Somos todos Ilitch


Dez mortos em Suzano, três mortos em atentado na Holanda, 35 mortos em protestos na Venezuela, 209 mortos em Brumadinho… Diariamente nos deparamos com notícias que retratam mortes devidas a diferentes circunstâncias. Quase inevitavelmente, porém, focamos nossas atenções (ou indignações) nas circunstâncias da morte e não na realidade da morte. A dizer, tendemos a nos voltar para as causas que nelas resultaram e nos possíveis meios de as evitar – o que é justo e fundamental que façamos – mas, poucas vezes, refletimos sobre a própria morte.

A reflexão sobre a inevitabilidade da morte tende a surgir quando perdemos uma pessoa próxima, especialmente se de forma repentina. Mas, quando distante e referida em grandes números, depreendemos da morte reflexões sobre a violência, sobre a infraestrutura do sistema de saúde, sobre a corrupção, sobre a guerra, mas não sobre a morte em si.

Apesar de se tratar da realidade mais certeira que possuímos, parecemos não compreender a dimensão de sua fatalidade. Tolstói, genialmente, expressa tal incompreensão no momento em que Ilitch depara-se com sua morte: “Ivan Ilitch via que estava morrendo, e o desespero não o largava mais. Sabia, no fundo da alma, que estava morrendo, mas não só não se acostumara a isto, como simplesmente não o compreendia, não podia de modo algum compreendê-lo. O exemplo do silogismo que ele aprendera na Lógica de Kiesewetter: Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal, parecera-lhe, durante toda a sua vida, correto somente em relação a Caio, mas de modo algum em relação a ele. Tratava-se de Caio-homem, um homem em geral, e neste caso era absolutamente justo; mas ele não era Caio, não era um homem em geral, sempre fora um ser completa e absolutamente distinto dos demais (…)”

A mera leitura desse trecho, assim como as corriqueiras matérias em jornal, não são suficientes para internalizarmos a realidade da morte. Como coloca Gustavo Corção, em sua obra Lições do Abismo, é possível ler tal página de Tolstói, e apreciar sua pungente beleza do alto de nossa imortalidade, afinal não somos Caio, nem Ilitch. Logicamente, sabemos que o silogismo permanece verdadeiro se substituído por nosso próprio nome. Mas há uma diferença substancial entre alegar a veracidade de nossa inevitável fatalidade e efetivamente assumi-la em nossa vida.

Refletir sobre a morte nos leva a repensar a própria vida e a nos deparar com questões fundamentais: O que significa a minha existência? Qual o sentido da vida? Para onde vou quando morrer? Há vida após a morte? Deus existe? Questões estas que comumente procuramos postergar, pelo incômodo de adentrar um terreno cujas respostas não se encontram no plano material, palpável, tão mais seguro e certeiro.

As respostas a estas e outras questões existenciais não são um mero exercício de elucubração filosófica. Ao contrário, queiramos ou não, respondemos a elas com nossas vidas. A diferença entre refletir ou deixar de refletir sobre elas é que, no primeiro caso, as respostas são frutos de decisões pessoais, no segundo, as respostas são frutos das circunstâncias. Optar por não refletir, destacadamente sobre a morte e os inerentes questionamentos referentes à percepção da fugacidade da vida, é terceirizar a decisão para as circunstâncias, isto é, abrir mão do atributo caracterizador do ser humano: sua liberdade.

Refletir sobre a morte pode parecer mórbido, deprimente ou um exercício que torna a vida sem sentido. Mas é precisamente o oposto que ocorre. Encarar a realidade da morte permite repensar as prioridades da vida, estabelecer o justo valor às coisas e perceber que, no fundo, em nada satisfaz substituir a falta de sentido por excesso de sensações.

Talvez, se Ilitch tivesse enfrentado os questionamentos mais essenciais de sua existência antes do seu leito de morte, não tivesse concluído que “quanto mais avançava a existência, mais morto era tudo”. Talvez, pensar na morte seja o remédio que cada pessoa, individualmente, e a sociedade, coletivamente, precisamos para viver de forma autenticamente mais humana.

 

Beatriz Figueiredo de Rezende é bacharel em Ciências Econômicas pela Unicamp e membro do IFE Campinas (beatriz.rezende@gmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 27 de Março de 2019, Página A2 – Opinião.




Nossa cultura ou o que restou dela


No mundo cultural, somos atacados por pensadores que, há décadas, produzem ideias que deliberadamente mais destroem que criam. É uma forma de gritos dos ressentidos: revolucionários que acreditam piamente que nenhum tributo deve ser dado ao passado que justamente, no lento cadinho da destilação civilizacional, proporcionou o estado da arte da cultura que essa obstinada turma pretende começar do zero, a partir de uma mistura de tolice, arrogância e inutilidade.

Quebrar os tabus da tradição cultural virou uma transgressão desejável por si mesma. Só aquele que cospe nessa tradição produz um saber dotado de validade para nossos tempos e, atônitos, assistimos a tudo isso como se as conquistas culturais da humanidade sempre tivessem existido e não demandassem um longo esforço geracional para que se perpetuassem.

Na base desses fenômenos, repousa um certo louvor à ignorância, que não significa não saber tal ou qual coisa, dada a natural limitação da inteligência ao discernimento de toda realidade criada, mas que consiste, nesse endeusamento, numa postura de não querer saber. É a ignorância que se revolta contra o conhecimento.

Não me estranha a exaltação dessa “cultura bárbara”, fruto exclusivo de nossa era, em que vivemos numa espécie de estágio terminal do processo de castração intelectual do homem, desencadeado pelo pensamento filosófico na segunda metade do século XX e caracterizado, justamente, por um mal endêmico: a falta de profundidade.

Esse reducionismo do pensamento consome todo o vigor intelectual na solução de problemas práticos, na linha do “como” viver com qualidade de vida, “como” ser um profissional de sucesso, “como” evitar a dor e a doença, “como” ganhar mais dinheiro, ainda que muitos desses problemas não sejam bem problemas e ainda namorem com o pragmatismo e o utilitarismo em suas respostas.

Por outro lado, não se gasta um neurônio para refletir a questão fundamental do “porquê” ou do “para quê”. “Para que” este projeto de vida? “Para que” esta busca incessante pelo meu primeiro milhão? Tudo isso satisfaz as aspirações mais profundas do coração? Proporciona felicidade? Por que trabalho todo final de semana em detrimento da família?

