Maravilha de mulher


“Eu queria salvar o mundo. Acabar com a guerra e trazer a paz às pessoas. Mas depois eu vislumbrei a escuridão que vive dentro da luz delas e aprendi que, dentro de cada pessoa, sempre haverá ambas e uma escolha que cada um deve fazer para si. Algo que nenhum herói será capaz de mudar. E, agora, eu sei que somente o amor pode verdadeiramente salvar o mundo. Então, eu luto e me dou pelo que sei que o mundo que pode vir a ser. Essa é a minha missão. Agora e para sempre”.

Com essas palavras, nossa heroína, Diana, faz o epílogo do filme que protagoniza como a mais famosa das amazonas na pele da mulher-maravilha. Na película, Diana, paulatinamente, esforça-se por descobrir o ser humano, não sem alguma incompreensão aqui e ali, já que via muita discórdia entre os homens e seu inimigo e irmão, o deus Ares, achava o homem um ente caído.

No plot do filme, esse desvelamento do ser humano dá-se no contexto bélico da 1a GM. A guerra é sempre impessoal. São nações enfrentando-se com interesses manejados pelos governos, aos quais o povo costuma permanecer alheio. Somente quando quem está do outro lado da trincheira é personalizado e assume a forma de uma pessoa concreta e real, a violência esvazia-se, perde sentido e o entendimento se torna possível.

Ortega y Gasset explica bem a necessidade de se personalizar o outro para entendê-lo, quando aponta que podemos julgar um absurdo o ato do outro, justamente porque não percebemos ser uma reação diante de coisas que nós não conseguimos ver. Não percebemos a paisagem que rodeia ao nosso interlocutor, a quem criticamos. Não notamos que o único modo de compreendê-lo é esforçar-se por reconstruir e adivinhar sua paisagem, o mundo com o qual está em diálogo vital. E para ver essa paisagem, que não é a nossa, precisamos buscar com lealdade as pupilas adequadas, ainda que, muitas vezes, pareça que estejamos a lançar um olhar cego para a luz.

Essa ideia nos introduz no fascinante tema da empatia, encarnado por Diana ao longo da película: sentir com os outros, colocar-se no lugar dos outros. Algo que está na boca de muitos, mas que, na prática, é sempre um desafio. Tendemos a nos fechar na realidade de nossa concha vital e, mesmo quando tentamos nos colocar no lugar dos outros e ver com os olhos deles, ainda estamos presos aos nossos filtros de leitura da realidade, cuja trama é feita pela perspectiva de nossas próprias categorias existenciais.

Calçamos os sapatos dos outros, mas com os nossos próprios pés e não entendemos como é ter os pés dos outros. Não é a mesma coisa. A advertência não é minha, mas de Edith Stein, essa santa judia que, como doutora em filosofia de uma tese sobre a empatia nos anos 10, teve sua fonte de pesquisa não apenas a fenomenologia de Husserl, de quem era discípula, mas sua atuação como enfermeira voluntária na 1a GM.

Curiosamente, a mesma guerra onde Diana, junto com Steve Trevor, o major-aviador-espião, participa e, por muito tempo, anda a tatear na paisagem dos outros, porque apegada às próprias pupilas até o momento em que ele sacrifica a própria vida por amor a ela, por mais piegas que isso pareça. Bom, isso é uma pieguice para um mundo dominado pelos esquemas sociais de racionalidade weberiana e pelo eficientismo econômico que coloniza as demais dimensões da realidade humana.

Então, daquele sacrifício surge a mudança de foco nas pupilas de nossa amazona, que passa a viver, nobremente, de empatia pelos homens. A verdadeira nobreza não é aquela que vem do sangue, mas de outro lugar, bem ao alcance de todos: a nobreza de ânimo de quem abre seu coração à sabedoria do outro e abandona o culto confuso ao próprio ego, a ponto de criar, como efeito, um certo desconcerto à sua volta, porque o indivíduo transforma-se em levedura que rompe com o eu conhecido e se abre ao outro desconhecido.

Ser empático é uma filosofia de vida e, como toda filosofia, tem a pretensão de ser “amor ao saber”, mas que, no caso de Diana, deveria ser o “saber do amor”, porque ela soube exprimir um profundo anseio existencial, o de conhecer a verdade do ser humano.

