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Pensar o Direito (Parte V de VI): “Direito e Filosofia: Cara e Coroa”

Direito | 30/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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V – DIREITO E FILOSOFIA: CARA E COROA

Quais são nossas obrigações uns para com os outros no âmbito de uma sociedade democrática? É justo taxar os ricos para ajudar os pobres? O governo pode criar mais um imposto específico para um serviço público marcado pela ineficiência, como a saúde? E “a mão invisível” do mercado livre realmente é capaz de regulá-lo com equidade? As virtudes que fomentam a paz e a solidariedade sociais podem ser estimuladas por ações estatais? Um governo pode subsidiar casais que tenham muitos filhos?

Como réu, posso mentir, num interrogatório, diante de um magistrado? Posso me submeter voluntariamente à condição de escravo de outra pessoa? O parlamentar pode legislar sobre moral? Quais os limites entre a igualdade e a desigualdade? A igualdade deve ser de oportunidades ou de resultados? A liberdade de expressão abrange os chamados discursos de ódio? As ações afirmativas afrontam o conceito de meritocracia? O serviço militar deve ser obrigatório? Podemos nos opor democraticamente à construção de minaretes islâmicos no solo brasileiro?

São questões práticas que, muitas vezes sem saber, inclusive meu crítico leitor, enfrentamos diariamente no trabalho, na academia ou mesmo em conversas familiares. Também são controvérsias políticas e jurídicas atuais que levantam problemas filosóficos mais profundos, os quais vêm sendo discutidos desde sempre e, na maioria das vezes, sem soluções definitivas ou apenas provisórias.

Por que tais estas e outras questões costumam ser tratadas aqui, por este colunista, há anos? Em regra, para trazer à superfície aquilo que se esconde por trás e que, em última análise, aponta para o que efetivamente está em jogo no debate público daqueles assuntos e que não se resume na matéria do repórter que, por mais importante que seja, não vai além das informações essenciais sobre o problema dado. E, excepcionalmente, para fazer aflorar um espírito crítico um tanto mais contundente em alguns leitores…

Aqui não é o local adequado para ficar ressuscitando as clássicas obras de filosofia e de política. Existem as academias para isso. Mas, numa linguagem acessível e sem perder a erudição, podemos e devemos aproveitar este precioso espaço para mostrar a atualidade do pensamento dos autores daqueles clássicos: justapor aquele mundo de controvérsias, em nossa vida pública, à luz da filosofia e do direito e, assim, estimular o espírito crítico no cidadão.

Os grandes filósofos e juristas sempre ajudaram a iluminar aquelas controvérsias de uma forma ou de outra. Isso ajuda a informar pontos obscuros ou mesmo impensáveis no trabalho de esclarecimento daqueles assuntos controversos. E, talvez, já fosse o bastante. Mas não é.

A busca pelo aprofundamento daquelas controvérsias, pelos caminhos da filosofia e do direito, importa em alguns riscos, porque a filosofia e o direito, ao mesmo tempo em que nos ensinam, também nos confrontam com aquilo que já sabemos e que tem sua origem no lar, na escola, na igreja ou no senso comum, transformando o familiar em estranho.

Esse processo de mudança não necessariamente acrescenta mais dados à controvérsia, mas nos provoca a ver a mesma controvérsia sob um ângulo novo e diverso. E, quando o conhecido torna-se alheio, ele nunca mais será o mesmo. Alguém, com acerto, já disse que o autoconhecimento é como a inocência perdida: nunca mais se esquece. Filosofia e direito refletem a história de uma civilização, mas também são o espelho da história de cada um de nós.

Meu hipotético crítico acha que, se tais questões nunca foram resolvidas por Platão, Aristóteles, Locke, Kant, Rawls e outros grandes pensadores, quanto mais por nós, pobres intelectuais medianos. Então, o melhor é desistir da reflexão moral e simplesmente comer, beber e viver. Se por um lado, tais controvérsias parecem insolúveis, por outro, elas são inevitáveis, porque vivemos algumas soluções para tais questões diariamente.

Por fim, faço-lhe uma advertência: seu confortável e evasivo ceticismo garante-lhe um lugar de descanso para o pensamento, no dizer de Kant, mas não é capaz de saciar a inquietude de vossa razão. E deixo uma sugestão: caso continue achando que o direito e a filosofia são um bom passatempo intelectual, então, por favor, vá fazer um MBA…

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.

