Filhos de escanteio


Estava olhando lâmpadas para a casa num determinado supermercado da cidade. Às minhas costas havia um senhor reclamando. Parecia falar sozinho. Bom – pensei eu – talvez seja um maluco mesmo. Passaram-se alguns segundos e olhei ao lado. Vi um jovem que parecia estar com ele. Era seu filho, um jovem adolescente. Dali a pouco ouço o senhor comentando para o garoto algo como: “Você veio pedindo dica para passar de ano, eu lhe dei e você deixou a por** do ano passar. Você é um filho da p*** mesmo” e, reclamando, disse algumas coisas mais.

Meio maluco esse senhor com certeza é. Talvez seja alcoólatra. E antes que associem alcoolismo com renda, eu estava num supermercado frequentado notavelmente pelas classes A e B. E esse senhor não aparentava ser pobre. Mas, enfim, permanece o fato objetivo: a relação desse pai para com seu filho.

Logo pensei no que este jovem iria se tornar recebendo uma educação assim. Desde o início reparei que o garoto tinha um perfil meio deprimido, ou de baixa auto-estima. Momentos depois, já em outra seção do supermercado, pude cruzar com ambos novamente e confirmei tal perfil: cabisbaixo, pouco ânimo e retraído. Evidentemente, não dá para saber o que se passa naquela família e não se pode julgá-los. Pode ser também que estavam num dia mal, mas acho difícil. Dada a “naturalidade” com que o senhor tratava o garoto daquele modo, isso dava a entender que aquele tipo de situação não era algo muito raro em suas vidas.

O ponto, porém, é que essa situação que acabo de descrever fez-me pensar em como diversos pais têm tratado e educado seus filhos nos dias de hoje. Um modo é justamente o que aparentemente vi nesse senhor. É como se o “velho” tivesse a obrigação de dar o sustento e a vestimenta que isso só já estaria OK. Quantos pais não são assim com seus filhos hoje?! Tratam seus filhos e filhas à semelhança de um animalzinho: o importante é dar de comer, beber e vestir. Claro que, além disso, os colocam na escola e lhes propiciam de algum modo o lazer.

No entanto, olhando de certo ponto de vista, parece que estão a educar um animal de zoológico: o importante é dar aos filhos elementos para a sua “sobrevivência”: comida, bebida, escola e divertimento, mesmo porque, assim, a “fera” ficaria – repito, ficaria – “domada”. Dando isso aos filhos, os pais poderiam ficar em “paz”.

Não é preciso haver estupidez para que o tipo de educação que acabo de rascunhar se realize. Muitas vezes certos pais não são estúpidos, mas mesmo assim tratam seus filhos quase como se fossem animaizinhos. Assim, pais preocupam-se e se ocupam sobremodo consigo mesmos, só pensando em si mesmos, de tal modo que aos filhos restam elementos para a sua “sobrevivência”. Dão o necessário e estão até fisicamente presentes, mas espiritualmente ausentes para os filhos, por assim dizer. Estes, por sua vez, são deixados aos mais variados tipos de entretenimento: videogames, séries televisivas, Internet, celular, assim como outras ocupações, a exemplo do esporte. Alimentação, vestimenta etc. estão garantidos…, mas será que está havendo boa educação e amor genuíno, de doação de si próprios aos filhos? Ou os próprios interesses, hobbies, trabalhos etc. estão de tal modo tomando espaço que os filhos ficam de escanteio?

Penso que muitos pais não têm consciência clara disso, embora eu possa estar enganado nisso e em todo o restante que acabo de descrever. Acontece que, nessa mentalidade, bastaria satisfazer os sentidos e dar o necessário que a educação e a formação estariam prontas. No entanto, somos muito mais do que nossa sensibilidade, mais do que a educação formal que recebemos e mais do que aquilo com que nos ocupamos. De nada adianta dar de comer e beber, de nada adianta colocar na escola e em outras ocupações, se não se gasta tempo com os filhos para estar presente com eles, para se doar a eles gratuitamente. Com os pais pensando só em si próprios, restando pouco espaço para os filhos, estes ficam tristemente de escanteio, sofrem e fazem sofrer.