Eis uma heroína de prato cheio, dotada de um protagonismo forte e determinado, mas, ao mesmo tempo, sendo empática e capaz de amar. Parabéns à diretora do filme. Brindou-nos com um papel principal que não se resume a um mero símbolo sexual e nos mostrou que uma mulher, como heroína, é muito mais completa que qualquer herói macho já inventado. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 04/10/2017, Página A-2, Opinião.




Svetlana Alexiévich: “A Guerra não tem rosto de Mulher” – por Pablo González Blasco


Svetlana Alexiévich: “A Guerra não tem rotos de Mulher”. Companhia das Letras. São Paulo. (2016). 390 págs.

A guerra não tem rosto de mulherA partir do momento em que esta escritora recebeu o prêmio Nobel em 2015 -ela diz ser uma jornalista que transcreve a História nas vozes daqueles que nunca tiveram protagonismo-, fiquei atento ao lançamento dos seus livros, e comprei alguns deles na primeira oportunidade. Comecei a leitura por este, espicaçado pela originalidade do tema: mulheres russas na segunda guerra mundial. Uma guerra que não era a praia delas ou que, de um modo ou outro, eram episódios que tinham sido silenciados. “Nos roubaram a Vitória. Não a compartilharam conosco. Na fronte os homens nos tinham dado um trato formidável, nos protegiam. Mas na vida normal tudo isso caiu no esquecimento”. O que não deixa de ser curioso, porque todas elas tinham sido formadas no amor à pátria, de maneira incondicional: “Sempre tínhamos estado combatendo ou nos preparando para a guerra. Nunca vivemos de outra maneira, deve ser que não sabemos como viver sem isso. Na escola ensinavam-nos a amar a morte”. Um patriotismo que se mistura com a mística da alma russa que rende, por exemplo, este testemunho paradoxal e surpreendente: “Minha mãe era uma camponesa sem estudos, acreditava em Deus. Passou toda a guerra rezando-lhe a Deus, de joelhos diante de um ícone: Salva o povo, Salva a Stalin, salva o partido comunista desse monstro que é Hitler”.

Svetlana é uma escritora que dá voz ao povo. Esta obra -parece-me que as outras também- está composta com os testemunhos, magnificamente alinhavados, de multidão de pessoas; neste caso mulheres, que participaram da Segunda grande Guerra. Uma obra polifónica -como reconheceu o comitê do Nobel- fruto de um trabalho de décadas, uma investigação arqueológica, como se comentou na nossa tertúlia literária mensal.

Escritora ou jornalista, tanto faz, mais se assemelha a uma diretora de orquestra que permite a sinfonia de um relato incrível, onde todos os instrumentos tem entrada, compassos de espera, e acordes impactantes. Basta ver, por exemplo, a metodologia que utiliza na coleta de informações: “Passo longas jornadas numa casa ou num apartamento. Tomamos chá, provamos novas blusas, falamos de cortes de cabelo e receitas de cozinha. Olhamos fotos de netos. E então, depois de um tempo, surge o esperado momento onde a pessoa se volta para o seu interior. Deixa de recordar a guerra para lembrar a juventude, um fragmento de vida. É preciso agarrar esse momento. ‘Fui à fronte tão jovem que durante a guerra cresci um pouco’ (…) Os álbuns de fotografias, são como um diário íntimo. Normalmente os diários falam de amores, aqui o tema era a morte (…). As duas tínhamos tomado chá na sua cozinha. As duas chorando”. Quando leio isto, lembro-me do que se define como pesquisa qualitativa, construída através de entrevistas, montando um sujeito coletivo, e onde, sem nenhum demérito se reconhece que o pesquisador se envolve na própria pesquisa. O que não lhe resta nada de rigor científico; é como um mergulho fenomenológico. É a história através das vozes de testemunhas humildes e participantes simples, anônimos. “Sim, isso é o que eu quero transformar em literatura. Não escrevo sobre a guerra, mas sobre o ser humano. Não escrevo a história da guerra, mas a história dos sentimentos humanos. Sou historiadora da alma. A pessoa concreta, discernir o ser humano inteiro. A vibração de eternidade. O que há nele de imutável. Cada um percebe a vida através do seu lugar no mundo ou do ofício em que participa. Somos gente de caminho e de conversas”.