Progride-se tecnicamente e regride-se humanamente. Nietzsche já proclamava que quando se sabe o “porquê”, pode-se suportar qualquer “como”. E com razão. Quando se ignora o “porquê”, “como” são duros o sofrimento, o fracasso, a frustração e a perspectiva angustiosa da morte.

Nosso saber ou o que restou dele tirou do homem a capacidade de pensar para o alto, ao contrário do que fizeram Sócrates, Platão, Aristóteles, Pascal, Agostinho, Aquino, Kierkegaard, Maritain, Gilson, Stein, Ratzinger e tantos outros, que sempre remontaram-se à razão última das coisas.

A cultura contemporânea, perdida de tanto saber, enveredou para um relativismo reinante e se perdeu nas areias movediças de um ceticismo generalizado. Hoje, o conhecimento contenta-se exclusivamente com verdades provisórias, quando não arribadas na mera opinião, tangenciando as perguntas radicais sobre o sentido e o fundamento da realidade humana e do mundo que nos cerca.

O desejo da verdade pertence à própria natureza do homem. Interrogar-se sobre a causa e os fins das coisas é uma propriedade da razão humana. A mediocridade cultural diminuiu a estatura intelectual do homem. Tornou-se um corcunda pensante, envergado sobre o peso das informações, muitas inúteis, que impedem de lhe dar uma formação à altura de sua dignidade ontológica.

A superação intelectual e o desejo de compreender melhor as questões últimas do conhecimento, o que não requer estudos em escola superior ou em curso pós-graduação, é uma boa reação à pasmaceira cultural atual, ditada por pensadores, com raras exceções, que sabem bastante, mas não sabem o fundamental, que sabem muito e não sabem nada. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 30/05/2018, Página A-2, Opinião.




Maravilha de mulher


“Eu queria salvar o mundo. Acabar com a guerra e trazer a paz às pessoas. Mas depois eu vislumbrei a escuridão que vive dentro da luz delas e aprendi que, dentro de cada pessoa, sempre haverá ambas e uma escolha que cada um deve fazer para si. Algo que nenhum herói será capaz de mudar. E, agora, eu sei que somente o amor pode verdadeiramente salvar o mundo. Então, eu luto e me dou pelo que sei que o mundo que pode vir a ser. Essa é a minha missão. Agora e para sempre”.

Com essas palavras, nossa heroína, Diana, faz o epílogo do filme que protagoniza como a mais famosa das amazonas na pele da mulher-maravilha. Na película, Diana, paulatinamente, esforça-se por descobrir o ser humano, não sem alguma incompreensão aqui e ali, já que via muita discórdia entre os homens e seu inimigo e irmão, o deus Ares, achava o homem um ente caído.

No plot do filme, esse desvelamento do ser humano dá-se no contexto bélico da 1a GM. A guerra é sempre impessoal. São nações enfrentando-se com interesses manejados pelos governos, aos quais o povo costuma permanecer alheio. Somente quando quem está do outro lado da trincheira é personalizado e assume a forma de uma pessoa concreta e real, a violência esvazia-se, perde sentido e o entendimento se torna possível.

Ortega y Gasset explica bem a necessidade de se personalizar o outro para entendê-lo, quando aponta que podemos julgar um absurdo o ato do outro, justamente porque não percebemos ser uma reação diante de coisas que nós não conseguimos ver. Não percebemos a paisagem que rodeia ao nosso interlocutor, a quem criticamos. Não notamos que o único modo de compreendê-lo é esforçar-se por reconstruir e adivinhar sua paisagem, o mundo com o qual está em diálogo vital. E para ver essa paisagem, que não é a nossa, precisamos buscar com lealdade as pupilas adequadas, ainda que, muitas vezes, pareça que estejamos a lançar um olhar cego para a luz.

Essa ideia nos introduz no fascinante tema da empatia, encarnado por Diana ao longo da película: sentir com os outros, colocar-se no lugar dos outros. Algo que está na boca de muitos, mas que, na prática, é sempre um desafio. Tendemos a nos fechar na realidade de nossa concha vital e, mesmo quando tentamos nos colocar no lugar dos outros e ver com os olhos deles, ainda estamos presos aos nossos filtros de leitura da realidade, cuja trama é feita pela perspectiva de nossas próprias categorias existenciais.

Calçamos os sapatos dos outros, mas com os nossos próprios pés e não entendemos como é ter os pés dos outros. Não é a mesma coisa. A advertência não é minha, mas de Edith Stein, essa santa judia que, como doutora em filosofia de uma tese sobre a empatia nos anos 10, teve sua fonte de pesquisa não apenas a fenomenologia de Husserl, de quem era discípula, mas sua atuação como enfermeira voluntária na 1a GM.

Curiosamente, a mesma guerra onde Diana, junto com Steve Trevor, o major-aviador-espião, participa e, por muito tempo, anda a tatear na paisagem dos outros, porque apegada às próprias pupilas até o momento em que ele sacrifica a própria vida por amor a ela, por mais piegas que isso pareça. Bom, isso é uma pieguice para um mundo dominado pelos esquemas sociais de racionalidade weberiana e pelo eficientismo econômico que coloniza as demais dimensões da realidade humana.

Então, daquele sacrifício surge a mudança de foco nas pupilas de nossa amazona, que passa a viver, nobremente, de empatia pelos homens. A verdadeira nobreza não é aquela que vem do sangue, mas de outro lugar, bem ao alcance de todos: a nobreza de ânimo de quem abre seu coração à sabedoria do outro e abandona o culto confuso ao próprio ego, a ponto de criar, como efeito, um certo desconcerto à sua volta, porque o indivíduo transforma-se em levedura que rompe com o eu conhecido e se abre ao outro desconhecido.

Ser empático é uma filosofia de vida e, como toda filosofia, tem a pretensão de ser “amor ao saber”, mas que, no caso de Diana, deveria ser o “saber do amor”, porque ela soube exprimir um profundo anseio existencial, o de conhecer a verdade do ser humano.

