Arquivo da tag: Papel

image_pdfimage_print

Suprema arrogância

Opinião Pública | 07/12/2016 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

“Em temas moralmente divisivos, o papel adequado do Estado não é tomar partido e impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam a sua escolha de forma autônoma (…). Em suma: por ter o dever de estar dos dois lados, o Estado não pode escolher um”, defendeu o ministro Barroso no voto que, na prática, abriu as portas para o aborto.

Não cabe ao Estado tomar partido. Mas, por meio do STF, isso foi feito. E quem toma partido do feto humano na barriga da mãe? “Meu corpo, minhas regras!”. Isso também se aplica ao feto e, mesmo que o ministro esforce-se para trivializar o aborto, a Constituição diz que a regra do corpo do feto é a regra do direito à vida. Incondicionalmente.

Não falaremos sobre aborto. Deixo que o grito silencioso do ser inocente, no momento de sua execução, que, aliás, é a única diferença entre o aborto e o homicídio, clame por si. Mas sobre o papel de uma Suprema Corte, como o STF. Atuar juridicamente é sempre interpretar e há interpretações e interpretações: hoje, estão em voga aquelas “achadas na rua” e aquelas tomadas a partir de puros “entes de razão ideológica”.

Ambas não partem de um dado bem concreto, isto é, do texto da lei, dimensionado prudencialmente em seu sentido e alcance rumo ao justo concreto. No fundo, são concretizações ideológicas desta ou daquela cartilha chanceladas judicialmente.

O problema dessa tarefa interpretativa da realidade posta está em buscar as chaves de interpretação dessa mesma realidade num direito “achado na rua” ou a partir de “entes de razão ideológica”. A leitura feita acaba por reproduzir um reducionismo interpretativo e, assim tudo passa a ser interpretação, sem que fique bem claro qual é o objeto referencial dessa atividade, isto é, qual é a realidade que, em última instância, interpreta-se.

Na tradição jurídica ocidental, essa tarefa pertence a uma Suprema Corte. Inserida nesse desafio, a tentação para seus juízes recai no afã de se pretender assumir o papel de constituinte originário, reescrevendo a Lei Maior: isso é chamado de neoconstitucionalismo.

Nessa ideia, o magistrado, sem lastro representativo, incorpora uma função legislativa daquilo que acredita ser o bem comum historicamente situado e, nas hipóteses mais patológicas, professa um messianismo judicial, porque crê estar antevendo, por um juízo estritamente particular, “achado na rua” ou a partir de “entes de razão ideológica”, aquilo que é próprio da deliberação política parlamentar, onde o juízo final é formado pelo entrechoque prudencial das opiniões dos legisladores.

Num e noutro caso, a democracia cessa e se um juiz se diz “pela democracia”, então, resolveu inovar semanticamente. Ou demagogicamente. Aliás, não é por acaso que o falecido juiz Scalia dizia que a ascensão do neoconstitucionalismo importa no ocaso da democracia.

Nessa usurpação de papeis institucionais, já teremos ingressado no mundo da autocracia da inteligência formada pelas cabeças de um punhado de togados letrados. O STF tem muitos papéis, mas rasga seu papel principal, quando, em suprema arrogância institucional, resolve reescrever a realidade sem base no texto constitucional, porque, ao cabo, deixa o cidadão “achado na rua”, abraçado, na própria sorte, aos “entes de razão ideológica”. A democracia vai parar na sarjeta. E, os fetos, a partir desse inusitado precedente, no lixo. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 07/12/2016, Página A-2, Opinião.

Suprema Corte: qual seu papel?

Opinião Pública | 14/09/2016 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Atuar juridicamente é sempre interpretar. Por isso, costumo dizer que os juízes são, muito antes de profissionais do ramo jurídico, intérpretes do direito. Obviamente, há interpretações e interpretações: hoje, estão em voga aquelas “achadas na rua” e aquelas tomadas a partir de puros “entes de razão ideológica”.