João Toniolo é mestre e doutorando em Filosofia e membro do IFE Campinas. E-mail: joaotoniolo@ife.org.br.

Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, Edição de 3 de Abril de 2019, Página A2 – Opinião.




À semelhança de nossos pais


À medida que a maturidade cresce, ou mesmo antes, praticamente todos refletimos sobre nosso ser e nosso agir no mundo. Uma área que cedo ou tarde aparece na reflexão somos nós em comparação a nossos pais. Nesse sentido, é interessante quando – fazendo algo bom ou mal – identificamos um espelho ou um reflexo de nossos pais em nós mesmos; pensamos: “Estou fazendo como meu pai/mãe”. Experimentamos a verdade desse trecho de Belchior que fez sucesso na boca de Elis Regina: “Minha dor é perceber / Que apesar de termos feito tudo o que fizemos / Ainda somos os mesmos e vivemos (…) / Como os nossos pais…”. (Claro que aqui não se pretende esgotar o significado de letra tão rica, mas apenas usá-la como ilustração desta breve reflexão).

Além disso, quando nos deparamos com esse reflexo, temos uma estranha sensação, como se por um momento nós não fôssemos nós mesmos e como se não tivéssemos domínio sobre nós. Essa sensação é particularmente notável quando sentimos pesar por algo ruim ou não muito bom que fizemos e que percebemos ter sido “como nossos pais”: “Tanto tempo e ainda estou fazendo a mesma coisa?”, e ainda, “Como posso fazer isso? Já era para ter superado”, são alguns pensamentos que nos podem ocorrer.

Um exemplo são os hábitos. Quando adolescente criticava o gosto musical dos pais, mas, passados os anos, está lá ouvindo o mesmo estilo de música deles; quando mais jovem, reclamava de determinado modo de agir dos pais, mas, anos depois, faz do mesmo jeito; reclamava da afobação deles para certa situação, mas hoje também se afoba; etc. O ditado de que reclamamos de algo porque esse algo está em nós mesmos revela-se verdadeiro.

Claro que há as coisas boas. Dessas normalmente ficamos satisfeitos e somos gratos a nossos progenitores. Temos uma gratidão interna e, dependendo da importância, também externa – o que é justo. Das coisas boas que superamos em oposição a algo ruim, também sabemos que não vale a pena a atitude de orgulho, de nos acharmos superiores a eles. Ademais, queremos manter essas coisas boas e transmiti-las a nossos filhos.

No entanto, perceber tanto as coisas boas como as ruins, é sinal de que crescemos em conhecimento próprio. É sinal de que temos maior consciência de nossos pensamentos, palavras e ações, e de que conhecemos um pouco mais nossas virtudes e nossos limites. Contudo, há algo que pode ser deletério depois da percepção desse reflexo; é o conformismo: achar que, já que o tempo passou e não mudamos, não mudaremos nunca.

É deletério porque, além de não ser bem verdade – o comportamento é algo que pode ser mudado e melhorado, cuja própria educação familiar é prova –, coloca-nos numa situação de perpetração de coisas ruins; tornamo-nos, assim, repetidores de vícios. E depois reclamamos de nossos filhos, que reclamarão de nós, e lá se foi uma oportunidade para melhorar.

Parece-me, então, que essa percepção que os anos nos dão – do reflexo de nossos pais em nós – serve, entre outros, para melhorarmos humanamente, de modo que possamos dar um passo a mais na trilha aberta por nossos ancestrais. Nesse sentido contribuímos para uma melhor convivência entre nós e assim temos menos estresse. Evidentemente há quem retroceda nas conquistas, mas que não sejamos nós a fazê-lo.

João Toniolo é doutorando em Filosofia e gestor do Núcleo de Filosofia do IFE Campinas. E-mail:joaotoniolo@ife.org.br.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 17/05/2017, Página A-2, Opinião.