Eis uma heroína de prato cheio, dotada de um protagonismo forte e determinado, mas, ao mesmo tempo, sendo empática e capaz de amar. Parabéns à diretora do filme. Brindou-nos com um papel principal que não se resume a um mero símbolo sexual e nos mostrou que uma mulher, como heroína, é muito mais completa que qualquer herói macho já inventado. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 04/10/2017, Página A-2, Opinião.




Entrevista do IFE São Paulo com Anthony Daniels (Theodore Dalrymple)


dalrymple-copyO IFE São Paulo entrevistou Anthony Daniels – também conhecido como Theodore Dalrymple – em sua recente passagem pelo Brasil, promovida pela Editora É Realizações. Em nossa conversa com o médico psiquiatra inglês, autor de livros como A Vida Na Sarjeta, Em Defesa do Preconceito e Nossa Cultura…ou o que restou dela, foram tratados diversos temas sobre sua vida e obra:

Em seus livros você costuma fazer análises baseadas em sua experiência pessoal. Por que a opção por esta abordagem ao invés de um estilo mais formal, teórico ou acadêmico?

Em primeiro lugar, não sou qualificado para escrever academicamente.  Depois, a maioria dos acadêmicos escreve muito mal (risos). Além disso, a vantagem de escrever dessa maneira é que as pessoas podem ver que não se trata apenas de teoria, mas de uma espécie de experiência vivida. É uma dialética entre experiência pessoal e considerações mais amplas. Não acredito que a experiência pessoal seja um guia completo para a vida ou a resposta para perguntas difíceis, mas ela deve estar em uma espécie de diálogo com fontes de conhecimento mais amplas. O problema com os acadêmicos é que eles não acreditam que a experiência pessoal seja importante, e, assim, fazem violência até mesmo à sua própria experiência pessoal, o que pode levá-los a acreditar em qualquer tipo de disparate.

Mas é claro que a experiência pessoal não é a única guia. Deve haver um tipo de diálogo entre a experiência pessoal e considerações mais amplas. Assim, por exemplo, vamos supor que você seja vítima de um crime. Há crime em todas as sociedades, e o fato de ser vítima de um delito não o torna especialista neste assunto. Mas usando a sua experiência do medo do delito que aconteceu com você ou com seus amigos, você pode começar a pensar sobre crime e, em seguida, olhar estatísticas e assim por diante.

Sempre achei que uma das maiores causas do crime é a criminologia. Criminologistas no meu país, diante do aumento fenomenal da criminalidade, negaram que o medo que as pessoas sentem em relação aos delitos se baseava em qualquer tipo de realidade. As pessoas comuns foram mais precisas em sua compreensão do que os criminologistas, que se esforçaram para negar o aumento da criminalidade. Então eles consideram que o medo do crime é o problema, e não o crime em si. Qualquer um que vive em um alojamento público na Inglaterra saberá que o medo do crime não é irracional. Minha mãe, uma senhora muito idosa, não podia sair à noite. Os criminosos impuseram um toque de recolher a pessoas comuns. Aqui no Brasil ocorre a mesma coisa: disseram-me que não devo sair depois das 22 horas. Isto é um toque de recolher, e é imposto por criminosos. Suponhamos que eu saia às 22 horas. Provavelmente em nove entre dez vezes nada vai acontecer. Mas a vez em que algo ocorre é mais importante do que as nove vezes em que nada aconteceu. Então tento evitar em meus livros esse tipo de negação da experiência comum a que se inclinam muitos acadêmicos quando escrevem apenas academicamente.

Em seu livro Admirable Evasions (ainda não traduzido para o português) você afirma que correntes psicológicas não conseguem fornecer boas respostas sobre a natureza humana e questões importantes para a vida, apenas reconhecendo conquistas para problemas pontuais. Você vê alguma corrente ou escola psicológicas atuais que forneça boas bases para a compreensão da pessoa humana?

Não, porque não acredito que poderia haver uma escola assim. Acho que é impossível por razões metafísicas. Os problemas da existência humana são permanentes e acho que de certa forma insolúveis. Se voltarmos mil anos, não acredito que os seres humanos entenderiam mais a vida do que nós, assim como não entendemos mais sobre a vida do que Shakespeare ou os gregos e assim por diante.

Vem a minha mente a obra de Viktor Frankl e sua logoterapia. Qual é a sua opinião sobre isto?

Depende do que você quer chamar de terapia. Acho que para Frankl é algo mais como um diálogo socrático. Não o chamo de médico; seu ponto de vista é mais filosófico.

Claro que existem exceções, mas as exceções não fazem a regra. Como eu disse no meu livro: você não pode tratar a vida como se fosse um caso de aracnofobia. A aracnofobia pode ser tratada psicologicamente – isso eu aceito. Mas você não pode tratar os problemas da existência como se fossem aracnofobia. É isso que nego neste livro: que a psicologia será capaz de nos dizer algo importante sobre a vida como um todo. Pode ser que auxilie em alguns problemas específicos. Tomemos as fobias como exemplo: quanto mais específica a fobia, mais a psicologia pode ajudá-la. Mas isso também significa que a psicologia é menos importante em relação ao todo.

Então ela pode abordar certas questões específicas. Mas não fornece …

A resposta sobre a vida.

Em seu livro Qualquer Coisa Serve você afirma acreditar, embora não seja religioso, que devemos viver a vida como se certas coisas fossem sagradas. Qual seria a fonte ou o fundamento dessa sacralidade?

Eu diria que a necessidade, porque se não nos sentirmos assim, qualquer coisa vai servir. Não consigo fornecer uma justificativa metafísica completa para isso. É uma espécie de intuição. Não posso dar-lhe um princípio indubitável a partir do qual você pode deduzir que o que digo é verdade. Mas se não temos essa atitude, então qualquer outra coisa realmente serve. Não conseguiriamos dizer o que há, por exemplo, de errado com o genocídio.

Então é uma abordagem consequencialista?

Sim, mas não sou um consequencialista por completo. Se considerarmos, por exemplo, a justiça, não acho ela que possa ter uma explicação consequencialista. Não sou filósofo, então talvez tenha perdido algo. Mas se adotássemos uma visão completamente consequencialista da justiça seria perfeitamente correto punir pessoas inocentes caso as consequências de fazê-lo fossem desejáveis. Nós não o faríamos porque seria injusto, portanto a questão da justiça não pode ser observada apenas consequentemente.

Você escreve artigos para o City Journal. Você acha que a Política das Janelas Quebradas poderia dar boas respostas para problemas criminais em países diversos dos Estados Unidos?

