uma sociedade cambiante, sem a necessidade dela ser modificada por meio do devido processo legislativo.

Uma das principais implicações dessa disparidade de enfoques refere-se ao papel da Suprema Corte a respeito dos direitos. Para os “textualistas”, esse tribunal não pode fazer mais do que reconhecer os direitos já consagrados constitucionalmente. Para os “pragmatistas”, esse mesmo tribunal pode manusear seu poder de interpretação para reconhecer novos direitos ali onde o texto constitucional guarda silêncio, adaptando a norma às mudanças da realidade social, algo que, para os “textualistas”, é de competência exclusiva do parlamento.

Aqui reside o problema. Quando o texto legal é interpretado a despeito de sua letra e a partir de critérios subjetivos de hermenêutica, o poder de legislar – prerrogativa parlamentar – é transferido para os juízes. Independentemente do resultado produzido, bom ou ruim, a visão dos “pragmatistas” abre um perigoso precedente em que leis, outrora rejeitadas nas urnas ou no Poder Legislativo, sejam instauradas por meio do Poder Judiciário. É o ativismo judicial e sua ascensão corresponde ao declínio da democracia.

O novo “juiz associado” já declarou seu compromisso com o texto constitucional e com o sentido a ele dado pelos pais fundadores de sua nação. Uma sábia atitude, cujo efeito será o de provocar um giro institucional na Suprema Corte, onde a maioria terá um perfil “textualista”.

Se eu fosse ele, meu discurso de posse seria curto, mas denso: “Minha filosofia judicial é simples. O juiz precisa ser imparcial e visar ao justo concreto. O juiz deve julgar a partir do texto da lei, informado pela tradição jurídica, pela regra do precedente e pelos sinais históricos dos tempos. Em suma, deve interpretar a lei e não criar a lei. Eu venero a Constituição e acredito que um Judiciário independente é a joia da coroa de nossa república democrática, assentada nos valores perenes da ordem, da justiça e da liberdade. Em cada caso, manterei minha mente aberta e sempre me esforçarei para preservar nossa Constituição e o império do direito em nossa nação. Muito obrigado.”. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 08/08/2018, Página A-2, Opinião.