Penso que dificilmente alguém que não fosse mulher, e com muita sensibilidade, teria conseguido semelhantes revelações dando voz a essa polifonia feminina. Não conseguiria captar os relatos em registro feminino. Se lhe escapariam os detalhes. Além de que buscaria uma objetividade que não existe. Esta escritora-jornalista funciona como um líquido revelador dos fotogramas impresso na alma das protagonistas. E o resultado é uma avalanche de sentimentos, sensações, sofrimentos, alegrias e detalhes tremendamente femininos. Os exemplos são múltiplos, variadíssimos, até encantadores no meio da tragédia.

“Quando tínhamos um tempo de descanso, começávamos a bordar alguma coisa. Uns lenços. Nos tinham dado umas meias e polainas que convertíamos em lenços e cachecóis. Apetecia-nos fazer qualquer tarefa feminina, sentíamos falta. Qualquer desculpa servia para voltar ao nosso estado natural. E a saudade de casa, e a família.  Lembro de uma moça que regressou de uma licença, tinha estado na casa dela. Ela cheirava… a casa! Fazíamos fila para cheirá-la. (…). Se renuncias a ser mulher não sobrevives na guerra. Nunca invejei os homens. Nem durante a guerra. Sempre me alegrei de ser mulher. Há quem fale sobre a beleza das armas….Para mim nunca foram belas, sou incapaz de entender o que um  homem admira numa pistola. Eu sou uma mulher (…). Meu marido me propôs matrimônio em Berlim. A guerra tinha acabado. Senti vontade de chorar, de dar-lhe um tapa. Casamento? Nesse momento? Entre tijolos queimados e fumaça? Olha como estou. Faz-me primeiro sentir-me mulher, dá-me flores, diz-me coisas bonitas. Preciso disso! (…). De uma mochila saiu um rato, e todas demos um pulo, e algumas até gritaram. O capitão não acreditava: todas vocês têm medalhas e têm medo de um rato!”

A franco atiradora, a operadora de tanques, que se imaginam no papel de Joana d’Arc. Mulheres que se misturam com sangue e lodo e não perdem o estilo e a feminilidade. “O que levei à guerra quando me alistei? Bombons. Uma mala cheia de bombons. Gastei todo o dinheiro da minha indenização em bombons. Sabia que na guerra não precisaria de dinheiro. E pedi para me enviarem ao mesmo destino que a minha amiga (..). Tínhamos acabado o exercício de tiro e voltávamos à pé. Recolhi umas violetas, um buque pequeno, e o amarrei na minha baioneta. O comandante disse: um soldado é um soldado não uma menina que recolhe flores. Um homem não o podia compreender (…).  As mulheres sempre mencionam a beleza: “estava tão bela no caixão…parecia uma noiva”. Tinham que me entregar uma medalha e minha camisa militar estava velha, fiz um colarinho branco com gaze…. Deram-me dois ovos e eu os utilizei para limpar as botas. Sim, tinha fome, mas ganhou a mulher: queria estar bonita”.

E revelações fascinantes que um repórter homem nunca conseguiria obter. “O que é o mais espantoso na guerra? A morte? Não, para mim o mais terrível era ter de levar calções de homem. Um horror. Algo ridículo, quando estás te preparando para morrer pela Pátria. Somente muito depois, entrando na Polônia, nos deram roupa interior feminina…, Mas, estás chorando? Por quê?”. Confesso que neste momento, entendi de modo contundente e definitivo algo que os homens dificilmente compreendemos: as grifes e os preços do lingerie feminino. Um universo aparte.

E também pensei se, após ler este livro, as ideias da ideologia de gênero, nos seus espasmos de uniformidade e de opção de escolha, conseguiriam subsistir: parece-me que não restaria pedra sobre pedra. “Como ser um homem? Impossível. Nossos pensamentos são uma coisa, mas a natureza é completamente diferente. Começou um bombardeio, os homens correram para se esconder. Mas nós não escutávamos as bombas, corremos para o rio, e entramos na água. Ficamos lá até sentir-nos limpas (…)”. E uma das entrevistadas fecha a questão com a pergunta que o seu neto lhe faz vez quando vê as fotografias: Vovó, antes, na guerra, você era um rapaz?

