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Juízes para o século XXI

Opinião Pública | 09/11/2016 | | IFE CAMPINAS

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Num estado de direito, a ideia de tribunais independentes e imparciais assume-se, hoje, como direito fundamental e indisponível. O acesso aos tribunais judiciais apela a um efetivo direito ao pronunciamento judicial de um justo concreto e isso suscita a questão da disponibilidade de um profissional dotado de uma formação de elevado nível.
 
O tradicional mercado de lides que o cidadão sempre resolveu na justiça é hoje confrontado por um fenômeno de diversificação, senão mesmo de mutação a novas questões que exigem respostas novas e ousadas para a superação das inúmeras iniquidades sociais. São novos problemas, fundados em desigualdades sociais e econômicas, multiculturalismo, espaço público para o fenômeno religioso, emergência de problemas ambientais, incremento da segurança pública, pluralismo de visões e cultura de gênero.
 
Hoje, o debate sobre o papel dos juízes na sociedade exige que a formação do juiz fique atenta às agendas da discussão política sobre a reforma do sistema de justiça, sobretudo na tripla perspectiva do acesso, da qualidade, da eficácia. No primeiro caso, um quadro de consolidação; no segundo, pouca atenção e, no terceiro, a tônica das cúpulas dos tribunais.
 
O debate sobre o papel da jurisdição sugere que se consolide e, ao mesmo tempo, ultrapasse-se o domínio paroquial do exercício da função judicial. Exige-se, do magistrado, uma abertura ao mundo e uma insatisfação permanente no exercício da função.
 
Para tanto, será necessária uma formação aprofundada, diversificada e apta a encarar o grau de complexidade do mundo, comprometida com um conjunto de valores e direitos fundamentais dos cidadãos que reclamam ainda por efetivação, aberta aos desafios decorrentes do pluralismo jurídico e, ao cabo, disposta à assunção dos riscos de uma magistratura culturalmente esclarecida.
 
A amplitude desta exigência só é compatível, no entanto, com uma permanente formação, a ultrapassar, por isso, algumas perspectivas estáticas que, sobrevalorizando a questão da formação de juízes apenas no acesso ao exercício da função, omitem a relevância daquele viés formativo.
 
Num quadro absolutamente globalizado, o juiz local é um juiz do mundo, onde a multiplicidade dos problemas suscitados à decisão são inelutáveis, mas sempre condicionados pela afirmação de que são os juízes o último penhor do funcionamento correto e justo das instituições. Afinal, a formação do magistrado é para educá-lo integralmente para se decidir prudencialmente.
 
Preservar uma cultura de independência e de imparcialidade nas instâncias judiciais é o que se exige dos demais poderes. Atuar na direção de uma cultura de comprometimento com um quadro de necessária efetividade dos direitos fundamentais é o que devemos exigir dos juízes e tribunais.
 
Neste século XXI, os magistrados devem estar atentos à uma abertura rumo à compreensão das inúmeras tramas de uma sociedade plural, complexa e fragmentada, na qual a argumentação, a retórica e a lógica são elementos relevantíssimos no processo de aceitação e legitimação da própria função judiciária. Uma jurisdição independente, zelosa da efetividade dos direitos fundamentais e focada no justo concreto das relações sociais é condição necessária para a vitalidade de nossa democracia, tão combalida em seus valores fundantes.
 
Mas não é só. Mesmo sendo independentes e imparciais, se os juízes não assumirem, ao lado de uma elevada formação integral, um alto padrão ético de conduta, isso poderá prejudicar não apenas a imagem de independência e de imparcialidade da judicatura, mas, principalmente, comprometer seriamente a confiança da comunidade na integridade judicial. Estas são as reflexões que deixo aqui para meus cento e doze colegas de concurso e que hoje completamos dezenove anos em que entramos pela porta da frente do Poder Judiciário. Corrijo. Cento e dez. Marcelo e Cinthia já estão sob a jurisdição divina há algum tempo. Não precisam mais refletir sobre mundanidades. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes
é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 09/11/2016, Página A-2, Opinião.

