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Quatro causas para a liberdade – por Marcos Paulo Fernandes de Araújo*

Filosofia | 01/03/2016 | | IFE CAMPINAS

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Annibale Carracci – Hércules na Encruzilhada Óleo sobre tela, 1596O conde francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) foi um dos pensadores mais profundos – e proféticos – desses tempos democráticos em que vivemos. É de sua autoria esta famosa frase: “Acredito que teria amado a liberdade em todos os tempos, mas sinto-me inclinado a adorá-la nos tempos em que vivemos”[1].

A “época em que vivemos” – ainda que a data de seu início permaneça como objeto de discussão – tem sido, de fato, pródiga em personalidades dispostas a adorar a liberdade. No século anterior a Tocqueville, eram os iluministas que se prestavam a esse culto, especialmente em seu país. Voltaire teria dito que a liberdade é “o poder de fazer aquilo que eu quero”[2]. Rousseau (considerado por muitos um anti-iluminista), segundo uma concepção um pouco diferente, teria posto o significado focal da liberdade[3] no aspecto da participação política para a elaboração das leis – a ponto mesmo de pretender absorver o cidadão dentro do Estado e fazê-lo abdicar de toda particularidade.

Embora essas concepções traduzam algo de verdadeiro, a inteligência invulgar de Tocqueville jamais lhe permitiu incorrer em reducionismos como o do primeiro autor, nem em descalabros como o do segundo, nas suas concepções de liberdade. Pretendo apresentá-las, porém, de uma maneira que talvez nem mesmo o autor de A democracia na América tenha pensado em fazer: sugiro adiante que elas podem ser lidas à luz do conceito aristotélico das quatro causas – conquanto não saiba se, além da influência indireta que o Estagirita exerceu sobre o pensamento do francês, mediadas pelos escritos de Montesquieu, houve alguma outra.

O estudioso Jean-Claude Lamberti destaca quatro elementos da concepção tocquevilleana de liberdade: em primeiro lugar, a noção segundo a qual a natureza concedeu a cada um as luzes necessárias para se conduzir; em segundo, a idéia de participação política, ou dever cívico; em terceiro, um aspecto referente à independência originada da noção aristocrático-germânica de desenvolvimento da própria personalidade (Bildung), sendo a quarta e última dessas notas a livre-escolha daquilo que é bom ou, simplesmente, virtude.[4]

O primeiro desses elementos, o qual se poderia chamar liberdade individual, corresponde ao aspecto material da liberdade. Qual seria a razão disso? Deve-se notar que Tocqueville se vale da palavra necessárias. A causa material na filosofia aristotélica, corresponde àquilo a partir de que se faz alguma coisa, algo que está em potência para receber uma determinada forma. Um bloco de mármore, de madeira ou de outro material esculpível, pode ser necessário para que se dê forma a uma estátua, mas está longe de ser suficiente para isso.

As idéias de participação política e a independência proporcionada pelo desenvolvimento da própria personalidade, entremeiam-se, de certa maneira, em sua operação, constituindo cada uma, grosso modo, a causa eficiente e formal da liberdade, respectivamente. A liberdade não pode existir sem homens com uma certa formação (Bildung, com efeito, é uma palavra que remente a figura, ‘Bild’, e também ao correlado inglês ‘building’, significando construção, e ‘build’, que significa porte, compleição física) que os torne independentes. Isso, porém, não se mantém por si só. Faz-se necessária, concomitantemente, a participação desses homens na política, haja vista que a falta dela – como ressaltado pelo próprio Tocqueville ao comentar o caso da aristocracia francesa no período anterior à Revolução – acaba pondo a perder a independência outrora conquistada.

Nenhuma dessas concepções abarca, contudo, o significado fundamental da palavra liberdade, pois, para Tocqueville, como já se disse, a liberdade consiste também, e sobretudo, na capacidade de escolher livremente o bem, na virtude. O homem livre é, portanto, aquele capaz de se autotranscender para buscar o bem, já que a causa final de qualquer ente é lhe, por definição, extrínseca.