O horror da guerra plasmado nestas páginas, encontra-se temperado por essa qualidade tão feminina que é o cuidar. Os testemunhos das que exerciam funções de enfermeiras ou de médicas, vem presidido pela ternura. “O que é a felicidade no combate? É encontrar entre os que caíram alguém com vida! (…). Perdi o dom de chorar, esse dom tão de mulheres. Saltavam dos tanques em chamas, os corpos ardendo. Tinham os braços ou pernas rotas. Me pediam: Se morro, escreva à minha mãe, escreva à minha mulher (…). Minha guerra cheira a três sustâncias: sangue, clorofórmio e iodo! No final da jornada tínhamos sangue no cabelo, empapava os aventais, as máscaras. Chegava no corpo. Negra, viscosa, misturada com urina, com excrementos, com tudo o que há dentro de um ser vivo. (…). Na guerra não há cheiros de mulheres. Todos os odores são masculinos. A guerra cheira a homem!”

A descrição da guerra, duríssima, cruel, mas em registro feminino. Algo que dá vida e deixa de ser um filme de ação, como habitualmente nos descrevem no cinema, para ser um conjunto de detalhes entranháveis no meio da pior das tragédias. “Na guerra tudo é em branco e negro. Somente o sangue é vermelho(…). Estava feliz porque não era capaz de odiar.” Justamente essa feminilidade invade capilarmente o cenário, e transforma os homens. Assim o reconhecem os soldados: “Coincidi com muitas moças combatentes, mas não as víamos como mulheres. Eram nossas amigas, as que nos tiravam dos campos de batalha. Nos salvavam, curavam nossas feridas. A mim me salvaram a vida em duas ocasiões. As chamávamos irmãs”. E elas sabem do seu poder de fogo para transformar os homens, mesmo em circunstancias adversas: “Quando os homens viam uma mulher em primeira linha mudavam por completo. A voz de uma mulher lhes transformava. Uma vez comecei a cantar em voz baixa. Pensava que todos dormiam, mas de manhã o comandante me disse: não estávamos dormindo, tínhamos tanta saudade da uma voz de mulher…! ”. Lembrei de Ortega, no seu inesquecível ensaio sobre o amor, e de como as mulheres mudam o ambiente e os homens, igual que o clima muda e formata o vegetal, com influência atmosférica.

E o amor que se veste de sangue na guerra, mas conserva a tonalidade romântica feminina, por mais cruel que sejam as circunstâncias. Diz uma das muitas viúvas:  “eu já sou velha, mas a ele o vejo jovem. Igual que quando nos despedimos. Se o vejo em sonhos também o vejo jovem.  Às vezes fico na frente da sua fotografia e lhe mostro os seus cinco netos, que ele nunca conheceu (…). Quem tenha estado na guerra, sabe o que significa separar-se, nem que seja um só dia”.

E talvez é esse modo entranhável de ver a vida com perspectiva feminina, o que nos abre o caminho para o perdão. “Na sala do hospital havia dois feridos. Um alemão e um soldado nosso, queimado. Fui cuidar do nosso soldado e me disse: eu estou bem, mas este está sofrendo. -É um nazista, disse eu. Sim, mas eu estou bem e ele sofre. Não eram inimigos: eram pessoas feridas no mesmo cômodo. Surgia uma relação humana entre eles (…). De madrugada se formavam filas de crianças alemãs. Eu não podia olhar com indiferença aquelas crianças famintas. Alimentávamos eles, curávamos-lhes. Um dia reparei que estava acariciando um deles. Eu, logo eu, estava acariciando uma criança alemã. Secou-se minha boca, acostumei-me, e eles também se acostumaram”.

A guerra é sempre uma decisão de cima, que acaba soltando o ódio e as paixões irracionais, como as torcidas uniformizadas que se animalizam. Torna-se necessário resgatar o ser humano que temos todos dentro, capaz de atrocidades, mas também de arrependimento e de perdão. “Os dois estavam queimados, negros. Arrastava a nosso ferido e pensava: volto a buscar o alemão ou não?  Compreendi que se lhe deixava morreria sangrando. Regressei a buscá-lo. Arrastei os dois. Foi em Stalingrado, o combate mais terrível. Minha querida: é impossível ter um coração para o ódio e outro para o amor. O ser humano tem um só coração, e eu sempre pensava em como salvar o meu”.

