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Correr para as montanhas?

Sem Categoria | 08/03/2017 | | IFE CAMPINAS

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No ano passado, no intervalo de um curso sobre filosofia política, um aluno desabafou dizendo que o homem faliu, a sociedade foi à bancarrota e, como Deus está morto, o negócio é correr para as montanhas, bem longe do que restou de nosso estágio civilizatório. Segundo ele, o projeto da modernidade esgotou-se e não haveria um sucedâneo capaz de fazer uma reinvenção do homem.

De fato, na “problemática”, nosso aluno fez um diagnóstico acertado da realidade que vivemos: o homem passou o século XX realizando macabras experiências antropológicas aqui e acolá e instrumentalizando o próprio homem em prol de projetos políticos, sociais e econômicos que oscilavam entre a redução ou a aniquilação de sua própria dignidade. Campos de concentração, gulags, bomba atômica, genocídios, nacionalismos, desastres ecológicos, manipulação genética e intervencionismo estatal, entre outros.

Evidente que, depois dessas aulas de laboratório antropológico, o relatório final não poderia ser dos mais agradáveis. Um generalizado ceticismo, quando não um pessimismo, tomou conta de nossas mentes. Habermas e Ratzinger, cada qual a seu modo, já prenunciavam esse quadro patológico para os albores do século XXI e, além disso, novos milenarismos, visões apocalípticas e metanarrativas sobre o fim da história que surgiriam como remédios, dispostos e prontos para consumo na gôndola dos pensamentos padrão fast food.

Nossa tarefa, diante de tantos e novos desafios, é histórica. Aliás, a tarefa do homem sempre foi assim e, como tal, permanece. No século XX, vivemos o auge da absolutização da autonomia do homem. Positivismo, romantismo, marxismo, niilismo, estruturalismo, cada qual, entre erros e acertos, criou sua visão prometeica do homem. E a resultante dessa feijoada de ideias foi bem indigesta: uma grave desordem nos diferentes âmbitos da existência humana.

Qual será o remédio para o homem que, depois do ocaso do projeto moderno, está imerso numa busca de sentido para sua existência? Algumas tendências culturais têm o sincero desejo de superar os becos sem saída que esse projeto nos legou. Nos âmbitos político e econômico, notamos tendências de integração entre os povos, o reforço dos princípios da subsidiariedade contra a centralização estatal e da solidariedade contra o individualismo libertário.

No âmbito científico, existe um despertar de consciência dos perigos da tecnologia aplicada sem pontos de referência éticos, sobretudo no que concerne ao respeito ao meio ambiente e ao trato humano na engenharia genética. No âmbito cultural, o etnocentrismo do homem branco ocidental vem sendo suplantado por um pluralismo aberto à diversidade estética.

São tendências que tendem a superar a matriz teórica do século XX. Abrem muitos caminhos para uma autêntica personalização dos indivíduos no seio social. Todavia, permanecem muitas ambiguidades em nosso panorama civilizatório.

Ainda há muito economicismo, hedonismo e relativismo moral, a globalização pode derivar para uma massificação cultural mundial a partir desses elementos e, no espectro religioso, muitos propõem uma espécie de religião humanizada, que não mira o transcendente, mas a auto-redenção do homem.

A “problemática”, por assim dizer, permanece e, no fundo, envolve, fundamentalmente, a crise sobre a verdade do homem. Durante muito tempo, acreditou-se ser o homem uma criatura livre e, ao mesmo tempo, miserável, na acepção mais genuína do termo, a depender constantemente dos influxos do transcendente, tanto horizontal quanto vertical. Hoje, o homem é supremo para si mesmo.

Como já dito, nossa tarefa é histórica e, nessa órbita, paira a sombra senhorial divina. Porém, a mesma história consiste no produto das livres decisões de cada um dos homens. Como isso se compagina, é um grande mistério e, em certa medida, lembra um pouco a relação entre os deuses homéricos e os homens: o bardo da Ilíada canta a história de deuses e homens e não histórias de deuses e histórias de homens. A nós, no bojo daquele mistério, resta apenas, como “solucionática”, fazer um uso responsável de nossa liberdade. Sem precisar correr para as montanhas. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 08/03/2017, Página A-2, Opinião.