Desafortunadamente, para muitos hoje em dia, a liberdade acaba restrita ao primeiro dos níveis apresentados. Voltaire, ou melhor, seu ideal rasteiro de liberdade, que parece considerar as luzes da natureza não apenas necessárias, mas suficientes para que cada um tome seu rumo, prevaleceu – ou, ao menos, tem prevalecido –, nos nossos tempos.

Historicamente, isso redundou numa lógica de expansão das comodidades e utilidades postas à disposição do homem (mercado), e isso certamente trouxe inegavelmente uma série de benefícios sociais. Porém, a adoção de um conceito que toma o aspecto extensivo da liberdade como único (ou ao menos principal) a ser considerado, acarreta um problema mais grave ainda do que se pode imaginar: a liberdade de escolha, que antes voltava-se à determinação apenas dos meios para alcançar o próprio bem, passa a valer também para determinar o que é o bem, passando ele a consistir na própria escolha, ou melhor, em qualquer objeto que tal escolha tenha por conteúdo. Em termos de antropologia filosófica tomista, o fim passou a ser objeto antes da eleição que da intenção e, portanto, os meios passaram a figurar como objeto da intenção, ou seja, passaram a figurar como bens últimos, i.e., fins da ação do homem.

Isso não é, atente-se bem, apanágio das concepções que colocam o mercado em primeiro lugar. Também de acordo com Rousseau, é a Vontade Geral, consubstanciada no órgão legislativo do Estado, que deve definir como última instância em que consiste o bem, pois ela, escreve o cidadão de Genebra, é incapaz de errar.

Essa concepção que leva a que se queira expandir o espectro de opções plausíveis em nome da liberdade contra as restrições institucionais e morais que tornam o próprio ser humano capaz das escolhas que lhe permitem constituir-se (Bildung) não passa de um desvario. Em suma, esse conceito mal formulado vai de encontro à própria forma, individual e política, do ser humano, que não é algo estático, mas uma tendência para a realização das perfeições intrínsecas à espécie.

Assim, em nome da satisfação de apetites, os mais reles e mesquinhos, abrem-se ao ser humano cada vez mais novas possibilidades que, longe de libertá-lo, escravizam-no, e, ao contrário de aperfeiçoá-lo, aviltam-no. A liberdade, que deveria ser alcançada pela autotrasncendência, com a realização de uma forma (Bildung), rumo a um fim que está além do homem, passa a ser substituída por um simulacro seu, cujo efeito é a perda de sua forma (degradação), pela autotransgressão de suas normas constitutivas, rumo ao nada. Se isso ocorre por processos de mercado ou de Estado, ao homem desejoso da verdadeira liberdade pouco importa: arrojar-se no precipício, seja sozinho, seja com uma manada, para ele dá no mesmo.

* Marcos Paulo Fernandes de Araujo é bacharel e mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da UERJ.

NOTAS:

[1] D.A., II, 4, VII

[2] Dicionário Filosófico, verbete Liberdade.

[3] É verdade que o cidadão de Genebra chegou a problematizar a liberdade em termos de conflito com os estímulos sensoriais no seu Emílio, mas não chegou a desenvolver o tema. É duvidoso, contudo, que um tal desenvolvimento não viesse a entrar em conflito com a concepção do Contrato Social, que propõe o Estado como uma restauração do ‘estado de natureza’, no qual a liberdade significa total integração num ambiente do qual o homem não é senão uma engrenagem. Ao fim e ao cabo, a liberdade em Rousseau aparece com uma obediência à lei que alguém se deu através do Estado, mas uma lei construída em torno a um consenso tal, devido a um anterior controle no processo de formação da opinião pública, que a obediência a ela aparece como “espontânea”, exatamente como a do homem no ‘estado de natureza’.

[4] LAMBERTI, Jean-Claude. Tocqueville et les deux démocraties. Paris: PUF, 1985, p. 74-86.

Artigo publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradica, em 28/Fev/2016. Link: <http://www.dicta.com.br/quatro-causas-para-a-liberdade/>.

Imagem: Annibale Carracci – Hércules na Encruzilhada: Óleo sobre tela, 1596.