Um livro impressionante, de alto impacto. Uma experiência que transforma o leitor: muitas das leitoras da nossa tertúlia literária tiveram de interromper por dias ou semanas a leitura do livro para recuperar o fôlego… da alma. E, sem dúvida, transformou a própria escritora como ela confessa abertamente: “Não vejo o final deste caminho. O mal parece infinito. Já não posso percebê-lo apenas como um fato histórico. Quem poderá me responder? Os tempos mudam, mas e os humanos? As repetições fazem me pensar na torpeza da vida. Elas contavam tudo isto como soldados. Também como mulheres”. Um livro necessário que nos faz pensar na irracionalidade da guerra. Quando acabamos não somos mais os mesmos, acontece-nos como no final de um episódio bélico: “Quando acabava o ataque era melhor não se olhar na cara. As caras são distintas, diferentes das habituais. ” Uma leitura imprescindível. Para as mulheres, que terão orgulho de comprovar como a substância da sua alma feminina sobrevive nas circunstancias mais adversas. E para os homens, que ganharemos um respeito maior e profundo por elas.  Um Nobel mais do que merecido!!!!

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente em 07/02/2017 em <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/12/18/o-esgrimista-a-paixao-por-ensinar/>

 




Humilhadas e ofendidas


Brian Boulos da NYC - Flickr

Foto: Brian Boulos da NYC – Flickr

 

Dostoievski é, para mim, o melhor escritor que já existiu. E, se é assim, os grandes dramas humanos de todos os tempos devem estar em seus livros, tais como o amor, o perdão, o sofrimento, etc. Hoje, há um tema que vem gerando muita reflexão, a chamada questão feminina. O sábio russo deve ter algo a dizer sobre o assunto. E tem.

Em “O idiota”, acompanhamos o drama de Nastácia Filípovna. A jovem perdeu os pais muito nova e ficou sob os cuidados de um conhecido do pai, Totski, que sentiu pena da órfã. Até a adolescência da moça, deu-lhe bons cuidados, mas, a partir de então, redobrou-os devido à beleza dela e a tratou como uma concubina. A respeito de Nastácia, o protagonista do livro, o príncipe Mischikin, profundo conhecer da alma humana, afirmou ao ver seu retrato: “O rosto é alegre, e não obstante ela sofreu terrivelmente, não? É um rosto altivo, terrivelmente altivo, só que eu não sei se ela é bondosa ou não.” Para quem lê o livro, fica claro que Nastácia tem essa atitude de orgulho e rancor porque foi tratada como um objeto da luxúria daquele “respeitável senhor da sociedade”. E o príncipe não sabe se ela é bondosa porque, naquele momento da narrativa, ela está fechada para o amor, quer apenas se vingar da humilhação sofrida. Busca reparação.

Quantas Nastácias temos hoje? Quando vejo jovens tirando a roupa para protestar por qualquer coisa, quando xingam e babam ódio, quando gritam “meu corpo, minhas regras” vejo Nastácia. Gostaria de perguntar-lhes que mal lhes foi feito para quererem se vingar assim de todos nós. Embora algumas acabem por seguir o que parece ser uma tendência feminista, acredito que muitas foram “humilhadas e ofendidas”, para citar mais um título do genial russo.

Buscam proteger-se do mal que lhes fizeram querendo ter os mesmos direitos de seus agressores. O erro reside no fato de que ninguém deu a eles o direito de ferir o outro. Mas elas não consideram a questão sob esse prisma. Pensam que o direito de humilhar também lhes deve ser facultado, talvez para que nunca mais sejam ofendidas novamente. Em alguns casos bastante tristes, acabam aceitando a maldade imposta e veem a si mesmas como “vadias”.

Fala-se muito hoje que os meninos devem aprender a não serem estupradores. Nenhum de nós o é, alguns se tornam. Mas esse não é ponto, serve apenas para nos distrair do problema fundamental: a falta de amor. Mulheres devem ser amadas, caso contrário, a crise na sociedade instala-se. E uma forma cruel de maltratá-las, mas ninguém fala, pois é um tema tabu, é a pornografia.

Em um artigo publicado no Washington Post, Gail Dines, professora de Sociologia e autora de livros sobre o tema, aponta que um estudo recente em sete países distintos concluiu que o consumo de pornografia está associado ao aumento de atos verbas e físicos de agressão sexual contra a mulher. No mesmo sentido, outro estudo, que analisou cenas de filmes mais assistidos, verificou que os homens xingavam e cometiam atos agressivos em 70% dos casos. A mulher era o alvo em 94%. Sem falar nas imagens publicadas por “namorados”, o que já levou algumas meninas ao suicídio.