A teoria é intuitivamente plausível. Pensei nas pessoas na Grã-Bretanha, por exemplo, que têm jogado muito lixo na rua. Quando o lixo torna-se geral, adicionar mais não faz qualquer diferença, porque não se pode dizer como o lixo estava antes de receber mais lixo. Então acho que é verdade, e não vejo razão para não ser verdade no Brasil também.

O problema na Grã-Bretanha é que realmente não percebemos os pequenos atos de desordem. Sei disso por causa do meu trabalho com prisioneiros, que muitas vezes começaram com crimes menores, e progrediram no seu repertório criminoso. Há naturalmente muitos que nunca cometem um grande crime, é verdade. Mas não há nenhum grande criminoso que não cometa crimes pequenos. Não creio que seja diferente com os brasileiros.

Relacionado a este assunto, qual a sua opinião sobre a questão da legalização das drogas? E quais seriam as consequências da legalização?

Primeiro é preciso esclarecer o que se entende por legalização, e a maioria das pessoas não é clara em relação a isto. Quando se fala em legalização das drogas, quer-se dizer que você poderia entrar em uma loja e comprar seu crack, sua cocaína, sua anfetamina, sua fenciclidina, sua cetamina, sua heroína, da mesma forma que poderia comprar seu café ou seu pão? Isso parece intuitivamente absurdo. Não me parece ser um cenário plausível em qualquer lugar no mundo. Esse é o primeiro ponto.

No mais, alega-se que todas as consequências ruins do consumo de drogas surgem da ilegalidade e não das drogas em si. Sabemos que isso não é verdade. Por exemplo, nos Estados Unidos há hoje 24.000 pessoas morrendo de overdose de opiáceos prescritos, drogas quimicamente semelhantes ao ópio, como a heroína, que são legais. Elas são prescritas por medicos – e acho que muito mal prescritas. Os médicos são completamente irresponsáveis, mas o entorpecente é legal, e 24.000 pessoas morrem por ano nos Estados Unidos por causa dele. Assim, podemos ver que os problemas decorrentes dessas drogas não são puramente a consequência da ilegalidade. Há mais pessoas morrendo em decorrência destas drogas do que em razão de entorpecentes ilegais. Então é falsa a ideia de que se tudo é legal, tudo está bem. A legalização do crack não significaria que não ocorreriam as consequências que, de fato, se verificam nos usuários.

Talvez pudéssemos fazer uma distinção entre legalização e descriminalização?

A descriminalização também não resolverá o problema. Não acho que resolveu o problema em Portugal. O índice de criminalidade não caiu em Portugal como resultado. Não subiu, mas também não caiu. Na verdade, em nossas sociedades, o consumo de drogas já foi descriminalizado, porque, pelo menos na Grã-Bretanha, as pessoas não são presas por usar drogas. Traficar drogas ainda é crime. Os descriminalizadores não estão dizendo que deveríamos descriminalizar o tráfico de drogas, que ainda é ilegal em Portugal. É ilegal produzir essas drogas, é ilegal distribuí-las, é ilegal vendê-las, mas de fato temos a descriminalização de qualquer maneira. Creio que ninguém esteja na prisão na Inglaterra ou nos Estados Unidos meramente por fumar maconha. E os descriminalizadores não sugerem descriminalizar o fornecimento, então nada muda na prática.

Subjacente à descriminalização está a idéia de John Stuart Mill do princípio do dano. O problema é que é muito difícil, na sociedade moderna, isolar o dano que um indivíduo faz a si mesmo do mal que faz a outras pessoas, e também fazê-lo pagar por isso. Creio que seria impossível e desumano conceber uma sociedade que não tentaria ressuscitar alguém que consumiu heroína e teve uma overdose simplesmente porque aquela foi a decisão da pessoa. Não deixaríamos de levar alguém ao hospital caso o problema fosse uma overdose. Não diríamos “Nesse caso podemos deixá-lo morrer”. Ninguém iria querer viver nesse tipo de sociedade.

Já que você mencionou John Stuart Mill, estou certo em dizer que você é cético em relação ao libertarianismo?

Sim, precisamente porque o libertarianismo é uma espécie de utopia – e não acredito em utopias. Como eu disse, existe um grande problema: a ideia de que todos, na condição de indivíduos, podem fazer o que quiserem, contanto que não afetem os outros. São muito poucos atos que não afetam ninguém. Além disso, há algumas passagens de John Stuart Mill muito citadas, mas as pessoas não o citam quando ele diz: “Se um pai não sustenta o seu filho, ele pode legitimamente ser colocado para trabalhar à força a fim de sustentá-lo”. Se ele não quer trabalhar para prover ao filho, então podemos, de fato, escravizá-lo. E isso mostra o lado perigoso do libertarianismo, fazer as pessoas absolutamente responsáveis por si mesmas tem a consequência de que qualquer dano que fazem deve ser reprimido. Como disse Dostoiévski: “Partindo do princípio da liberdade absoluta, chegamos à tirania absoluta”.

O que há de correto nos libertários é que eles percebem que no mundo moderno estamos cada vez mais sendo geridos e deixamos cada vez menos espaço para o julgamento individual e para a confiança nas pessoas. Por exemplo, os professores – e acho que provavelmente acontece o mesmo no Brasil – têm uma enorme quantidade de obrigações burocráticas que torna difícil que deem o seu melhor. Acho que seria muito mais desejável dar liberdade aos professores para que pudessem fazer o seu melhor.

Acho que o libertarianismo é a tentativa de produzir um mundo perfeito em que tudo vai de acordo com uma doutrina.

Então, neste sentido, promete uma utopia como o socialismo, mas uma utopia diferente?

Sim, é uma utopia diferente. Como todas as utopias, não é muito realista e ninguém iria querer viver nela. Há muitas coisas que aceitamos, presumimos, mas que são produtos de regulação. Por exemplo, assumimos que a água é limpa. Não queremos ter de testar nossa água todas as vezes que a tomamos. E o fato de isto ser regulamentado nos liberta. Claro que os libertários diriam: “Na sociedade libertária, aqueles que fornecem água a testariam”, mas sabemos que não é realmente esse o caso. Se as pessoas tiverem oportunidade de vender água contaminada, elas o farão. Na verdade, elas o fazem em lugares como a Índia.