“Estado da Arte”: A Magna Carta

Direito | 29/02/2016 | | IFE CAMPINAS

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O programa Estado da Arte é produzido e apresentado por Marcelo Consentino, presidente do IFE e editor da revista Dicta & Contradicta. A cada edição três estudiosos põem em foco questões seminais da história da cultura, trazendo à pauta temas consagrados pela tradição humanista.
A seguir apresentamos a edição que foi ao ar em 05 de fevereiro de 2015

Magna-Charta-sealed_https-__boothancestry.files_.wordpress

 

Durante a Guerra Civil inglesa, o panfleteiro ultrademocrata Richard Overton se lembraria comovido de uma das incontáveis vezes em que foi preso pelos oficiais da Coroa: enquanto arrancavam “de mim a Grande Carta das Liberdades e Direitos da Inglaterra”, gritava “assassino, assassino, assassino!” Uma geração antes, Sir Henry Spelman, membro da ala conservadora do Parlamento, descreveria a Carta como “a mais majestosa e sacrossanta âncora das liberdades inglesas”.

No ano de seu oitavo centenário a Magna Carta é prestigiada mundialmente não só como a pedra fundamental do direito anglo-saxão, mas também, nas palavras do jurista britânico Lord Denning, “como o maior documento constitucional de todos os tempos – o fundamento da liberdade individual contra a autoridade arbitrária do déspota”.

Todavia, de suas 63 cláusulas, só 3 não caducaram ou foram revogadas, permanecendo vigentes na Constituição do Reino Unido. E nos últimos dois séculos não faltaram historiadores que denunciassem a Grande Carta como um “mito” elaborado ideologicamente sobre uma colcha de retalhos de exigências incôngruas e mal costuradas em nome dos interesses privados da elite feudal do século XIII. O próprio Overton diria em outra ocasião, numa chave bem menos romântica, que a Carta é “uma coisa miserável contendo muitas marcas de opressão intolerável”.

Convidados

– Eduardo Tomasevicius Filho: mestre em História Social e professor doutor do departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

– Maria Cristina Carmignani: professora doutora de História do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

– Tomás Olcese: professor de Direito das Faculdades Metropolitanas Unidas e membro do grupo de pesquisa “Direito Privado Comparado Contemporâneo” da Universidade de São Paulo.

Referências
  • Origem dos Direitos dos Povos de Jayme de Altavila (Ícone editora).
  • Magna Carta de James C. Holt (Cambridge University Press).
  • Magna Carta – Its Role In The Making Of The English Constitution 1300–1629 de Faith Thompson (University of Minnesota Press).
  • “The Magna Carta” em In Our Time.
  • Magna Carta: Manuscripts and Myths de Claire Breay (The British Library).
  • Struggle for Mastery: The Penguin History of Britain 1066–1284 de David A. Carpenter (Penguin).
  • Magna Carta: Through the Ages de Ralph Turner (Routledge).
  • A History of The English People de Paul Johnson (Littlehampton).
  • Roots of Liberty: Magna Carta, Ancient Constitution and the Anglo-American Tradition of Rule of Law de Ellis Sandoz (Liberty Fund).
  • Magna Carta. A commentary on the Great Charter of King John de William Sharp McKechnie.
  • A Short History of England: The Glorious Story of a Rowdy Nation de Simon Jenkins (Public Affairs).
  • An Introduction to English History de J.H. Baker (Oxford University Press).
  • Historical Foundations Of The Common Law de S.F.C Milson (Oxford University Press).
  • Les Grands Systèmes de Droit Contemporains de René David (Dalloz).

 

Produção e apresentação
Marcelo Consentino

Produção técnica
Echo’s Studio

Fonte: http://oestadodaarte.com.br/a-magna-carta/

"Estado da Arte": A Magna Carta

Direito | 29/02/2016 | | IFE CAMPINAS

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O programa Estado da Arte é produzido e apresentado por Marcelo Consentino, presidente do IFE e editor da revista Dicta & Contradicta. A cada edição três estudiosos põem em foco questões seminais da história da cultura, trazendo à pauta temas consagrados pela tradição humanista.
A seguir apresentamos a edição que foi ao ar em 05 de fevereiro de 2015

Magna-Charta-sealed_https-__boothancestry.files_.wordpress

 

Durante a Guerra Civil inglesa, o panfleteiro ultrademocrata Richard Overton se lembraria comovido de uma das incontáveis vezes em que foi preso pelos oficiais da Coroa: enquanto arrancavam “de mim a Grande Carta das Liberdades e Direitos da Inglaterra”, gritava “assassino, assassino, assassino!” Uma geração antes, Sir Henry Spelman, membro da ala conservadora do Parlamento, descreveria a Carta como “a mais majestosa e sacrossanta âncora das liberdades inglesas”.

