Espírito de Dunquerque


“Caro pai, fui assistir ao filme que combinamos ir juntos no último mês de janeiro, quando você ainda entendia as coisas e respondia por seus atos: ‘Dunkirk’, outra película para nossa galeria de filmes da IIGM, evento que seu pai, meu avô, participou como soldado da FEB, para desespero de sua mãe, minha avó.

Você resolveu ir embora antes. Paciência. Perdeu um trabalho cinematográfico bonito, com um visual impecável, uma fotografia maravilhosa e um áudio – e mesmo a ausência dele – que nos transporta para a condição de mais um soldado nas praias e nos céus de Dunquerque.

São três narrativas – a do aviador, a do soldado e a do pai de famíila – que protagonizam e rivalizam entre si, intercaladamente, em arcos narrativos distintos e que, durante uma semana perdida de 1940, acentuam a dificuldade prudencial nas decisões cruciais e os egos inflados que costumam pagar a conta com muitos cadáveres.

Mas não é só. O filme, por retratar uma retirada geral e, como dizia Churchill, não se ganham guerras com debandadas, é o oposto de outras obras do gênero a que pudemos assistir juntos, amado pai, como ‘Band of Brothers’, ‘Pacífico’, ‘A Conquista da Honra’ e ‘O Resgate do Soldado Ryan’.

Aqui, não há uma batalha final, um enfrentamento militar clássico vencido sem munição e na ponta da baioneta ou mesmo uma virada militar estratégica, padrão ‘General Patton’, de última hora: existe um ambiente desolado e apocalíptico sem a pornografia de guerra, um cenário de vergonha na praia repleta de soldados zumbificados pela derrota e um teatro de operações militares dominado pelo inimigo alemão na terra e, sobretudo, no ar.

O desenho do enredo praticamente nos conduz para uma postura estática, a mesma que, ao longo do filme, é vivenciada pelo grisalho oficial da marinha real britânica, quando contempla as poucas vinte milhas náuticas que separam as silenciosas falésias de Dover das turbulentas areias das praias de Dunquerque.

Entretanto, estimado pai, nas entrelinhas das ações das três linhas narrativas dessa jornada nada épica existe algo bem visível por detrás do manto diáfano de toda essa humilhação existencial. Algo que lhe agradaria muito, como militar e historiador que, durante 50 anos, você foi. Nesse filme, descortina-se a epopeia do cumprimento do dever-missão por meio de uma série de valores que você nos ensinou em casa.

Valores que, hoje, são apresentados como peças de um museu de obsolescências morais do século XX. Algo que foi bom, que não existe mais e que ajuda como azeite na alma atribulada pela ausência de compromisso ético, realidade que pauta o cotidiano das sociedades do século XXI.

Certamente, isso lhe incomodaria muito. Para essas almas, esses valores poderiam ser sonhados no conforto de uma poltrona de cinema. Todavia, no frenesi dos dias que se sucedem, eles não teriam mais sentido. E nem mesmo a noção de dever-missão. Uma combinação niilista-pessimista de Sartre com Bauman.

Lembro-me daquilo que você chamava de ‘idealismo prático’: o idealismo que muda a vida e que não somente tempera o final de tarde com pipoca e refrigerante diante da telona. Não somos peças de museu. Somos reais e um filme de guerra, você dizia, é perfeito se nos leva a transformar nossa vida diária numa grande película de chamado ao sentido de dever-missão.

Quando Dunquerque ficou no horizonte continental e o último soldado inglês aportou na ilha, Churchill fez seu famoso discurso ‘We shall fight on the beaches’ e, lá no meio da exortação, ao dizer que ‘nunca nos renderemos’, o estadista que mais admiro só fez, amado pai, reforçar sua lição doméstica de dever-missão.

Como na evacuação inglesa, do caos de nossas vidas, é possível, no meio da névoa da guerra interior, na expressão de Clausewitz, fazer emergir uma derrota virada ao avesso, pelas sendas do espírito que ali, naquelas praias, uniu o aviador, o soldado e o pai de família: o espírito de um dever que se converte em missão existencial. O espírito de Dunquerque.

É isso, querido pai. Fico por aqui. Saudades e obrigado”.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 16/08/2017, Página A-2, Opinião.




Até logo, estimado pai!