Que é o homem? – por Pedro Ribeiro

Filosofia | 08/03/2016 | | IFE CAMPINAS

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que é o homem

“A todos os homens é permitido conhecerem a si mesmos e pensarem sensatamente”

Heráclito de Éfeso

 

Todo ser humano adulto – e este é um fato bastante natural – traz consigo certas memórias afetivas da infância: cenas muito específicas das quais se tem uma imagem uma tanto vaga, lembranças de situações vivenciadas com os pais, recordações de um jogo ou um alimento de que se gostava muito. Para um tipo um tanto melancólico e introspectivo como eu, mergulhar nessas memórias é um hábito constante, de modo que a cada dia se torna menos clara a distinção entre o que é o fato objetivo, efetivamente rememorado tal como se viveu, e o que é mera projeção, mais ou menos inconsciente, para edulcorar o passado. Seja como for, de todas as recordações pueris que guardo comigo, uma tem significado particularmente especial: trata-se da derrota de Garry Kasparov para o Deep Blue. Àquela altura, em 1997, contava eu com apenas quatro anos. Lembro, porém, como se fosse hoje, do quanto fiquei atônito ao receber aquela surpreendente notícia, anunciada em tons tão severos pelo apresentador do telejornal: aquele que é provavelmente o maior enxadrista de todos os tempos havia sido derrotado no jogo por um computador. Naturalmente, à época, eu não tinha a menor ideia do que era o xadrez. Entretanto, a confiar em minha memória (e, é claro, há uma enorme possibilidade de projeção aqui), recordo ter apreendido, em minha surpresa diante da TV, o que tornava aquele evento tão singular: um homem extraordinário havia sido vencido, naquilo que tinha de mais brilhante, por uma máquina[1].

Em tempos como os nossos, nos quais se fala tão frequentemente de inteligência artificial e em que a tecnologia impera nas relações humanas, de modo que a fronteira entre o real e o virtual se torna cada vez menos discernível, recordar o confronto Kasparov–DeepBlue parece-me uma boa maneira de começar este artigo. De fato, em sua trágica derrota para Blue, Kasparov nos mostrou o que há de mais profundo na essência humana; Kasparov nos mostrou o que é o homem. Em verdade, eu digo isso por uma razão muito simples: na série do confronto de 1997, o enxadrista russo e o computador enfrentaram-se ao todo seis vezes – em uma oportunidade, o homem venceu, em três se deu o empate e em duas ocasiões a máquina saiu vencedora. No entanto, o fato inquestionável que ultrapassa todos esses dados é um só: tanto em suas vitórias quanto em suas derrotas, apenas Kasparov estava efetivamente jogando xadrez. Com efeito, Deep Blue pode ter sido muitíssimo engenhoso e eficiente, pode mesmo ter feito jogadas absolutamente geniais, jogadas que nem mesmo o mais brilhante enxadrista poderia imaginar, entretanto, Deep Blue nunca jogou verdadeiramente uma única partida de xadrez. E o motivo é muito óbvio: do ponto de vista do computador, se assim pode-se dizer, o que se desenrolou naquele fantástico confronto de 1997 não foi uma “partida de xadrez”, mas tão somente a operação de um programa de software. Na perspectiva da máquina, tratava-se então de uma fria e indiferente sequência de bits, nada mais. O computador não ficou desapontado quando perdeu uma partida para Kasparov, tampouco feliz quando dele venceu. Aliás, de modo geral, computadores não têm estado de espírito ou desenvolvem capacidade reflexiva: não se sentem excitados quando rodam sites pornográficos, nem se questionam sobre a licitude de suas ações quando servem de meios para a realização de fraudes bancárias. Para o Deep Blue, vencer Kasparov diante do mundo inteiro, tornando-se célebre e requisitado por jornalistas, deu no mesmo que rodar o Paint para uma criança se distrair fazendo desenhos disformes. Não há, aos olhos da máquina, diferença qualitativa nenhuma entre uma operação e outra. Isto por uma razão elementar: computadores são capazes de imitar perfeitamente algumas das mais sofisticadas operações da inteligência humana, mas são inteiramente incapazes de enxergar qualquer significado naquilo que fazem. Daí porque a expressão “inteligência artificial”, quando se exige algum rigor terminológico, faz tanto sentido quanto “círculo quadrado” ou “flamenguista infeliz”. Com Kasparov, porém – todos sabemos –, a coisa é um bocado diferente.