No ano de seu oitavo centenário a Magna Carta é prestigiada mundialmente não só como a pedra fundamental do direito anglo-saxão, mas também, nas palavras do jurista britânico Lord Denning, “como o maior documento constitucional de todos os tempos – o fundamento da liberdade individual contra a autoridade arbitrária do déspota”.

Todavia, de suas 63 cláusulas, só 3 não caducaram ou foram revogadas, permanecendo vigentes na Constituição do Reino Unido. E nos últimos dois séculos não faltaram historiadores que denunciassem a Grande Carta como um “mito” elaborado ideologicamente sobre uma colcha de retalhos de exigências incôngruas e mal costuradas em nome dos interesses privados da elite feudal do século XIII. O próprio Overton diria em outra ocasião, numa chave bem menos romântica, que a Carta é “uma coisa miserável contendo muitas marcas de opressão intolerável”.

Convidados

– Eduardo Tomasevicius Filho: mestre em História Social e professor doutor do departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

– Maria Cristina Carmignani: professora doutora de História do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

– Tomás Olcese: professor de Direito das Faculdades Metropolitanas Unidas e membro do grupo de pesquisa “Direito Privado Comparado Contemporâneo” da Universidade de São Paulo.

Referências
  • Origem dos Direitos dos Povos de Jayme de Altavila (Ícone editora).
  • Magna Carta de James C. Holt (Cambridge University Press).
  • Magna Carta – Its Role In The Making Of The English Constitution 1300–1629 de Faith Thompson (University of Minnesota Press).
  • “The Magna Carta” em In Our Time.
  • Magna Carta: Manuscripts and Myths de Claire Breay (The British Library).
  • Struggle for Mastery: The Penguin History of Britain 1066–1284 de David A. Carpenter (Penguin).
  • Magna Carta: Through the Ages de Ralph Turner (Routledge).
  • A History of The English People de Paul Johnson (Littlehampton).
  • Roots of Liberty: Magna Carta, Ancient Constitution and the Anglo-American Tradition of Rule of Law de Ellis Sandoz (Liberty Fund).
  • Magna Carta. A commentary on the Great Charter of King John de William Sharp McKechnie.
  • A Short History of England: The Glorious Story of a Rowdy Nation de Simon Jenkins (Public Affairs).
  • An Introduction to English History de J.H. Baker (Oxford University Press).
  • Historical Foundations Of The Common Law de S.F.C Milson (Oxford University Press).
  • Les Grands Systèmes de Droit Contemporains de René David (Dalloz).

 

Produção e apresentação
Marcelo Consentino

Produção técnica
Echo’s Studio

Fonte: http://oestadodaarte.com.br/a-magna-carta/

Maio de 68 e a família

Opinião Pública | 11/11/2015 | | IFE CAMPINAS

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Muitos estudantes viram o evento como uma oportunidade para sacudir os valores da “velha sociedade”, contrapondo ideias progressistas sobre a educação, a sexualidade e o prazer. No campo pedagógico, Maio de 1968 pretendeu emancipar-se do sistema educativo instaurado no século anterior que, de fato, já havia se esgotado em muitos de seus postulados epistemológicos.

Contudo, Maio de 1968 foi além: era preciso destruir e negar o passado, a fim de surgir um admirável mundo novo. Aliás, como tudo na retórica progressista, cuja beleza consiste em sabermos como começa e ignorarmos como termina.