*Próximo artigo da série “Pensar o Direito”:

Parte VI: “Justiça, Filosofia e Virtude”

*Já publicados:

Parte I: “Pensando o Direito”  – para ler clique AQUI

Parte II: “Direito e Ordem Natural” – para ler clique AQUI

Parte III: “A crise do Direito” – para ler clique AQUI

Parte IV: “Resgaste da essência do Direito” – para ler clique AQUI

Pensar o Direito (Parte V de VI): "Direito e Filosofia: Cara e Coroa"

Direito | 30/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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V – DIREITO E FILOSOFIA: CARA E COROA

Quais são nossas obrigações uns para com os outros no âmbito de uma sociedade democrática? É justo taxar os ricos para ajudar os pobres? O governo pode criar mais um imposto específico para um serviço público marcado pela ineficiência, como a saúde? E “a mão invisível” do mercado livre realmente é capaz de regulá-lo com equidade? As virtudes que fomentam a paz e a solidariedade sociais podem ser estimuladas por ações estatais? Um governo pode subsidiar casais que tenham muitos filhos?

Como réu, posso mentir, num interrogatório, diante de um magistrado? Posso me submeter voluntariamente à condição de escravo de outra pessoa? O parlamentar pode legislar sobre moral? Quais os limites entre a igualdade e a desigualdade? A igualdade deve ser de oportunidades ou de resultados? A liberdade de expressão abrange os chamados discursos de ódio? As ações afirmativas afrontam o conceito de meritocracia? O serviço militar deve ser obrigatório? Podemos nos opor democraticamente à construção de minaretes islâmicos no solo brasileiro?

São questões práticas que, muitas vezes sem saber, inclusive meu crítico leitor, enfrentamos diariamente no trabalho, na academia ou mesmo em conversas familiares. Também são controvérsias políticas e jurídicas atuais que levantam problemas filosóficos mais profundos, os quais vêm sendo discutidos desde sempre e, na maioria das vezes, sem soluções definitivas ou apenas provisórias.

Por que tais estas e outras questões costumam ser tratadas aqui, por este colunista, há anos? Em regra, para trazer à superfície aquilo que se esconde por trás e que, em última análise, aponta para o que efetivamente está em jogo no debate público daqueles assuntos e que não se resume na matéria do repórter que, por mais importante que seja, não vai além das informações essenciais sobre o problema dado. E, excepcionalmente, para fazer aflorar um espírito crítico um tanto mais contundente em alguns leitores…

Aqui não é o local adequado para ficar ressuscitando as clássicas obras de filosofia e de política. Existem as academias para isso. Mas, numa linguagem acessível e sem perder a erudição, podemos e devemos aproveitar este precioso espaço para mostrar a atualidade do pensamento dos autores daqueles clássicos: justapor aquele mundo de controvérsias, em nossa vida pública, à luz da filosofia e do direito e, assim, estimular o espírito crítico no cidadão.

Os grandes filósofos e juristas sempre ajudaram a iluminar aquelas controvérsias de uma forma ou de outra. Isso ajuda a informar pontos obscuros ou mesmo impensáveis no trabalho de esclarecimento daqueles assuntos controversos. E, talvez, já fosse o bastante. Mas não é.

A busca pelo aprofundamento daquelas controvérsias, pelos caminhos da filosofia e do direito, importa em alguns riscos, porque a filosofia e o direito, ao mesmo tempo em que nos ensinam, também nos confrontam com aquilo que já sabemos e que tem sua origem no lar, na escola, na igreja ou no senso comum, transformando o familiar em estranho.

Esse processo de mudança não necessariamente acrescenta mais dados à controvérsia, mas nos provoca a ver a mesma controvérsia sob um ângulo novo e diverso. E, quando o conhecido torna-se alheio, ele nunca mais será o mesmo. Alguém, com acerto, já disse que o autoconhecimento é como a inocência perdida: nunca mais se esquece. Filosofia e direito refletem a história de uma civilização, mas também são o espelho da história de cada um de nós.

Meu hipotético crítico acha que, se tais questões nunca foram resolvidas por Platão, Aristóteles, Locke, Kant, Rawls e outros grandes pensadores, quanto mais por nós, pobres intelectuais medianos. Então, o melhor é desistir da reflexão moral e simplesmente comer, beber e viver. Se por um lado, tais controvérsias parecem insolúveis, por outro, elas são inevitáveis, porque vivemos algumas soluções para tais questões diariamente.

Por fim, faço-lhe uma advertência: seu confortável e evasivo ceticismo garante-lhe um lugar de descanso para o pensamento, no dizer de Kant, mas não é capaz de saciar a inquietude de vossa razão. E deixo uma sugestão: caso continue achando que o direito e a filosofia são um bom passatempo intelectual, então, por favor, vá fazer um MBA…

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.