Aprendemos a partir da experiência prática, não da especulação…

Exatamente. É experiência prática.

Em seu livro Podres de Mimados você destaca o sistema educacional como uma causa da diminuição da alfabetização, da promoção da violência entre os jovens e de diversos problemas que o Ocidente começou a viver. Atualmente, o governo federal brasileiro está tentando implementar reformas no sistema educacional brasileiro. Estudantes, porém, estão rejeitando as reformas e ocupando escolas. Como resolver este círculo vicioso no qual estudantes que são o produto deste sistema educacional problemático se recusam aceitar reformas?

Qual é a idade destes estudantes que estão ocupando? E deveríamos chamá-los de pupilos, não de estudantes. Isso é parte do problema. A palavra “pupilo” quase desapareceu. Um estudante é alguém que, em parte, dirige seus próprios estudos. Ele escolhe o que estudar. Um pupilo é uma pessoa mais jovem a quem é dito o que vai aprender. E o ponto em que um pupilo se torna um estudante não é perceptível. Tradicionalmente é quando ele deixa a escola e vai para a universidade. Mas o problema é que agora a autoridade passou da pessoa mais velha para a pessoa mais jovem. A criança se torna uma autoridade. Vejo isso em coisas pequenas, como os pais na Inglaterra (eu não sei sobre a situação no Brasil) que perguntam aos filhos o que eles querem comer. Isto é errado. Você não pergunta à criança o que ela quer comer. Você dá à criança algo e diz: “Isso é o que você vai comer.” Exceto, talvez, em alguma ocasião especial. Há uma consequência enorme para a criança. Entre outras coisas, uma das razões para a existência de tanta obesidade é o fato de as pessoas comerem como crianças pelo resto de suas vidas. Elas puderam escolher desde muito cedo, na verdade, antes que tivessem qualquer base para fazer essa escolha.

Não sei qual é a situação no Brasil. Eu me pergunto se os pupilos que estão ocupando as escolas sabem o que estão fazendo e até onde estão sendo manipulados pelos professores em sindicatos. Não sei exatamente qual é a situação. Mas enfrentamos o mesmo problema na Inglaterra, onde por décadas os professores foram mal intruídos em métodos para ensinar as crianças a ler. Estabeleceu-se que qualquer criança, praticamente qualquer criança, pode aprender a ler bem, mesmo que venha de um lar desfavorável, mesmo que viva em circunstâncias muito ruins. E, no entanto, nossos professores não fizeram isso por décadas. Mas está começando a mudar.

Agora, imagino que o mesmo aconteceu no Brasil. E, possivelmente, de maneira pior, porque aqui é ainda mais ideológico. Então acho que o problema está, provavelmente, nos professores e não nos pupilos. E é claro que é um círculo vicioso. É muito difícil mudar um sistema altamente burocrático. O governo central pode dizer o que quiser, mas as pessoas que vão realmente determinar o que acontece estão muito abaixo na escala burocrática. Uma das possíveis soluções poderia ser abrir o sistema educativo à concorrência. Há um livro muito interessante escrito por James Tully sobre o estabelecimento de escolas particulares pequenas e baratas em Lagos, Bombai e outros lugares muito pobres, onde as pessoas em situação de pobreza estão dispostas a pagar algo para ter seus filhos educados. O problema com o sistema burocrático é que as pessoas mais vulneráveis às suas imbecilidades são, naturalmente, os pobres. Porque se você pertence à classe média, ou não vai aceitar essa situação ou vai tomar uma ação alternativa. Portanto, são os pobres que ficam vulneráveis. Dito isto, desde que cheguei ao Brasil conheci vários professores que estão trabalhando no sistema público, e pareciam ser pessoas muito boas. Estavam realmente tentando fazer o seu melhor, mas disseram que tudo está contra. Os professores estão contra, o ministro da educação é contra. Então, é um problema muito difícil.

Ainda sobre seu livro Podres de Mimados, nesta obra você descreve aspectos do sentimentalismo e destaca que, se algo ocorre apenas do âmbito privado da vida de alguém, é como se não tivesse ocorrido, a menos que essa pessoa o demonstre em público. Você acredita que o surgimento das redes sociais é consequência ou causa deste fenômeno?

É uma relação dialética, sem dúvida. Uma relação na qual a possibilidade se torna necessidade. Não sei exatamente, pois não uso redes sociais. Mas parece haver um pacto entre certas pessoas: eu finjo estar interessado na sua futilidade se você fingir que se interessa pela minha. Colocar o que acontece com você em um espaço no qual milhões de pessoas podem ver de alguma forma confere a estes acontecimentos uma importância maior. Ouvi dizer que diversas pessoas publicam coisas como: “Estou em uma loja” ou “Estou aqui, tomando café”. Por que alguém se interessaria por isto? É muito estranho para mim. De qualquer forma, eu diria que existem meios sensatos de usar estas mídias, mas muito delas é futilidade e somente tem por consequência aumentar a presunção e uma espécie de individualismo sem individualidade.

Sobre seu livro A Nova Síndrome de Vichy, você escreveu esta obra antes do Brexit, certo? Qual a sua opinião sobre a saída da União Europeia?

Em primeiro lugar, em muitos casos representou um protesto contra a classe política. Se o Sr. Cameron não tivesse dito nada é possível que o voto tivesse sido no sentido contrário. Se os políticos não tivessem dito nada, especialmente aqueles que eram favoráveis à permanência, é possível que o voto tivesse sido no sentido contrário.

E, na minha visão, a União Europeia está construindo a próxima Iugoslávia. Eu não sei se você já ouviu alguém dizer no que consiste o Projeto Europeu. Eles costumam falar do Projeto Europeu, mas você nunca ouve ninguém dizendo o que ele é. E somente pode significar uma coisa: a construção de um estado unitário. E é extremamente perigoso impor políticas a países do tamanho da Espanha ou da Itália sem que haja nenhum sentimento real de união entre eles. É algo extremamente perigoso e terminará em conflito.

E os alemães estão em uma situação complicada…

Os alemães estão em uma posição muito complicada porque eles são poderosos, mas não todo-poderosos. Então, por exemplo, se a França, a Espanha e a Itália fizerem uma coalisão contra a Alemanha – porque o interesse dos países são diametricamente opostos -, algo será imposto à Alemanha. E isto não é bom. Na verdade, não poderia haver melhor forma de fazer crescer o nacionalismo alemão. Ainda assim, eles me parecem preparados para continuar nesta rota, o que é muito perigoso.