Como toda criança, eu quis ter um pai. Alguém que fizesse nosso medo se reduzir ao tamanho de uma formiga. Com asas nas mãos para me carregar nas noites insones. Com uma voz doce para cantar para mim. Alguém que já me amasse desde o ventre materno e que zelasse pela fragilidade da minha vida. Desde então, você deu tudo o que tinha e o que não tinha para mim.

Até a mamãe passou a ser de nós dois e você trabalhava dobrado para eu poder estudar no melhor colégio. Seu amor meio desajeitado me encantava, mas eu sei o quanto eu tumultuei sua vida. Abusei de sua bondade e de sua paciência com meu espírito crítico. E de seu lugar na cama, sempre jogado para a beirada dela. Mas bastou que eu crescesse um pouco para você se sentir recompensado.

Quando me apoiou em ser diplomata e, quando desisti da ideia para ser juiz, sempre me deu a liberdade de iniciativa. E me preparou para a responsabilidade das escolhas que fiz antes mesmo que estivesse pronto para lidar com elas.

Sempre por meio de muito estudo e entrega anímica. Mesmo quando ficava fazendo tarefa atrás da porta, só para ouvir o som das chaves do outro lado, seguido do abraço caloroso que sempre vinha depois. Seu olhar firme e sua postura estóica sempre me serviram de inspiração para seguir em frente.

É certo que fugi do serviço militar, como o diabo foge da cruz. Mas tenho uma coleção invejável de filmes de guerra, a que assistíamos juntos, e um rifle de assalto que, embora não seja de verdade, é de air soft e isso foi suficiente para que nos divertíssemos muito no tiro ao alvo.

Sempre perdi para você no futebol de areia, mas você era minha torcida na superação dos meus limites. Mas ganhei nos livros. Você tinha um mil e eu já passei dos quatro. E, agora, vou herdar e cuidar com carinho dos seus. A Elena, sua neta, ao que parece, herdou seu natural pendor para a história. Teremos, a longo prazo, uma forte concorrente no hábito de leitura.

Quando saí de casa aos 17 anos, rumo às Arcadas do Largo de São Francisco, você acreditou em mim, quando eu mesmo duvidava das minhas habilidades. Quando virei juiz aos 23 e me casei aos 25, você disse que eu poderia ter adiado um pouco mais e chorou tanto que, então, descobri seu coração de soldado.

O mesmo coração de soldado que pulsou efusivamente quando o Pedro, seu primeiro neto, nasceu. Aliás, ele também tem um coração de soldado: ontem, quando você já estava em coma, ele, bravamente, testemunhou, ao meu lado, seu suspiro final. Suas mãos faleceram em contato com as dele. E as minhas também.

É claro que também nos desentendíamos: tipo de música (Sabbath, Iron, Bono, Mozart e Chopin ou Gil, Caetano, Chico, Beethoven e Liszt), shows de rock (avisados sempre de última hora), valor da mesada (invariavelmente baixo), volume do som (no máximo), banana (cozida ou frita), arrumação do quarto (semanal ou semestral), serviço militar (facultativo ou obrigatório), Brasil (sempre o país do futuro), grandes generais (Alexandre ou Rommel), política (monarquia ou república).

Mas só no acidental. No substancial, deu-me um fervoroso amor à pátria, uma educação nas virtudes e na fé católica apostólica romana. Tudo isso virou baliza para os caminhos que enfrento diariamente. Com você, eu aprendi a importância de se deixar pegadas das quais pudesse me orgulhar depois.

Com a Regina ao meu lado, essas pegadas ganharam em sentido, alcance e número. Por isso, de certa forma, você foi minha medida em muitas coisas e, assim, seu amor me ajudou a achar meu lugar no mundo: lugar de filho, pai e, um dia, de avô nessa grande aventura da vida.

Você foi cedo demais! Mas entendo: quis ir para junto de seus pais justamente no mês em que eles se foram num passado já longíquo. Até nisso, você deu exemplo de amor familiar. Obrigado e “Selva”! Requiescat in pace!

PS: meus filhos e seus netos – Pedro, Cauã, João Vitor, Elena e Letizia – agradecem também. Sobretudo a Letizia, que teve a felicidade de estar em nossa última foto juntos, quando você falava que iria escrever mais um livro. E escreveu mesmo. Na ardidura de cada um de nossos corações.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 19/07/2017, Página A-2, Opinião.




