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Pela volta do latim

Opinião Pública | 11/01/2017 | | IFE CAMPINAS

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Em minha experiência como professor de ensino médio, tive a oportunidade de trabalhar com públicos das duas extremidades da pirâmide social brasileira: na rede estadual paulista, lecionei para alunos de famílias carentes; já num dos colégios de maior prestígio da capital, trabalhei com jovens de famílias socialmente privilegiadas. Deixando de lado as muitas diferenças entre meus dois grupos de alunos, fui surpreendido por uma triste semelhança: poucos demostraram plena capacidade de compreensão e redação de textos na norma culta da língua portuguesa.

Não é difícil perceber que o problema com que me deparei é simplesmente a manifestação de uma realidade alarmante, fartamente comprovada por pesquisas como a conduzida pela ONG Ação Educativa e pelo Instituto Paulo Montenegro, que diagnosticou apenas 8% da população brasileira em idade para trabalhar como plenamente capaz de se expressar por meio de letras e números. Como professor de filosofia, filho e neto de professores, resolvi buscar as causas que fazem com que mesmo pessoas de alto poder aquisitivo e amplo acesso a bens culturais de toda a sorte padeçam de uma falha que não hesito em chamar de preliminar à entrada no mundo da cultura.

É fato notório que o ensino oferecido pelas escolas públicas brasileiras até a década de 1960 era de excelente qualidade e que, naquela época, um atestado de segundo grau completo equivalia a um título de proficiência no contar e no escrever corretamente. Por qual motivo o ensino de português foi outrora entre nós tão mais eficiente que em nossa época? Se examinarmos os programas escolares que vigiam no ensino público até 1962, encontraremos quatro anos obrigatórios de latim no ginásio (que, no atual sistema de ensino, corresponde ao ensino fundamental 2), disciplina que constou no currículo dos bons colégios ocidentais por mais de dois mil anos e na qual eram versados todos os maiores escritores da língua portuguesa.

Dois argumentos contra a permanência do ensino do latim foram levantados pelos “educadores” que reivindicavam um nível mais elevado de sabedoria que aquele alcançado pelos mentores de toda a educação ocidental: em primeiro lugar, um argumento estruturalista, segundo o qual cada língua é um sistema fechado e, portanto, para aprender português não é necessário aprender latim. De outra parte, o latim não passaria de um resquício do classicismo renascentista, luxo desnecessário para quem busca uma formação adequada para a sociedade industrial. A essas razões fizeram eco muitos formadores de opinião e pessoas bem-intencionadas que não viam utilidade na memorização de tabelas de declinações, exigência que não raras vezes servia de arma na mão de professores sádicos, cujos prazeres consistiam em aterrorizar adolescentes com minúcias.

O grande erro em tudo isso reside na incompreensão do papel desempenhado pelo latim na formação cultural do ocidente, mesmo depois que deixou de ser língua viva. Diferentemente dos modernos cursos de idiomas, não era com o intuito de possibilitar a comunicação oral que se estudava latim, mas como disciplina de interpretação de textos clássicos. Após quatro anos de estudo, é plenamente possível a um adolescente enfrentar por conta própria um discurso de Cícero, um poema de Virgílio, uma história de Tito Lívio. Mais ainda, ao fazê-lo, terá ele contato com os modelos de escrita que serviram de referência aos autores que forjaram a língua portuguesa como a conhecemos hoje: Camões, Antônio Vieira, Manuel Bernardes e tantos outros.

Conforme argumentei em outra ocasião, um dos maiores desafios da educação brasileira nos próximos anos será formar um público de bons leitores, isto é, de pessoas que leiam bons livros, não qualquer coisa. Por que, então, não transferir duas horas semanais empregadas em esportes, idiomas vivos ou simplesmente perdidas no computador para o estudo do latim?

Fabio Florence, 31 anos, é professor de filosofia e sociologia e membro do IFE Campinas (florenceunicamp@gmail.com)

Suprema arrogância

Opinião Pública | 07/12/2016 | | IFE CAMPINAS

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“Em temas moralmente divisivos, o papel adequado do Estado não é tomar partido e impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam a sua escolha de forma autônoma (…). Em suma: por ter o dever de estar dos dois lados, o Estado não pode escolher um”, defendeu o ministro Barroso no voto que, na prática, abriu as portas para o aborto.

Não cabe ao Estado tomar partido. Mas, por meio do STF, isso foi feito. E quem toma partido do feto humano na barriga da mãe? “Meu corpo, minhas regras!”. Isso também se aplica ao feto e, mesmo que o ministro esforce-se para trivializar o aborto, a Constituição diz que a regra do corpo do feto é a regra do direito à vida. Incondicionalmente.

Não falaremos sobre aborto. Deixo que o grito silencioso do ser inocente, no momento de sua execução, que, aliás, é a única diferença entre o aborto e o homicídio, clame por si. Mas sobre o papel de uma Suprema Corte, como o STF. Atuar juridicamente é sempre interpretar e há interpretações e interpretações: hoje, estão em voga aquelas “achadas na rua” e aquelas tomadas a partir de puros “entes de razão ideológica”.

Ambas não partem de um dado bem concreto, isto é, do texto da lei, dimensionado prudencialmente em seu sentido e alcance rumo ao justo concreto. No fundo, são concretizações ideológicas desta ou daquela cartilha chanceladas judicialmente.

O problema dessa tarefa interpretativa da realidade posta está em buscar as chaves de interpretação dessa mesma realidade num direito “achado na rua” ou a partir de “entes de razão ideológica”. A leitura feita acaba por reproduzir um reducionismo interpretativo e, assim tudo passa a ser interpretação, sem que fique bem claro qual é o objeto referencial dessa atividade, isto é, qual é a realidade que, em última instância, interpreta-se.

Na tradição jurídica ocidental, essa tarefa pertence a uma Suprema Corte. Inserida nesse desafio, a tentação para seus juízes recai no afã de se pretender assumir o papel de constituinte originário, reescrevendo a Lei Maior: isso é chamado de neoconstitucionalismo.

Nessa ideia, o magistrado, sem lastro representativo, incorpora uma função legislativa daquilo que acredita ser o bem comum historicamente situado e, nas hipóteses mais patológicas, professa um messianismo judicial, porque crê estar antevendo, por um juízo estritamente particular, “achado na rua” ou a partir de “entes de razão ideológica”, aquilo que é próprio da deliberação política parlamentar, onde o juízo final é formado pelo entrechoque prudencial das opiniões dos legisladores.

Num e noutro caso, a democracia cessa e se um juiz se diz “pela democracia”, então, resolveu inovar semanticamente. Ou demagogicamente. Aliás, não é por acaso que o falecido juiz Scalia dizia que a ascensão do neoconstitucionalismo importa no ocaso da democracia.

Nessa usurpação de papeis institucionais, já teremos ingressado no mundo da autocracia da inteligência formada pelas cabeças de um punhado de togados letrados. O STF tem muitos papéis, mas rasga seu papel principal, quando, em suprema arrogância institucional, resolve reescrever a realidade sem base no texto constitucional, porque, ao cabo, deixa o cidadão “achado na rua”, abraçado, na própria sorte, aos “entes de razão ideológica”. A democracia vai parar na sarjeta. E, os fetos, a partir desse inusitado precedente, no lixo. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 07/12/2016, Página A-2, Opinião.