Agora, em relação ao Reino Unido, é existencialmente importante para a União Europeia que o Brexit seja um desastre econômico, porque se não o for, se não houver deterioração, ainda que ocorra apenas estagnação, as pessoas na Europa vão dizer: “Qual é o ponto da União Europeia se sair dela não faz nenhuma diferença, não leva ao desastre?”. Então é necessário para eles que o desastre seja produzido.

Entendo que o Reino Unido tem salvado a Europa desde as Guerras Napoleônicas. Você acredita que é isto que vai acontecer novamente?

A questão é que nós temos diversos problemas no Reino Unido e não podemos pensar que eles decorrem da União Europeia. Isto não é verdade. Nossos problemas não têm por origem fundamentalmente a União Europeia. Mas se o Brexit levar à quebra da UE, então terá salvado a Europa de novo, sim, porque o futuro da Europa é o desastre, a menos que mudem de rota.

Se eu tivesse que resumir seu livro em uma frase, esta seria: a Europa está perdida. Estou correto?

Eu não acho que seja inevitável. Depende do que você quer dizer por perdida. Continentes não se perdem simplesmente. Mesmo depois da queda do Império Romano continuou havendo vida, e provavelmente não era tão ruim como costumamos imaginar. Então, nesse sentido não está perdida. E eu não quero dizer que a vida na Europa é um inferno, porque obviamente não o é. Mas estamos trilhando um caminho que vai levar ao desastre, provavelmente não no meu tempo de vida, pois não vou viver tanto tempo, mas eu acho que você verá desastre na Europa, caso continue se movendo nesta direção. Mas eles podem mudar de caminho por outras razões.

Já que estamos falando da Europa, não podemos deixar de mencionar o Islamismo. E me parece que você é mais otimista em relação ao Islã na Europa do que a maioria dos analistas, pois entende que, ainda que o Islã influencie a Europa, a cultura secular também influencia o Islamismo. Você, então, não enxerga o Islã como uma ameaça real?

Às vezes penso que sim, às vezes penso que não. A questão é que o Islã é intelectualmente muito fraco. E o Islamismo é a resposta a esta fraqueza extrema do Islã. O fato é que o Islã não tem nada a dizer ao mundo moderno, não pode cooperar com ele. E, ao mesmo tempo, pessoas que são muçulmanas percebem o que acontece com as religiões quando há total liberdade de inquirição, criticismo e assim por diante.

Assim como com o cristianismo…

O cristianismo desmoronou, ao menos na Europa. Talvez não no Brasil, mas provavelmente irá ocorrer aqui também. Veja a França, por exemplo. Eu estava lendo uma edição de Flaubert voltada para crianças de 16 anos nas escolas e neste livro os editores entenderam que precisavam explicar a doutrina da trindade. Eles entenderam que não era possível ter expectativas de que as crianças soubessem o que era a doutrina da trindade ou a confissão, e assim por diante. E esse é o país que é chamado de “a filha mais velha da Igreja”. Se os editores deste livro estão certos, e eu acredito que devem estar, significa que ocorreu uma destruição praticamente completa do cristianismo na França. E o mesmo é verdade na Inglaterra.

Então se eu fosse um muçulmano e quisesse manter o Islã, eu iria pensar que a única forma de fazê-lo é o extremismo. É a única solução para o Islã. A menos que seja mantido pela força, irá se tornar apenas mais uma crença pessoal – não mais do que a crença nos chakras da terra ou nos poderes curadores dos cristais. E, claro, sempre houve em si um elemento de força: na doutrina aceita na Sunnah – e não estou certo sobre o islamismo xiita – da pena de morte para apostasia. Para mim, soa um pouco como a Máfia (risos).

Como eu disse, eles entendem que, a menos que seja mantido pela força, o Islã irá desmoronar. De certa forma esta violência representa um entendimento implícito de quão frágil é o Islã. Isto significa que ocorrerão incômodos terríveis nos anos que estão por vir. Mas não é uma ameaça existencial real, pois irá desmoronar.

Você acredita que movimentos da extrema direita europeia, como o Front National na França, podem usar essa ameaça do Islamismo como meio para ganharem poder?

Sim, é claro. Se eu fosse um líder de extrema direita eu iria me aproveitar de todo exemplo de conduta islâmica que nós não gostamos. Por exemplo, existem ruas em Paris que são bloqueadas por pessoas rezando. Eu também não gosto disto. Eu acho que essas pessoas deveriam ser retiradas. Deveria ser dito a elas “Não faça isso, pois se o fizer será preso por criar obstruções”. O fato de que ninguém toma essa atitude obviamente dá força ao Front National. Mas você disse que é uma organização de direita. Em certos aspectos, porém, é claro que é também de esquerda, pois evidentemente não é economicamente liberal. Muitas de suas prescrições econômicas são exatamente aquelas desejadas pela esquerda ou, ao menos, por parte da esquerda.

Ao final do livro você menciona os Estados Unidos e se este país poderia ou não seguir o mesmo caminho que a Europa adotou. Roger Scruton deu uma palestra na Heritage Foundation e mencionou o livro A Decadência do Ocidente de Oswald Spengler. De acordo com Scruton, o que Spengler não previu foi a emergência dos Estados Unidos e a ajuda dada pelos EUA à Europa após a Segunda Guerra. Parece-me que no século XXI os Estados Unidos estão mais fracos do que antes. Qual seria o papel dos EUA no mundo neste século?

Em certo sentido, esta perda de poder é inevitável, assim como o foi a perda de poder britânico. Disraeli disse que “o continente europeu não permitiria que o Reino Unido fosse a oficina do mundo para sempre”. Em outras palavras, você não pode manter sua dominação econômica para sempre, e isto já está acontecendo com os Estados Unidos. Eu sequer acredito que, estritamente falando, continue sendo o poder militar dominante que era. Eu não acredito que os Estados Unidos iriam à guerra contra a China, por exemplo. Se a China invadisse Taiwan eu não acredito que os EUA iriam protegê-la. Isto significa que não é mais o superpoder único que o foi. Os EUA sequer iriam atacar a Rússia caso ela invadisse áreas como a Geórgia, a Criméia ou os Países Bálticos. Os Estados Unidos viriam ajudar os Países Bálticos? Faria muito barulho, imporia sanções econômicas, passaria resoluções, mas não iria para a guerra, e é por isso que o povo nestes países está nervoso.