Lava-jato, avante!


No atual debate sobre os rumos do país, é natural que haja divergências de natureza política, com exceção daquelas provenientes do único fã-clube que estima políticos bandidos. Aliás, isso é muito saudável, pois as diferenças de opinião demonstram a vitalidade e a riqueza de uma democracia, desde que sustentada por uma necessária comunhão entre política e moral, fato que Platão já havia observado durante seus embates com os sofistas.

Tal comunhão deveria consistir na conjugação entre a participação na polis, ou seja, na arena política, e a busca individual da areté, expressão que representava o conceito grego de excelência individual, alcançada mediante uma educação integral (paideia) para a formação de um cidadão virtuoso como pessoa e capaz de desempenhar qualquer função na sociedade.

Em suma, um homem perfeito e um perfeito cidadão. Essa era a garantia para que a democracia grega não degenerasse na demagogia e para que as instituições sociais fossem preservadas das tentações de um governante absoluto, realidades vistas, hoje, na Venezuela. Bom, mesmo naquela época, o próprio Platão sentiu os efeitos disso, ao sofrer nas mãos do tirano de Siracusa.

Por aqui, nessa terra onde os amadores não têm vez, vivemos um período ímpar em nossa história: temos a chance de nos livrar de uma geração de políticos que mais lembra um entulho demagogo e que viveram na cornucópia entre o público e o privado, sobretudo no que concerne à apropriação indébita de dinheiro público via caixa dois, doação ilegal e contas na Suíça. E, nesse caso, a operação Lava-Jato em cena e mostra a importância do Poder Judiciário, sobretudo dos juízes de primeira instância, nessa faxina de ética e de resgate dos valores republicanos, no sentido romano da expressão.

Quando meu pai me questionou, no segundo ano da graduação, lá nos idos de 1994 nas Arcadas do Largo, as razões do meu abandono à diplomacia em favor da judicatura, eu disse que serviria meu país melhor nessa função, porque, como diplomata, não teria independência funcional. Ficaria lambendo as botas do presidente ou do ministro do Itamarati de plantão. Como, de fato, sucedeu para os diplomatas entre 2003 e 2014.

Meu pai, como militar, estudioso e escritor de livros sobre história do Brasil para os colégios militares, para a ESG e a ECEME, respondeu-me que a minha geração seria responsável pela virada institucional do Brasil e pelo fim do histórico absolutismo do Poder Executivo no cenário político.

E que os juízes teriam um importante protagonismo nisso, pois acreditava que os outros dois poderes seriam incapazes dessa auto-depuração ética. Depois, como conhecia o filho que tinha, disse: “Vai, vai fazer a parte que lhe cabe nisso, porque eu ainda quero escrever um livro sobre esse novo capítulo da história brasileira”.

Quando ingressei na magistratura em 1998, aos 23 anos, ele foi o mais efusivo em casa e me lembrou que, para grandes poderes, há grandes responsabilidades. E recomendou, por ainda ser muito novo, muita prudência e nenhum amigo político. Hoje, ele não mais responde por seus atos. Não será capaz de escrever nem uma linha, quanto mais um novo capítulo ou mesmo um livro.

Mas sei que minha geração de juízes de primeira instância, espalhada pelos rincões do Brasil e exercendo um sadio protagonismo judicial e que não se confunde com o lamentável ativismo, simbolizada pelo juiz Sérgio Moro, está fazendo a parte que nos compete constitucionalmente, ao mesmo tempo em que cumpre a profética afirmação de meu pai.

Temos nossos problemas, um ministro do STF que fala mais que a boca, corporativismos sem mais espaço, uma minoria de maus juízes, benefícios questionáveis, alguma juizite aqui e ali, mas afirmo categoricamente que, a ser verdadeira a máxima aristotélica de que o agir segue o ser, então, a julgar pelas decisões tomadas por inúmeros juízes de várias localidades contra a corrupção política, não tenho a menor dúvida de que nossa instituição detém o maior número de quadros éticos dos três poderes.

Ao cabo, não fazemos mais do que nossa obrigação para com o cidadão e os destinos de nossa nação, sem abuso de autoridade, porque o único abuso de autoridade em moda é o de político roubar o erário público e permanecer impune. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 28/06/2017, Página A-2, Opinião.