De fato, o enxadrista russo mostrou sua superioridade em relação a Deep Blue não apenas quando dele ganhou, mas até mesmo, e talvez sobretudo, quando dele perdeu. Afinal, Kasparov sabia que perdia, mas Blue desconhecia que ganhava. Kasparov, mesmo em seu insucesso, era capaz de enxergar significado naquela realidade, e era precisamente por isso que sofria; aos olhos de Blue, fosse qual fosse o resultado, o mundo permaneceria sempre opaco, destituído de sentido. Ora, é precisamente aí que reside a singularidade da experiência humana: nós somos seres efetivamente racionais.

Naturalmente, a esta altura, qualquer sujeito, em especial um intrépido defensor do direito dos animais, poderá objetar que, se é verdade que as máquinas não têm consciência de seus atos e são, portanto, verdadeiramente irracionais, o mesmo não é válido para os outros animais que não o homem. E, então, aquilo que eu apresento aqui como apanágio exclusivo do ser humano seria, na verdade, uma dádiva comum a todos os bichos deste mundo de meu Deus. De fato, se entendermos por racionalidade a mera capacidade de se comunicar com os outros, de tomar decisões, de responder a comandos ou de realizar estimativas, então é óbvio que animais são, sem dúvida alguma, seres racionais. Qualquer sujeito que tenha um cachorro ou um gato em casa, por exemplo, poderá contar histórias fantásticas a respeito da esperteza e companheirismo de seus animais, por vezes até mesmo muito surpreendentes. Entretanto, é de algo muito mais profundo que falamos aqui. Quando velhos pensadores, séculos atrás, se dispuseram a definir o homem como um animal racional, o que eles procuravam indicar com estas palavras era algo muito mais relevante e extraordinário do que a mera sagacidade ou inteligência prática, que, é verdade, em grau maior ou menor, os outros bichos partilham conosco. O que se procurava indicar aí, em verdade, é que o homem é o único animal capaz de perscrutar sentido nas coisas que o cercam.

Com efeito, é claro que, em um sentido prosaico, animais irracionais têm consciência. Um cavalo e um leão percebem o mundo à sua volta, detectam ameaças, calculam ações. Não obstante, o fato é que, para um bicho, tal como para o Deep Blue, as coisas não têm significado: elas simplesmente são o que são. Pensemos, por exemplo, em uma casa na qual há dois cachorros que convivem há anos, e um dos dois falece. Evidentemente, em uma circunstância assim, o cãozinho sobrevivente irá ficar bastante deprimido e, eventualmente, poderá até morrer de tristeza. Ora, os cães percebem a morte e, diferente das frias máquinas que jogam xadrez, são também capazes de desenvolver sentimentos a partir das situações que vivenciam. No entanto, por mais trágica que seja a experiência da morte de um companheiro de lar, um cão jamais terá a habilidade de ultrapassar a mera dor sentida nesta experiência e enxergar um significado no que lhe aconteceu. Em suma, qualquer cachorro pode sentir uma profunda dor pela morte de um ente querido, mas nenhum cão, por mais esperto que seja, tem a capacidade de se perguntar por que existe a morte e o que ocorre após o término desta vida.

Eis aqui o ponto essencial. De fato, há um abismo gigantesco entre ter o simples poder de realizar ações práticas, mais ou menos inteligentes, e possuir a capacidade puramente teórica de questionar-se a respeito do mundo que nos cerca, procurando encontrar nele uma lógica interna e uma razão de ser. Só nós, seres humanos, somos capazes disso. Para todas as outras criaturas desta terra, como disse acima, as coisas são o que são; a realidade se impõe – dura, fria, indiferente. Para nós, ao contrário, o real é mistério, enigma, incógnita. Para nós, não é suficiente supor que as coisas se dão assim e não de outro modo. Do mais profundo de nosso ser, nós exigimos sentido, significado; nós aspiramos por perceber uma ordem no mundo, uma harmonia pré-estabelecida, uma estrutura fundante da realidade. O que separa o homem das outras criaturas, o que nos singulariza é, portanto, muito mais do que apenas um lugar um tanto mais privilegiado em um longo processo biológico evolutivo. O que possuímos de próprio é a potencialidade única de assumir perante o mundo não o comportamento indiferente das máquinas e dos objetos inanimados, tampouco a postura ingênua dos demais bichos, mas sim a atitude própria de seres que têm sede de sentido. Como bem afirmou o filósofo Blaise Pascal, “O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota d’água, bastam para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do quem o mata, porque sabe que morre e a vantagem que tem sobre ele; o universo desconhece tudo isso.”