Mas eu não culpo os Estados Unidos, pois isso é uma consequência da situação. Não acho que pudessem fazer muito melhor. Contudo, muito do orgulho dos Estados Unidos consiste exatamente em ser este grande poder e, quando este poder está evidentemente perdido, a moral do país pode deteriorar.

Você tende a ser cético quanto à ideia de excepcionalismo americano, certo?

Ah, sim. Eu não acredito em excepcionalismo americano. Quero dizer, todo país é excepcional, pois todo país é único. O Brasil é diferente de todos os outros países. A América é um pouco diferente porque ao contrário da maioria dos países é um país ideológico. É fundado em uma ideia, ao menos em teoria, fato que não ocorre com a maioria dos países. A França, de forma similar, é um país ideológico. E o sentimento de excepcionalismo é perigoso. O orgulho vem antes da destruição, um espírito arrogante antes da queda, como diz a Bíblia.

Um tema recorrente de sua obra é o dos intelectuais e sua influência na sociedade. Muitos problemas da sociedade ocidental parecem ser resultado de certas ideias promovidas por intelectuais. Você entende que estes intelectuais eram moralmente corruptos ou estavam buscando a verdade e foram incapaz de o fazê-lo?

Acredito que uma mistura dos dois, assim como provavelmente a maioria dos seres humanos. Inclusive, eu mesmo. Eu não quero atribuir más ideias de pessoas ao fato de elas serem más ou corruptas, apesar de ser possível traçar a origem das suas ideias em fatores pessoais, como ocorre com qualquer um.

Se pegarmos Foucault, por exemplo, e isto é apenas uma teoria: o pai dele era um cirurgião e costumava acordar às 03 horas da manhã para salvar a vida de pessoas, e ele era de direita. Este era um tipo de humanidade prática que eu não acho que Foucault poderia ter igualado. Não acho que Foucault iria levantar alguma vez às 03 horas da manhã por causa de alguém. Esta é a minha teoria, pode ser absurda e não posso provar. Mas pode ser que isto tenha o levado a ver naquilo que aparentava ser uma atitude humanitária algo por baixo que é menos respeitável. Assim, o pai dele acordando às 03 horas da manhã para salvar alguém, na verdade, seria apenas um exercício de poder, com o fim de se fazer importante.

Qual a sua opinião sobre o livro Pensadores da Nova Esquerda, de Roger Scruton?

É eficaz, pois ele leva os pensadores a sério. Devo dizer que é admirável que ele tenha se dado ao trabalho de ler centenas de páginas de Habermas (risos). É algo que vai além do dever, é heroico. É absolutamente impressionante que ele tenha pinçado o pouco de sentido de milhares de páginas de verborragia. Eu não o faria. Meu amigo Myron Magnet costuma dizer que você não precisa comer um pacote inteiro de manteiga para saber que está rançosa, mas Scruton comeu todo o pacote, e ele ainda se esforçou para ser justo. Scruton passou por esta enorme pilha de verborragia e manteve sua sanidade. Isto é admirável.

Na sua obra Em Defesa do Preconceito você emprega ao termo “preconceito” um sentido diferente daquele usual, certo?

Imagine que você está andando por uma rua em uma noite escura e vê se aproximando um homem jovem, com determinado modo de andar. Você sente medo. Agora, você não sente se ver uma velha senhora caminhando em sua direção. Isto é preconceito. Você está pensando em estereótipos. Por óbvio, na maioria das vezes o jovem não fará nada com você. Mas, ainda assim, é muito mais provável que ele o ataque do que a idosa. Se não tivéssemos este tipo de ideias, estaríamos no mundo como bebês. Você não pode limpar sua mente destas preconcepções, é impossível fazê-lo. Qualquer um que alegue não ter preconceitos é um mentiroso. O importante é ser capaz de controlá-los e de adaptá-los em resposta às situações.

O problema em dizer “Eu não tenho nenhum preconceito” é que se está fazendo violência a algo que se sabe ser verdade. Eu poderia te dar diversos exemplos de preconceitos que tenho, mas que preciso mudar à luz da experiência. Tenho preconceito contra tatuagem. Mas não é possível que a tatuagem tenha hoje o mesmo significado que tinha quando eu era criança, ou até mesmo o de 20 ou 30 anos atrás, porque um terço da população agora é tatuada. Então, eu tenho que controlar o meu preconceito. Eu ainda o tenho, tenho plena consciência disto. Eu tenho uma oposição estética à tatuagem também, mas originalmente meu preconceito tem por base meu entendimento de que 99% dos criminosos britânicos brancos são tatuados, e não acredito que seja apenas coincidência.

Qual ambiente mais te influenciou? Sua escola, sua comunidade, a universidade?

O que mais me influenciou foi ser médico e também viajar fez uma grande diferença para mim. Existe um verso em Kipling, no qual ele diz: “what should he know of England, who only England know?” E isto é verdade, pois, como afirmou Dr. Johnson: todo julgamento é comparativo. É preciso comparar as coisas. E viajar foi uma forma de conseguir fazer comparações. Por exemplo, eu trabalhei na Tanzânia, que é um dos países mais pobres do mundo, e lá descobri que as pessoas eram extremamente educadas. Eu não tinha nenhuma espécie de medo delas. Eles não tinham nada, absolutamente nada, mas eram muito educados. Então isto me levou a pensar sobre os efeitos da pobreza e que ela não necessariamente torna as pessoas brutais e agressivas.

As pessoas costumam me perguntar também qual autor mais me influenciou. Mas tenho dificuldade para responder. Eu nunca fui discípulo de ninguém, talvez porque seja muito egoísta.

Mas você acredita ter sido mais influenciado pela literatura do que por intelectuais?

Acho que sim. Chequei a esta conclusão tarde, mas Skakespeare disse praticamente tudo que qualquer um poderia pensar. Não há quase nada que alguém tenha pensado que não esteja em Shakespeare. E o que é assombroso em sua obra é que não é apenas o exterior que ele revela, mas também do interior. Ele te faz sentir aquilo que os personagens estão realmente sentindo. Não conheço nada parecido com isso.

