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Passado, memória e esquecimento

Opinião Pública | 23/05/2018 | | IFE CAMPINAS

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No último século, poucos avanços obtiveram mais reconhecimento acadêmico e social do que os progressos na medicina. Ag radecemos aos cientistas por permitir que muitas curas tenham sido descobertas, muitas doenças corretamente diagnosticadas e muitas vidas prolongadas. Ainda que as vantagens tenham sido enormes, convém não esquecer do fato de que, algumas vezes, os meios pelas quais elas foram alcançadas não foram lá muito éticos. Ou nada éticos.

Recentemente, a estátua do médico Marion Sims (1813-1883), o pai da ginecologia moderna, foi retirada do Central Park, na onda de um debate que por lá se trava a respeito da conveniência na manutenção de estátuas ou monumentos de figuras históricas que foram importantes, mas cujas vidas hoje não são mais tão admiráveis assim.

Alguns nova-iorquinos dizem que essas memórias são traços de uma era, que podem ser julgados nos livros de história, mas, hoje, sua eliminação dos espaços públicos carece de sentido. Outros, no entanto, sustentam não ser possível dar reconhecimento público a figuras contrárias aos direitos humanos.

Não há como negar as contribuições de nosso despejado médico para a ginecologia moderna, quando, no início do século XIX, ele desenvolveu a cirurgia para curar a FVV (fístula vésico-vaginal) e inventou o que hoje é conhecido por “espéculo de Sims”, instrumento apto a observar as cavidades do corpo. Um espetáculo de profissional, se não fosse por um detalhe.

O lado monstro desse médico comprava escravas negras e as experimentava no tratamento das ditas fístulas, sem consentimento informado e sem anestesia, ou seja, as escravas tinham a dignidade de cobaias de laboratório. Depois de dominar essas técnicas nas escravas, ofereceu-as às mulheres brancas da classe alta americana. O sucesso deu-lhe fama mundial e isso foi simbolizado pela estátua erguida no mesmo parque em 1934.

É precisamente essa estátua que foi o centro da controvérsia. Aqueles que pediram sua retirada, por meio de uma petição virtual que coletou 26.000 assinaturas, argumentaram que não se pode honrar um homem que conseguiu avanços médicos ao custo de métodos antiéticos com escravas negras.

Ao cabo, a prefeitura local decidiu remover sua estátua do parque para o cemitério em que nosso médico-monstro foi enterrado. A par dessa questão de ética médica, paira outra não declarada: será que devemos banir da paisagem social todas estátuas ou monumentos maculados pela infâmia pública?

Tenho minhas dúvidas. Por duas razões. Em primeiro lugar, sobram motivos práticos. Se resolvermos deletar tudo aquilo que representa um passado que nos machuca com seu rol de horrores, estejamos preparados para uma missão infinita.

Sugiro, desde já, demolir o coliseu romano, local de martírio de muitos cristãos digeridos em estômagos leoninos, e, também, as pirâmides de Gizé, erguidas ao sangue, suor e morte de escravos conquistados pela civilização egípcia. Quem sabe ainda dá tempo de passar o trator em Auschwitz-Birkenau, terraplanar toda a área e, depois, erguer um maravilhoso passeio público.

Que bela assepsia civilizacional! Só precisaremos queimar todos os livros de história depois, a fim de que o esquecimento seja completo. Tolo intento, porque toda civilização choca os ovos de sua barbárie. A história ocidental é a história dessa constante tensão.

Em segundo lugar, temos motivos pedagógicos. O problema de negar o passado está em nada aprender com ele. Os ovos chocados podem se romper, mas a constante exposição de nossos males permite que os horrores que daí surgem não tenham muita sobrevida no mundo das ideias, o que não se dá quando resolvemos “avestruzmente” ocultar seus feitores.

A reconsideração das conquistas médicas pretéritas obtidas ao preço de reversões éticas pode servir para avaliar o que é um verdadeiro avanço na medicina. Só espero que, amanhã, não existam pedidos para retirar os tributos públicos para figuras que, hoje, dedicam-se ao uso de embriões humanos como material experimental ou à aplicação da eutanásia a pacientes que não conseguem mais responder livremente.

Afinal, quem remove um horror de memória conduz para o silêncio do futuro quem não merece o esquecimento no passado. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 23/05/2018, Página A-2, Opinião.