Tal atitude inquiridora, tal capacidade de questionar-se a respeito das coisas é o cerne da experiência humana especialmente porque, ao contrário do que pensaria uma mente um tanto superficial, isto não é privilégio específico de uma classe de homens iluminados. Com efeito, é um tanto evidente que nem todos os seres humanos têm vocação para se tornarem filósofos ou místicos. É claro que nem todos levam nossa capacidade de exigir sentido da realidade que nos cerca até às últimas consequências. No entanto, não há ser humano que deste poder não participe, em maior ou menor grau. Não há homem ou mulher adultos, por certo, que não tenham se questionado, ao menos uma vez na vida, a respeito da origem do mundo, da existência de Deus ou do sentido da vida. Questões deste tipo atordoam tão profundamente a alma humana que não há meios de delas fugirmos senão pelo esquecimento de nós mesmos e de nossa natureza. Como já se disse mais de uma vez, o ser humano é um animal metafísico e todo homem tem naturalmente em si o desejo de conhecer.

Aliás, se examinamos estes fatos elementares de um modo mais cuidadoso, somos imediatamente levados a crer que há, efetivamente, no interior de cada homem, um órgão especial, uma faculdade particular responsável por esta capacidade que temos de pôr o mundo diante de nós como incógnita. Tal capacidade, para ser honesto, muito dificilmente poderia ser reduzida ao nível do orgânico ou mesmo do físico – aqueles que o tentam fazer, é porque desconhecem a si mesmos. Quanto ao seu nome, pode-se chamá-la intelecto, pensamento, espírito. O fato é que, na medida em que é responsável por operar aquilo que há de mais fundamental em nós, aquilo que nos distingue de todos os outros entes que conosco transitam por este mundo, o espírito é muito mais do que um mero órgão de que dispomos; ele é nosso próprio eu. E é por isso, precisamente, que, muito antes de qualquer reflexão elaborada ou leitura de textos, a certeza que temos da existência de nosso espírito se impõe como uma realidade inquebrantável e primeira. A todo instante, por mais silencioso que o mundo esteja ao nosso redor, somos capazes de ouvir dentro de nós aquela voz que nos orienta, que conosco mesmo dialoga, que não se cala jamais. Há dentro de cada homem um eixo existencial que constitui a sua interioridade e que o permite exigir, tanto de si mesmo quanto daquilo que percebe ao seu redor, sentido, significado. Quantas vezes não nos pegamos discutindo intensamente conosco mesmos, ao mesmo tempo em que o silêncio sepulcral permanece na realidade exterior! Quantas vezes não guardamos conosco segredos, preconceitos, cismas e sandices que de nós mesmos só nós conhecemos! Quantas vezes não encenamos, conforme o ambiente, papéis sociais e temperamentos os mais diversos, mantendo somente para nossa consciência interna a nossa verdadeira singularidade! Quantas vezes nãos nos apanhamos fugindo de nós mesmos! Já animais e Deep Blue’s não têm vida interior. Por isso não pensam. Por isso não vêem o mundo como incógnita. Por isso, aos seus olhos, as coisas apenas são o que são.

Neste ponto, a tradição bíblica, em toda a sua riqueza particular, é bastante pertinente. Com efeito, ao fazerem alusão a este eixo existencial a que me refiro, a este recesso profundo da alma que geme dentro de nós, os autores sacros não usavam nem o termo espírito, nem o termo intelecto, nem o termo alma, mas sim a palavra “coração” . Em verdade, para os judeus, o coração não era, como para nós, um mero órgão físico do corpo ou mesmo, simbolicamente, o signo da afetividade e da sede dos sentimentos. Muito mais do que isso, o coração era o eu, o núcleo da personalidade, o centro de decisão onde o homem, do mais profundo de seu ser, para além de todos os ritos exteriores e papéis sociais, resolvia verdadeiramente unir-se ou não a Deus. Daí porque o Senhor é aquele que sonda os corações (I Samuel 16,7). Mais: sendo o coração aquilo que há de mais profundo no homem, é ele também o centro de sua vida moral. É aí, pois, que se realiza, no fundo de cada ser humano, a fatídica luta entre o bem e o mal, entre a retidão e o vício. Ora, na medida em que se tem isso em vista é que se entende o precioso conselho do sábio: “Guarda teu coração acima de todas as outras coisas, porque dele brotam todas as fontes da vida” (Provérbios 4,23). Assim também se entendem as duras palavras do Cristo: “Aquilo que sai da boca provém do coração, e é isso o que mancha o homem. Porque é do coração que provêm os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as impurezas, os furtos, os falsos testemunhos, as calúnias.” (Mateus 15,18b-19)