Pergunta final: em seu livro O Prazer de Pensar, pelo exemplo de um incêndio, você demonstra que a primeira edição de um livro vale mais do que as demais, apesar de possuir o mesmo conteúdo. De forma similar, se você tivesse que salvar apenas um livro da sua biblioteca em um incêndio, qual salvaria?

É uma escolha estranha, mas salvaria o livro Sozaboy, de um escritor nigeriano chamado Ken Saro-Wiwa. Eu costumava encontrá-lo na Nigéria e quando ele vinha a Londres. Sozaboy é uma narrativa feita através da visão de um soldado nigeriano semialfabetizado, que é recrutado para a guerra civil ocorrida na Nigéria nos anos 70. Ele é capturado e luta pelo outro lado, sem ter ideia do porquê todos estão lutando. É um livro maravilhoso, é uma grande obra contra guerras. Quando eu estava na Nigéria, Saro-Wiwa fez uma dedicatória para mim no livro. Ele era originário de uma pequena tribo na Nigéria, na qual se localiza boa parte do petróleo do país. E a política da Nigéria se resume a quem controla o petróleo, assim como na Venezuela. Então ele iniciou um movimento político e lembro-me de ter dito a ele para não se tornar político, pois ele era um bom escritor e a Nigéria precisava mais de escritores do que de políticos. Ele, porém, insistiu e me disse “eles vão me matar”. De fato, ele foi enforcado. Criaram história sobre ele e o executaram. Então, eu salvaria este livro.

 




Vida universitária e vida real?


 

vida real - toniolo

Imagem: reprodução do artigo no jornal

 

Cansado nesse momento para escrever, mas mesmo assim sem desistência, tento registrar uma experiência de pouco tempo atrás que acho importante para nossos dias, especialmente para aqueles que têm vivência em universidades públicas do País.

Dia desses, estava com um amigo em uma dessas barracas de beira de estrada que vende água de coco, caldo de cana e outras coisas boas, com ambiente familiar e bela mata atrás da barraca e lhe disse algo: “Acho que vou aproveitar melhor este distrito morando aqui perto. O ambiente é mais familiar, a vida é mais normal, há famílias por aqui, há um clima diferente [tudo isso em comparação à residência estudantil e ao ambiente universitário onde vivia]”.

Ele me deu uma resposta de que gostei muito, por ser muito profunda e estar afinadíssima com o que tenho refletido a respeito nesses tempos. Ele, que é brasileiro e já saiu da universidade trabalhando com línguas, respondeu-me em inglês: “This is real life” [Essa é a vida real], ao que eu respondi de pronto: “Exatamente”.

Por que digo isso? Porque no ambiente universitário (especialmente público) se vive numa bolha, onde muitos estudantes ignoram leis, onde se vive num mundo à parte do mundo do trabalho e da vida cotidiana (que forma a maior parte da sociedade), onde se come a R$ 2,00 um prato que no mínimo valeria R$ 5,00 ou mais, onde estudantes fazem muitas coisas que não seriam feitas fora da universidade, enfim, onde muitos universitários estão enredados na chamada “segunda realidade” de que falava o escritor alemão Robert Musil e que o filósofo germano-americano Eric Voegelin a utilizou em sua obra.

“Segunda realidade” refere-se a uma realidade imaginária que não corresponde à realidade concreta, à estrutura da realidade. É uma realidade falsa, com muita imaginação utópica e deturpada acerca da realidade que só é possível na imaginação do sujeito que a carrega e que faz parte de sua visão de mundo e que, portanto, influi em suas ações. Trata-se das ideologias. Estas são daquelas que nos dão respostas prontas e nos fazem viver num mundo à parte. É um sistema de pensamento, uma visão de mundo que faz o sujeito enxergar só segundo as categorias desta ideologia, como o caso da ideologia materialista.

Um exemplo é quando se diz a um materialista que nem todo empreendimento econômico é explorador. Os mais aferrados a esta ideologia dirão que toda atividade econômica é exploradora, embora a teoria da exploração tenha sido refutada há várias décadas por diferentes economistas, como Böhm-Bawerk. Você, por sua parte, mostra casos reais de empresas que tratam bem seus funcionários e lhes pagam bem (nem todas são assim, seu sei), mas mesmo assim ele insiste em levantar uma teoria refutada: tem resposta pronta para qualquer contradito. Eis a ideologia.

Como essa segunda realidade é falsa, ela é incômoda e irritante para quem ama a primeira realidade, a “real life” de que certeiramente falou o amigo. Porque a “segunda realidade” tranca as pessoas dentro de si mesmas, dentro de sistemas, dentro de uma “casa sem janelas” – palavras que o escritor inglês G.K. Chesterton usou ao falar dos materialistas.

Você sair de um ambiente cujo tom é dominado por pessoas que estão enredadas nessa falsidade é um alívio, porque se vai a um ambiente onde as pessoas estão mais na vida real e onde não ficam em elucubrações mentais distantes, impossíveis. A vida real, apesar de suas dificuldades, é bela, é obra da Criação e é verdadeira. Nela você pode respirar e olhar além, sem as correntes dos jargões ideológicos e das idéias agarradas às paixões que sufocam o homem e o fazem justificar até barbaridades tremendas, como a de que os fins justificam os meios.

A vida real, ao contrário das ideologias, está aberta às novidades que a realidade apresenta. Coloca-se humilde a dizer “não sei” quando não se sabe, e a avançar no conhecimento sem fórmulas pré-fabricadas, mas atento ao que está sob seu olhar no mundo real e não apenas no mundo de sua imaginação. Se aceitada com humildade, é justamente um dizer sim à nossa existência neste mundo. Negá-la e não aceitá-la é como estar pelas ruas e acreditar que elas não existem, apesar de se estar pisando em solo quente e estar sentindo o calor do asfalto. — Viva a realidade! Viva a verdade! Sim, vivam elas, que estão quase mortas em diversos ambientes universitários.

■■ João Toniolo é bacharel, mestre e doutorando em Filosofia e gestor do Núcleo de Filosofia do IFE Campinas (joaotoniolo@ife.org.br).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 25 de fevereiro de 2014, Página A2 – Opinião.