“Que pode uma criatura senão, entre outras criaturas, amar?”, perguntou Carlos Drummond de Andrade. Porém, como explica o stárietz Zózima em outro livro de Dostoievski, sua obra-prima, “Os irmãos Karamázov”, “o amor é um mestre, mas é preciso saber adquiri-lo, porque é difícil adquiri-lo, custa caro, um longo trabalho que demanda um longo tempo, porque não se deve amar por um instante fortuito, mas até o fim.” É o que pedem todos, especialmente aquelas “humilhadas e ofendidas”.

Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, Jornalista, Publicitário e membro do IFE – Campinas.




Trabalho de homem e mulher


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Imagem: reprodução de ilustração de Italo para o artigo impresso (Página A2 – Opinião).

 

No dia 15 de junho, o Correio noticiou que a tenente-coronel Carla Danielle Basson Niglia é a primeira mulher na história a comandar um batalhão na cidade. 600 homens estarão sob o seu comando. Essa é uma grande notícia que mostra um aspecto positivo das conquistas femininas ao longo das últimas décadas. É bom viver em uma época na qual as pessoas podem seguir sua vocação, escolher um trabalho no qual contribuirão de forma eficaz para o desenvolvimento da sociedade.

Como Campinas passou por uma grande discussão acerca da adoção ou não da ideologia de gênero nos currículos das escolas públicas, fiquei intrigado com uma questão: afinal, há trabalhos que são mais masculinos do que femininos?

Eu pensava que não existiam mulheres coletoras de lixo, que ficavam atrás do caminhão, para ser mais específico. Mas não é que há? Em Belo Horizonte, uma equipe feminina foi montada no fim do ano passado para a prática do serviço. Uma delas, Sinália Ramos, declarou: “A gente não deixa de ser mulher. Estamos sempre de batom e brinco.”

Mas analisemos alguns dados que podem iluminar um pouco a questão. Na Psicologia, segundo dados de 2012 do Conselho Federal de Psicologia, elas são 90%. Esse quadro está inalterado desde 1988. Já na Engenharia Civil, de acordo com o Confea Crea, elas somam 18%. Na Enfermagem, o quadro também pouco mudou em décadas: desde 1980, o percentual de homens na profissão subiu de 5,9 para 7,9. Na educação, especialmente nos anos iniciais, elas são maioria, acima de 80%. Mulheres nutricionistas: 96,5%. Bombeiros, 8,8%.

Essa incursão por dados prova apenas que não há profissões de homem ou de mulher, como um título um tanto quanto sensacionalista pode indicar. O que há são aptidões, vocações. Em uma sociedade na qual as diferenças entre homens e mulheres são levadas em consideração, como a Noruega, por exemplo, cada pessoa escolhe o que melhor lhe convém. Nada impede que um homem seja psicólogo, nada impede que uma mulher seja física. Mas por que há tão poucos psicólogos e tão poucas físicas?

Os adeptos da ideologia de gênero oferecem como resposta que esse fato se deve à sociedade machista e patriarcal. Segundo eles, desde o instante em que nascemos, somos fabricados para sermos homens ou mulheres, de acordo com uma concepção opressora que quer rotular cada um de nós. O fato biológico, para eles, é irrelevante.

Ora, quando se joga fora a chave que abriria uma porta fechada, o que resta? Explicações mais ou menos acertadas ou, na maioria dos casos, mais ou menos estapafúrdias sobre o fato da porta estar nessas condições. É isso o que os propositores da ideologia de gênero fazem.

Ninguém é obrigado a seguir essa ou aquela profissão. Contudo, o fato de muito mais homens escolherem algumas e muito mais mulheres escolherem outras tem uma explicação. E ela reside no cérebro.

As diferenças são muitas. Uma delas é o fato de as mulheres serem muito superiores aos homens em ler expressões faciais. Simon Baron Cohen, professor de Cambridge, e grande especialista em autismo, descobriu que as meninas, desde o primeiro dia de vida, são mais empáticas que os meninos. Esse fato não tem nada a ver com a criação, mas com hormônios. Além disso, a mente masculina é atraída mais facilmente por sistemas e para entender como eles funcionam. Já o cérebro feminino presta mais atenção às emoções, afirma Cohen.

Isso não significa que todos os homens tenham um cérebro masculino e que todas as mulheres possuam um feminino. Mas essa tendência é inegável e já foi bastante estudada. Não há dúvidas de que devemos caminhar rumo a uma sociedade na qual cada pessoa siga a profissão que desejar e não seja alvo de discriminação por isso.