Percebe-se, neste corte, um dado que é essencial ao conhecimento de nós mesmos: quando se diz que o homem é um animal racional, não se está apenas afirmando que ele possui certas capacidades ou poderes específicos. O que se está a dizer que é o homem é um tipo de ser absolutamente diferenciado. Isto porque a racionalidade não é uma habilidade abstrata ou meramente formal. Ser racional não significa ser um computador orgânico; significa ter vida interior; significa ser capaz de ensimesmar-se e então realizar a fatídica pergunta: “Por quê?”. Em virtude da natureza mais íntima de nosso ser, cada um de nós não é apenas uma coisa, mas um eu; não apenas um algo, mas um alguém. Em suma, o fato de sermos seres racionais faz com que sejamos não apenas objetos, mas pessoas. E é por isso que é sempre tão perigoso quando nós preferimos nos embrutecer e nos entregarmos ao que há de mais animalesco e irracional. Com isso, não ferimos apenas talvez a normas moralistas ou padrões sociais de comportamento: ferimos a nós mesmos, nos despersonalizamos, nos coisificamos. É no fundo de nossas almas que se decide e se constitui o nosso eu. É no recesso oculto de nosso espírito, invisível a todo outro espírito humano, que nós construímos efetivamente nossa personalidade: ao elaborar nossos projetos de vida, ao estabelecer nossas prioridades existenciais, ao fugir das questões de consciência que nos afligem, ao perfazer as intenções que moldam desde dentro as ações que tomamos. Aí apenas é que realmente demonstramos possuir o precioso dom da liberdade. É nisto e tão-somente nisto que consiste a imagem de Deus presente em nós de que fala a Escritura (Gênesis 1,27). Esta é a centelha divina em nós, aquilo porque nossa alma se torna um espelho do Criador, que é Espírito e tem Coração também. Eis a luz do Verbo que ilumina todo homem (João 1,9).

Todas essas que enunciei aqui são, evidentemente, verdades bastante elementares, proclamadas por sobre os telhados desde tempos inauditos, mas que andam incompreensivelmente esquecidas em nossa era. Verdades que se apreendem observando com cuidado a trágica derrota de Garry Kasparov.

Pedro Ribeiro é graduado em filosofia pela UERJ e trabalha como professor da disciplina nos âmbitos do Ensino Médio e de pré-vestibular.

NOTA:

[1] Para aqueles que quiserem conhecer os detalhes do confrontohttp://oglobo.globo.com/sociedade/tecnologia/revelado-foi-erro-no-computador-deep-blue-da-ibm-que-fez-vencer-kasparov-em-1997-14349363. Aliás, algo que reforçou para mim mesmo o caráter em boa medida projetivo da lembrança que tenho foi a rápida pesquisa que tive de fazer para lembrar detalhes do evento, tais como o seu ano de ocorrência, por exemplo. É que, nesse processo de pesquisa, descobri que os fatos não haviam ocorrido exatamente como deles me lembrava. De todo modo, como a história permanece elucidativa para o que me proponho aqui, que seja.

Artigo publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta,  em 22 de Janeiro de 2016.

Trabalho de homem e mulher

Opinião Pública | 29/07/2015 | | IFE CAMPINAS

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CorreioPopular-Gama-HomemEMulher-Ilustração

Imagem: reprodução de ilustração de Italo para o artigo impresso (Página A2 – Opinião).