Ambas não partem de um dado bem concreto, isto é, do texto da lei, dimensionado prudencialmente em seu sentido e alcance rumo ao justo concreto. No fundo, são concretizações ideológicas desta ou daquela cartilha chanceladas judicialmente. Nesse ponto, respeitarei a paciência do leitor, porque é um assunto muito acadêmico para se acompanhar num cafezinho: se a preferência é pelo doce, fica amargo. Se pelo amargo, vira um fel. Em qualquer caso, torna-se intragável.

Sabemos que a maior parte da existência humana é voltada para uma certa práxis. Diariamente, estamos a exercitar a economia da deliberação. Escolhemos isso e não aquilo. Em suma, discriminamos a todo tempo e, algumas vezes, discriminamos injustamente. O Direito, com um saber prático, encerra toda uma atividade existencial que capta e conforma, por sua vez, umas exigências objetivas de justiça, determinando-as aqui e agora. Positivar o direito é estar disposto a conhecer uma verdade prática, inevitavelmente por se fazer.

O problema dessa tarefa interpretativa da realidade posta está em buscar as chaves de interpretação dessa mesma realidade num direito “achado na rua” ou a partir de “entes de razão ideológica”. No primeiro caso, a democracia vai parar na sarjeta e, no segundo, na lua. Como uma espécie de tributo que o erro dessas chaves presta ao acerto, para que não terminem num beco sem saída, elas sempre passam a recorrer a artifícios procedimentais, consensuais ou dialógicos para intentar uma justificação das realidades jurídicas.

Contudo, o beco continua sem saída. A leitura feita acaba por reproduzir um reducionismo interpretativo e, assim, adentramos num mundo em que tudo se resume à uma mera tarefa de interpretação. Tudo passa a ser interpretação, sem que fique bem claro qual é o objeto referencial dessa atividade, isto é, qual é a realidade que, em última instância, interpreta-se.

Nessa perspectiva, o cidadão olha para o Direito e o vê rodeado de interpretações, que o são, por sua vez, leituras de outras interpretações e, assim sucessivamente, numa espécie de “interpretacionismo” universal e infinito, que acaba – como ocorre com todos os raciocínios induzidos ao infinito – por não justificar racionalmente nada.

Não dá para se viver dessa maneira. Alguém precisa dar a palavra final, gostemos ou não dela. Na tradição jurídica ocidental, esse ente atende pelo nome de Corte Constitucional ou Suprema Corte. Inserida nesse desafio, a tentação para seus juízes recai no afã de se pretender assumir o papel de constituinte originário: isso é chamado de ativismo judicial.

Nessa ideia, alimentada por sulfúrica panfletagem corporativa a respeito, o magistrado incorpora uma função legislativa daquilo que acredita ser o bem comum historicamente situado e, nas hipóteses mais patológicas, professa um messianismo judicial, porque crê estar antevendo, por um juízo estritamente particular, “achado na rua” ou a partir de “entes de razão ideológica”, aquilo que é próprio da deliberação política parlamentar, onde o juízo final é formado pelo entrechoque prudencial das opiniões dos legisladores.

O efeito concreto para o cidadão será o da imposição, ainda que institucionalmente legítima, de uma interpretação, que pode não ser a melhor, sob o manto de uma decisão judicial. Mas esse manto é diáfano e, por isso, podemos observar, em regra, a partir da carência da intermediação de um processo legislativo ou da imposição ideológica de um projeto escatológico existencial, toda sua fragilidade intrínseca. Num e noutro caso, a democracia cessa e se um juiz se diz “pela democracia”, então, resolveu inovar semanticamente. Ou demagogicamente.

Nessa altura, já teremos ingressado no mundo da autocracia da inteligência formada pelas cabeças de um punhado de togados letrados. Respondo à pergunta lançada. Uma Suprema Corte tem muitos papéis, mas rasga seu papel principal quando resolve reescrever a realidade sem base no texto constitucional, porque, ao cabo, deixa o cidadão “achado na rua”, abraçado, na própria sorte, aos “entes de razão ideológica”. E, a democracia, na sarjeta. Ou na lua. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicano no jornal Correio Popular, edição 14/09/2016, Página A-2, Opinião.