*Próximo artigo da série “Pensar o Direito”:

Parte VI: “Justiça, Filosofia e Virtude”

*Já publicados:

Parte I: “Pensando o Direito”  – para ler clique AQUI

Parte II: “Direito e Ordem Natural” – para ler clique AQUI

Parte III: “A crise do Direito” – para ler clique AQUI

Parte IV: “Resgaste da essência do Direito” – para ler clique AQUI

Igualitarismo entediante

Opinião Pública | 10/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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A perspectiva de ser novamente pai numa outra fase da vida é realmente estimulante. Faz com que o pendor da reflexão gire não só em torno de fraldas, mamadeiras, noites mal dormidas, choradeiras e cólicas infantis sem fim e tudo mais que, sem uma visão mais transcendente da paternidade, reduz-se a um estorvo destinado a loucos ou inconsequentes. Ser pai é muito mais que isso: é pertencer a uma relação de amor com uma outra em prol da abertura à uma nova vida ao mundo. É, ao mesmo tempo, ser tão distinto quanto tão complementar com aquela que escolhemos para conviver, envelhecer e morrer.

Num mundo em que a ortodoxia politicamente correta não está muito disposta a tolerar a ideia de família fundada na distinção e na complementariedade entre um homem e uma mulher, um dado antropológico até mesmo reconhecido pelo maior expoente da etnografia estruturalista, sempre olho com muito respeito, mas conferindo-lhe o devido valor na escala de fins educativos e de perpetuidade social, as propostas de qualificação da família baseadas em conceitos de natureza ideológica que somente gozam de força num determinado momento histórico e, depois, caem como as folhas de outono.

Nessa ótica, assim, a família deixa de ser meramente “família” e passa a ser “família conservadora”, “família progressista”, “família multiparental”, “família pluriconjugal”, todas dignas de proteção legal, sem dúvida, mas cada qual segundo sua importância em prol daqueles fins, a serem medidos pela régua de lesbos aristotélica e não conforme a régua igualitária cartesiana, atualmente em voga.

O desenho geométrico daí resultante é bem interessante: a mesma cartilha que prega a oportunidade de direito ao matrimônio sem qualquer discriminação – como se não existissem fatores de discrímen justos e injustos, algo tão estudado e perene quanto a mesma régua grega e que atende pelo nome de justiça distributiva – é a mesma que, mais abaixo, sugere a manutenção dos códigos simbólicos masculinos e femininos na educação da prole, obviamente, sem apoio na ideia de marido e esposa, porque, segundo a mesma cartilha, trata-se de conceitos superados e substituídos pelas noções de genitor A e genitor B. Para os mais vanguardistas nessa área, há também genitores suficientes para contemplar todas as letras do abecedário…

A permanência desses códigos simbólicos resume bem o tributo que o erro presta ao acerto, porque, implicitamente, reconhecem o valor da razão relacional que assenta a noção perene de família, lastreada na diferenciação e na complementariedade sexual, atributos que, na educação dos filhos, assumem uma transcendência pedagógica que não se verifica, ontologicamente, nas demais formas de relação familiar, a não ser sob o ponto de vista do igualitarismo que, nesse campo, sofre de uma miopia antropológica invencível.

Ou da cegueira do cego que não quer ver que as demais razões relacionais ficam muito aquém da razão relacional que a noção perene de família porta em si mesma: aqueles modelos não ultrapassam razões relacionais de amizade ou de ajuda mútua “biconjugal” ou “pluriconjugal”, que são muito valiosas, mas que produzem, em seus efeitos, papéis e identidades no seio da relação conjugal bem diversos, se comparados com aqueles que se potencializam na relação havida a partir da noção perene de família.

No lugar dessa ditadura do igualitarismo familiar, proponho uma igualdade familiar que respeite e valorize, segundo seus reflexos para o bem social, a razão relacional de cada realidade familiar sociologicamente verificada. Porque uma fecunda razão relacional não sustenta um “uni-verso” monístico, nem um “multi-verso” entrópico, nem um “pluri-verso” indiferente da tolerância liberal, mas um “inter-verso” ordenado, situado num mundo de diversidade que se orienta a partir de uma racionalidade recíproca.

Ao contrário da camisa de força do igualitarismo, a igualdade fundada na razão relacional é capaz de convergir as múltiplas experiências e práticas comuns autônomas em favor de uma justa distribuição dos bens e deveres no campo familiar. Então, a partir agora, aguardemos pelas fraldas, mamadeiras, e, também, pelas noites mal dormidas. Ou de reflexão, a depender do nível dos decibéis da choradeira do mais novo herdeiro familiar. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, mestre em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 10 de dezembro de 2014, Página A2 – Opinião.