 

No dia 15 de junho, o Correio noticiou que a tenente-coronel Carla Danielle Basson Niglia é a primeira mulher na história a comandar um batalhão na cidade. 600 homens estarão sob o seu comando. Essa é uma grande notícia que mostra um aspecto positivo das conquistas femininas ao longo das últimas décadas. É bom viver em uma época na qual as pessoas podem seguir sua vocação, escolher um trabalho no qual contribuirão de forma eficaz para o desenvolvimento da sociedade.

Como Campinas passou por uma grande discussão acerca da adoção ou não da ideologia de gênero nos currículos das escolas públicas, fiquei intrigado com uma questão: afinal, há trabalhos que são mais masculinos do que femininos?

Eu pensava que não existiam mulheres coletoras de lixo, que ficavam atrás do caminhão, para ser mais específico. Mas não é que há? Em Belo Horizonte, uma equipe feminina foi montada no fim do ano passado para a prática do serviço. Uma delas, Sinália Ramos, declarou: “A gente não deixa de ser mulher. Estamos sempre de batom e brinco.”

Mas analisemos alguns dados que podem iluminar um pouco a questão. Na Psicologia, segundo dados de 2012 do Conselho Federal de Psicologia, elas são 90%. Esse quadro está inalterado desde 1988. Já na Engenharia Civil, de acordo com o Confea Crea, elas somam 18%. Na Enfermagem, o quadro também pouco mudou em décadas: desde 1980, o percentual de homens na profissão subiu de 5,9 para 7,9. Na educação, especialmente nos anos iniciais, elas são maioria, acima de 80%. Mulheres nutricionistas: 96,5%. Bombeiros, 8,8%.

Essa incursão por dados prova apenas que não há profissões de homem ou de mulher, como um título um tanto quanto sensacionalista pode indicar. O que há são aptidões, vocações. Em uma sociedade na qual as diferenças entre homens e mulheres são levadas em consideração, como a Noruega, por exemplo, cada pessoa escolhe o que melhor lhe convém. Nada impede que um homem seja psicólogo, nada impede que uma mulher seja física. Mas por que há tão poucos psicólogos e tão poucas físicas?

Os adeptos da ideologia de gênero oferecem como resposta que esse fato se deve à sociedade machista e patriarcal. Segundo eles, desde o instante em que nascemos, somos fabricados para sermos homens ou mulheres, de acordo com uma concepção opressora que quer rotular cada um de nós. O fato biológico, para eles, é irrelevante.

Ora, quando se joga fora a chave que abriria uma porta fechada, o que resta? Explicações mais ou menos acertadas ou, na maioria dos casos, mais ou menos estapafúrdias sobre o fato da porta estar nessas condições. É isso o que os propositores da ideologia de gênero fazem.

Ninguém é obrigado a seguir essa ou aquela profissão. Contudo, o fato de muito mais homens escolherem algumas e muito mais mulheres escolherem outras tem uma explicação. E ela reside no cérebro.

As diferenças são muitas. Uma delas é o fato de as mulheres serem muito superiores aos homens em ler expressões faciais. Simon Baron Cohen, professor de Cambridge, e grande especialista em autismo, descobriu que as meninas, desde o primeiro dia de vida, são mais empáticas que os meninos. Esse fato não tem nada a ver com a criação, mas com hormônios. Além disso, a mente masculina é atraída mais facilmente por sistemas e para entender como eles funcionam. Já o cérebro feminino presta mais atenção às emoções, afirma Cohen.

Isso não significa que todos os homens tenham um cérebro masculino e que todas as mulheres possuam um feminino. Mas essa tendência é inegável e já foi bastante estudada. Não há dúvidas de que devemos caminhar rumo a uma sociedade na qual cada pessoa siga a profissão que desejar e não seja alvo de discriminação por isso.

Mas, para citar um exemplo, como professor de Redação não posso desconsiderar o fato, por si só evidente, de que a maioria das meninas escreve melhor do que os meninos. Muitas vezes, peço que as meninas escrevam menos linhas. Os meninos, mais. É preciso ter paciência com eles, pois o cérebro masculino amadurece mais tarde. Desconsiderar essas diferenças não é um avanço. É uma injustiça.

Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, jornalista, publicitário e membro do IFE-Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular em 28 de Julho de 2015, Página A2 – Opinião.

Não nascemos prontos – A educação, o homem, sua dimensão ética e seus reflexos no ensino jurídico

Sem Categoria | 30/12/2014 | |

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arcadas3

Mas a educação não é um adestramento animal. A educação no homem é um despertar humano. 