Mas, para citar um exemplo, como professor de Redação não posso desconsiderar o fato, por si só evidente, de que a maioria das meninas escreve melhor do que os meninos. Muitas vezes, peço que as meninas escrevam menos linhas. Os meninos, mais. É preciso ter paciência com eles, pois o cérebro masculino amadurece mais tarde. Desconsiderar essas diferenças não é um avanço. É uma injustiça.

Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, jornalista, publicitário e membro do IFE-Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular em 28 de Julho de 2015, Página A2 – Opinião.




[FILME] “‘Gravidade’: Epopeia Feminina à Conquista do Espaço (interior)” (por Pablo González)


     Um belíssimo filme. Com peso, densidade, com a gravidade que parece faltar no cenário espacial. Dito isto, e para aumentar os créditos, vale comentar a seguir o processo como fui seduzido. Os filmes de ficção nunca foram a minha praia. Se a ficção é espacial, e as críticas recomendam ver em 3D, sei que posso esperar uma constelação de efeitos especiais que tentam compensar a falta de conteúdo humano, que é a verdadeira isca com a que um filme consegue me fisgar. Resisti-me à aventura espacial de Clooney e Bullock, fui encontrando desculpas –afinal há muito filme na lista de espera para ser visto- até que, num momento desavisado, apertei o play. Impactante. Não soube dizer por quê, mas deixou marca.

Como dizia Ortega, somos também nossas circunstâncias. As minhas guardavam, ainda quentes, as ponderações geradas pelos livros que tinha acabado de ler e comentar. Garotas no limite, de Leonard Sax, onde se fala das mulheres –adolescentes, para ser mais preciso- que estão conectadas com metade do planeta, e desconectadas delas mesmas, da sua intimidade. A biografia de Marañon, onde se adverte que o romantismo precisa de tempo e solidão para ser vivido, distanciando-se da pressa e da técnica. E um texto que o Papa Francisco enviou no dia mundial das comunicações aos detentores da mídia, sugerindo que se esforcem por encontrar no ambiente digital o sentido da pausa e da calma, o silêncio que permite escutar, dimensões todas que nos ajudam a crescer em humanidade e em compreensão recíproca

     Todos estes pensamentos temperavam-se com os comentários dos protagonistas no filme. “Metade da américa ficou sem Facebook” –diz Clooney quando perde a comunicação com Houston. “O que você mais gosta de estar aqui em cima?” –pergunta ele para a cientista. “Creio que é do silêncio” –responde Sandra Bullock. Retornei ao filme outra vez, buscando agora o eco das reflexões que tinha me provocado. Borges dizia que quando voltamos uma e outra vez sobre um livro, o vemos de modo diferente porque nós mudamos durante o processo. Foi o que me aconteceu. Um efeito retardado, a ficha demorou em cair completamente, o fez em câmara lenta, como os atores movimentando-se na ausência de gravidade. Assim as ideias que cercavam minha mente, em busca do peso próprio, lentamente, em silêncio.

     O filme é, todo ele, uma epopeia feminina, a conquista da uma mulher sobre ela mesma. O espaço sideral, as questões técnicas, são guarnição, detalhe sem importância. Surgem máquinas que respondem a ordens em russo ou em chinês, tentativas de diálogos em sintonias perdidas que tem cães por interlocutores, crianças, e canções de ninar. E o frio que congela a cápsula espacial e, sempre, o silêncio que permite encontrar-se com ela mesma: refletir sobre a sua vida, suas frustrações e alegrias, suas dores e feridas que encontram , na ausência da atmosfera tóxica, possibilidades de cicatrização. “Você rezará uma prece por minha alma?. Eu vou tentar rezar uma também, embora nunca rezei na minha vida, ninguém me ensinou”. Uma cura da própria vida. Uma conquista do espaço, não do astral, mas do interior, dos meandros da alma.

     Tinha escutado de algum crítico que a performance da Sandra Bullock merecia um Oscar. Como é possível uma mulher ser feminina enfiada num traje de astronauta e movendo-se em câmara lenta? –pensei. Ela consegue; impõe-se, nos gestos, na modulação da voz, nas miudezas, e faz do entorno escuro, gélido, silencioso, o seu habitat. Lembrei –como não?- de Ortega, naquele ensaio magnífico sobre a alma feminina, “Estudos sobre o amor”: A mulher muda o entorno, como o clima faz com o vegetal. E faz de tudo o que a circunda, costume; transforma o ambiente –mesmo inóspito e adverso- num lar.