Juízes operadores

Opinião Pública | 12/10/2016 | | IFE CAMPINAS

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Não é novidade para nenhum cidadão que o Poder Judiciário vem sendo alvo da sanha institucional do CNJ, com avanços inegáveis e algumas ressalvas aqui ou ali, sobretudo quando o mesmo órgão insiste, muitas vezes, em tratar os tribunais brasileiros sob a perspectiva de um Estado unitário ou quando resolve assumir o papel de delegacia de polícia das “vítimas” dos juízes. Enfim, esse embate intestino não interessa muito ao leitor. Mas outro bem concreto.

Ao leitor, o destinatário de nosso serviço público, interessa muito mais um outro Poder Judiciário: aquele das práticas judiciárias, porque diretamente envolvidas com o cotidiano do cidadão e que respeitam ao trabalho diário do magistrado de assinalar e distribuir a justiça no caso concreto.

Convém lembrar ao leitor que vivemos numa sociedade de massas e, por isso, tais práticas judiciárias vêm sendo conduzidas muito mais sob a perspectiva de uma eficiência desbussolada do que de uma preocupação com o justo concreto. É a visão, crescentemente hegemônica, que está na raiz da práxis dos principais atos administrativos tanto dos tribunais como do CNJ, a enfocar a ritualização do “modo de produção” de decisões pelo juízes.

As práticas culturais e sociais contemporâneas, desde há muito, têm sido colonizadas pelo dado técnico, neutro, padronizado e informático. Lembram muito uma linha de produção fordista-taylorista. Ou, na versão atual, um modelo toyotista. Não tenho a menor dúvida que esse movimento colonizador é a causa daquela perspectiva eficientista, até porque as práticas de distribuição da justiça são, no fundo, práticas sociais.

Como representante do baixo clero judiciário, tenho a sensação de que a ritualização do “modo de produção” das decisões já provoca uma estéril postura reflexiva do magistrado no ato de julgar. Em outras palavras, o efeito prático dessa ritualização é simples: mais juízes operadores, expressão que diz muito, e menos juízes prudentes, na acepção greco-romana do termo.

Isso já pode ser notado em muitas expressões do jargão forense. Numa audiência, um advogado disse que o mais importante era a rapidez dos tribunais na solução dos litígios. De fato, a lentidão judiciária gera impunidade, injustiça e fomenta um clima social de autotutela, mas a dita rapidez tem um lado oculto: o maior risco de erro judiciário, o que também é uma injustiça e provoca o desprestígio da instituição.

Outra expressão que vai se sedimentando no inconsciente coletivo judiciário é a chamada “decisão técnica”. Nada mais positivista que isso, porque o positivismo responsabilizou-se pela transformação da justiça em técnica decisória, por meio de uma racionalidade dogmática que foi alimentando o processo de definição do justo pelo legalmente positivado.

Contudo, o pior efeito dessa ritualização do “modo de produção” é a prolação de sentenças em série e a votação de recursos em bloco, pois, aos poucos, tais práticas vão despersonalizando a figura do juiz e, indiretamente, desumanizando o poder que zela pela distribuição da justiça.

Ao cabo, a impressão que fica é a de que, para o CNJ e para os tribunais, o importante mesmo são os números dos itens e subitens das planilhas mensais: a estatística é erigida à condição de racionalidade laborativa e “torna-se o método de cálculo do rendimento profissional e do merecimento promocional”.

Rapidez, tecnicidade e estatística: eis os deuses idolatrados pelos tribunais e pelo CNJ. Mas são deuses de pés de barro, porque a “justiça” dessa racionalidade desumanizante é a “justiça” que se fecha à reflexão, à prudência e à tomada de decisão inserida na articulação do real concreto, fragilidade que, com o tempo, será percebida pela sociedade em que vivemos.

E, então, aqueles deuses cairão pela ação do próprio peso, porque uma sociedade repleta de juízes operadores é uma sociedade vazia de justiça. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicano no jornal Correio Popular, edição 12/10/2016, Página A-2, Opinião.