Nesse caso, já não mais: um movimento formado por adolescentes significou a expressão da recusa da entrada na sociedade dos adultos. De lá para cá, as ditas ideias progressistas permaneceram no mundo juvenil e, indiretamente, influenciaram outras dimensões da realidade, mormente a familiar. Sem que seus defensores sequer desconfiassem disso.

Maio de 1968 consagrou, sob o manto do posteriormente denominado pós-modernismo, o indivíduo-rei em prejuízo do senso social, a sexualidade divorciada da afetividade, a confusão entre sexo e gênero, a recusa do dado parental, o império da subjetividade, a abolição do sentido da lei de Édipo e o declínio da racionalidade em prol da irracionalidade no pensamento. Mais juvenil que isso, impossível.

“Cada um faça o que quiser”, jargão daquele movimento, é um lema que solapa as bases de qualquer tentativa de uma sólida constituição do ente familiar, cujos reflexos são sentidos na órbita comunitária em termos de sociabilidade. Ou melhor, da falta desta. Como efeito prático desse lema, as questões familiares vêm cada vez mais solicitar a proteção do juiz ou mesmo do médico.

O lema de Maio de 1968 pretendeu ignorar, a partir de suas próprias visões sobre educação, sexualidade e prazer, uma certa estrutura antropológica objetiva do ente familiar. A operação teve sucesso, mas sobre as ruínas que restaram constrói-se muito pouco ou mesmo nada, porque muitas das propostas de Maio de 1968 representam o testemunho de carências de uma sociedade esfacelada por não saber articular, no ente familiar, a dimensão conjugal com a pessoal e mesmo demonstrar algum apreço pelo sentido de sociabilidade do mesmo ente.

Boa parte destas carências, quando não são abordadas, são reiteradamente negadas, em prejuízo da solidez estrutural desta instituição natural, anterior mesmo à qualquer religião. Como efeito, surge uma série de tensões correspondem à banalização das rupturas conjugais pela mentalidade divorcista, à desvalorização do matrimônio em prol de outras conformações conjugais, à estandardização dos novos arranjos familiares e à aversão ao recâmbio geracional.

Pagamos um preço muito caro pelos efeitos de Maio de 1968: um universo de adultos adolescentes e incapazes de formar a sociabilidade de seus filhos. Não podemos ficar alheio à qualquer regulação social e ao reconhecimento de uma hierarquia entre as diferentes organizações afetivas e sexuais que favoreçam, em maior ou menor grau, o vínculo da sociabilidade e o desenvolvimento e a perenidade de uma sociedade. Quando se começa fazendo o querer, termina-se omitindo o dever. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 11/11/2015, Página A-2, Opinião.

Considerações sobre o atentado em Paris: cultura ocidental e extremismo (por Cesar A. Ranquetat Jr.)

Política e Sociologia | 06/07/2015 | | IFE CAMPINAS

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Em 7 de janeiro o mundo assistiu com um misto de perplexidade e revolta as imagens do atentado ocorrido em Paris contra os cartunistas e jornalistas do semanário Charlie Hebdo. Três homens armados – vinculados a grupos extremistas islâmicos – foram os autores do massacre.  O pretexto absurdo para a ação jihadista foi de que este jornal havia publicado charges em tom de zombaria com a figura mais importante da religião muçulmana o profeta Maomé. Ato bárbaro, covarde e, sob todos os aspectos, injustificável que ilustra de maneira cabal o caráter doentio do fanatismo e do extremismo político e religioso.

Este nefando acontecimento, contudo, enseja uma reflexão sobre o tema da liberdade de expressão e dos destinos da cultura ocidental. Para muitos analistas apressados estaríamos diante de um confronto entre os valores sacrossantos do laicismo, da democracia e das liberdades ocidentais contra a selvageria e o primitivismo religioso islâmico. Embate entre a ilustrada e racionalista cultura francesa e a retrógada e arcaica cultura oriental muçulmana.  Sinto frustrá-los, mas a questão não é tão simples assim.

Em primeiro lugar, os jihadistas não representam a totalidade da tradicional e milenar civilização oriental islâmica, mas uma facção “moderna”, minoritária e belicosa do islã que, equivocadamente, instrumentaliza a religião para fins políticos. Por outro lado, a cultura liberal e iluminista francesa é apenas uma expressão secularizada, particular, e, ainda, muito recente da denominada civilização ocidental. Cultura iluminista e laicista que, cabe destacar, em seus primórdios fora marcada pelo seu ódio medular e irracional ao cristianismo. Em síntese, o Ocidente não é apenas o iluminismo francês.