O nascer do sol, lindo, imponente, sem nuvens na atmosfera que filtrem a sua contundente luz. O oxigênio que escasseia e que é preciso saborear, respirando devagar, como quem degusta vinho, e não cerveja para apagar a sede.

     Alfonso Cuarón, o diretor Mexicano, leva com mérito o Globo de Ouro. Afinal, não é fácil dirigir um ator e meio e quatro vozes ao longo de um filme, mantendo o interesse, segurando uma trama tensa em suspense magnífico. Hitchcock dizia que dar sustos no cinema não requer muito talento, além do que, tudo se resolve em cinco segundos. O mérito mesmo é por conta do suspense onde o diretor brinca com a plateia, minutos, até horas, porque envolve o espectador na trama, torna-o partícipe do que se passa no celuloide. O susto e o terror ficam por conta dos efeitos especiais, da surpresa grosseira. O suspense requer a habilidade de sintonizar de modo quase interativo com os sentimentos do público –emoções, expectativas, medos- e, de algum modo, projetá-los como num espelho nas ações e figuras das personagens. O suspense faz-nos, por algum tempo, viver a vida peculiar dos protagonistas.

Quando o suspense não depende apenas de ações externas, mas das decisões vitais dos protagonistas, a empatia abre um canal de comunicação todo especial. Por isso Sandra Bullock e a sua epopeia particular nos fascinam. Ficamos presos aos seus solilóquios, nos emocionamos quando busca o conforto no latir dos cachorros, nas coisas simples da vida. “Houston in the blind’- assim começam sempre os registros que envia a cegas porque não sabe se alguém a escuta. Têm o sabor daqueles diários femininos, onde se estampavam o colorido da alma, fatos e sonhos, medos e receios, realidades e fantasias em igual proporção. E junto com a cientista que se debate pela sobrevivência, somos obrigados a pensar na nossa própria realidade. Vale a pena estar conectados com milhares de pessoas –quer dizer, com uma plateia que é tão numerosa como irreal e infiel- ou aproveitaria mais nutrir a própria intimidade, e conhecer-nos melhor? Vai ver que é quando desparecem as supostas conexões o momento em que começamos a conhecer-nos. É conhecida a piada daquele que está sendo enterrado, contemplado por apenas um par de sujeitos que comentam: “quem diria, ele tinha milhares da amigos no Facebook. Cadê eles?”.

     Conhece-te a ti mesmo, reza a máxima dos clássicos. Ao que poderia se acrescentar o conselho do monge sábio do século XII, Bernardo de Claraval: “Por maior que pareça o teu saber, de nada vale se não te conheces. Não é sábio aquele que não o é para si mesmo”. Conhecer-nos para, depois, poder conhecer os outros e sabermos servir, ser úteis. Conhecimento, silêncio, ponderação, paciência. Aqui encaixa o recado do Papa Francisco, que se recolhe na mensagem já comentada: “Temos necessidade de ser pacientes, se quisermos compreender aqueles que são diferentes de nós: uma pessoa expressa-se plenamente a si mesma, não quando é simplesmente tolerada, mas quando sabe que é verdadeiramente acolhida”

E para tudo isso ser possível é preciso sair do barulho, da correria da alma. É preciso desprender-se da gravidade que nos amarra à terra. Gravidade que nos prende à mediocridade e nos impede, como dizia Guimarães Rosa, de “botar para se esquecer uma porção de coisas -as bestas coisas em que a gente no fazer e no nem pensar vive preso, só por precisão, mas sem fidalguia”. E ai sim, focar-se no que interessa, encontrar as verdadeiras prioridades, aquilatando as lembranças, tornando-as reais, na dimensão certa, em câmara lenta, saboreando-as como o oxigênio da alma que se acaba e do qual precisamos para retomar a nossa vida com passo firme, decidido.

Tudo isso gira na órbita de Gravity. Um filme superior. Um diretor corajoso. Uma atriz monumental.

Pablo González Blasco

Publicado originalmente em <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2014/02/20/gravidade-epopeia-feminina-a-conquista-do-espaco/> Último acesso: 16/07/2015.