Além disso, importa lembrar que o semanário Charlie Hebdo não apenas escarneceu – através de desenhos de gosto duvidoso – da imagem do profeta Maomé, mas sucessivas vezes zombou de maneira irresponsável dos símbolos mais caros às tradições cristãs e judaicas. Blasfemar e ultrajar imagens religiosas são também atitudes condenáveis e, ademais, sacrílegas. Há um inegável laivo de barbarismo e mesmo de satanismo em blasfemar contra o divino.

Ao contrário do que pensam os porta-vozes da cultura ilustrada, a liberdade de expressão não é um valor absoluto e um direito ilimitado. A liberdade infrene acaba por descambar em libertinagem e licenciosidade. Uma liberdade vazia, sem conteúdo, irresponsável e autodestrutiva, aliás, vigora hoje na sociedade ocidental moderna.

Os corifeus do anarquismo pós-moderno e do “socialismo libertário” defendem ardorosamente e inescrupulosamente a bandeira de uma falsa liberdade que destrói os pilares da civilização ocidental, de acordo com a penetrante observação do diplomata e cientista político Mário Vieira de Mello:

 A liberdade – que está sendo carregada como o pavilhão, a bandeira, o símbolo essencial da civilização contemporânea – não é a verdadeira liberdade. Em nome desse falso símbolo se criticam, se rejeitam, se desmerecem valores que são legítimos representantes da substância cultural do Ocidente.

Reina soberanamente uma concepção radical e anárquica da liberdade, uma liberdade espúria e destrutiva para ofender, mentir, perverter, vilipendiar, blasfemar, atiçar ódios e paixões ignóbeis. Liberdade bastarda que não tem direção nem medida, hostil a qualquer vínculo e compromisso moral e alérgica a todo tipo de norma e ordem. O homem moderno parece ter esquecido a lição elementar de que a liberdade deve estar orientada pela verdade, conforme assevera o teólogo Joseph Ratzinger: “[…] a liberdade está associada a uma medida, a medida da realidade, que é a verdade. A liberdade de destruir a si mesmo ou destruir o outro não é liberdade, mas uma paródia demoníaca”.

Não tenho dúvidas, os desenhos satíricos e ofensivos do semanário francês, assim como o fundo ideológico anarquista e progressista radical que alimenta este periódico, são uma expressão e um sintoma doentio da própria corrosão interna e da dissolução moral que assola a civilização europeia contemporânea.

Por sua vez, o laicismo, a licenciosidade e o relativismo moral hoje dominantes no ocidente moderno não são barreiras protetoras contra o avanço do fundamentalismo islâmico; pelo contrário. A cultura ocidental moderna desvinculada de suas raízes morais e religiosas tradicionais torna-se uma presa fácil para qualquer tipo de radicalismo e extremismo, pois encontra-se espiritualmente vazia e privada de fundamentos superiores e sólidos. Segundo a arguta colocação do filósofo Rob Riemen

[…] a ameaça que o fundamentalismo islâmico representa para a nossa sociedade é muito menor do que a crise inerente à sociedade de massas – a crise moral, a trivialidade e o embrutecimento crescente que minam a nossa sociedade. Esta crise da civilização representa a verdadeira ameaça aos nossos valores fundamentais, esses valores que devemos proteger e salvaguardar para possamos continuar a ser uma sociedade civilizada.

Como afirma o escritor espanhol Juan Manuel de Prada, uma cultura que renega suas tradições espirituais está pronta para ser conquistada e dominada por bárbaros. A verdadeira civilização ocidental, a autêntica e grandiosa cultura europeia não se encontra bem representada no Charlie Hebdo. Devemos procurá-la em outras fontes, instituições, símbolos, convicções, normas e valores.

 

Cesar A. Ranquetat Jr é Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor universitário

Publicado originalmente no site da Revista Dicta&Contradicta.