(MARITAIN, 1959:36)

O homem supera infinitamente o homem. 

(PASCAL, 2003:197)

Muito antes de sermos detentores desta ou daquela nacionalidade, ou mesmo de ambas, somos homens. O profundo dizer do poeta pagão Píndaro recorda-nos que nosso primeiro dever é o de nos tornarmos aquilo que somos. Se isso corresponde à verdade, logo, nada é mais importante do que nos tornarmos homens. Essa bela e difícil tarefa é assumida pela educação: formar o homem que está por trás de um homem do sertão, da universidade, do Ocidente, do Oriente, da metrópole europeia, da aldeia sub-saariana ou do clã de esquimós do Polo Norte. Hoje ou amanhã.

Saviani (1991:21) afirma que

o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para se atingir esse objetivo.

 Do ponto de vista lógico, a afirmação de nosso poeta seria uma contradição, porque ninguém pode vir a ser o que já é. Se já sou um ser humano, não posso vir a sê-lo. Goergen (2005:61) elucida essa aparente contradição:

Na verdade, a percepção refinada do poeta traduz algo mais profundo, algo que ultrapassa o mero esquematismo lógico. Mesmo que sejamos seres humanos desde o nascimento, podemos admitir, sem contradição, que aos nascermos ainda não somos seres humanos em plenitude, pois, não temos uma identidade. Somos apenas seres abertos ao vir-a-ser humano. Este era o conselho do poeta: construa sua identidade, ou seja, torna-te de fato o que já és como possibilidade: ser humano. O que torna o ser humano verdadeiramente humano, ou seja, em plenitude, não é o fato de nascer filho de humanos, mas a construção de sua identidade. Por isso, faz muito sentido o “torna-te o que és” do poeta. Suas palavras escondem, ainda, um outro sentido igualmente importante: Píndaro diz “torna-te”, e não “permita que façam de você” um ser humano. Vale dizer que tornar-se um ser humano implica construir a própria identidade que é tarefa de cada um. O ser humano é artífice, escultor de si mesmo. Tal processo ocorre por conta do duplo movimento de socialização e individuação. Pela socialização o ser humano adapta-se ao meio e torna-se um ser pertencente a uma cultura. Pela individuação ele constrói a sua própria individualidade, tornando-se único, distinto de todos os demais no interior da mesma cultura.

 O fenômeno da educação decorre do fato de que o ser humano surge para a vida numa situação de desamparo e, por isso, está necessariamente referido a outro. Existem seres vivos que são autônomos desde os primeiros momentos de sua existência, o que pode ser observado fartamente na natureza animal. Ao contrário, um ser humano recém-nascido demanda uma série de cuidados para poder sobreviver e levar adiante seu próprio desenvolvimento até a maturidade.

Surge assim uma relação entre uma nova vida, que ainda não tem a consciência de sua própria existência, e uma outra em andamento, representada pelos pais, educadores, mestres e docentes, cuja função é a de facilitar o advento das capacidades que resultem necessárias das circunstâncias vitais e históricas, as quais estão delimitadas por um arco de tempo que, normalmente, encerra-se no momento em que aquela nova vida alcança sua independência existencial.

Essa independência costuma surgir com a conquista de uma profissão. Mesmo assim, o processo educativo não cessa, porque o elemento de potencialidade interior no ser humano é essencialmente maior do que nos animais irracionais: nestes seres, os limites de possibilidade e de realidade alcançam rapidamente sua descoberta, causando a impressão de já estarem predispostos em sua própria natureza. No ser humano, a situação é completamente diversa[1].

Se considerarmos que as possibilidades de um indivíduo concretamente considerado vão além de sua realidade, existem graduações imprevisíveis em cada indivíduo. Nesse processo de formação humana, não existe um vínculo unilateral, pois, na medida em que o educando incorpora os elementos pedagógicos que lhes são transmitidos, o educador ensina a si próprio, toma consciência de suas próprias carências, encontra novas possibilidades de ensino e incorpora novas experiências educativas.

Por conseguinte, esse processo pedagógico – pelo qual se forma o ser humano, conduzindo-o à sua realização – é multidimensional, porquanto nele concorrem forças, atitudes e posturas de variada natureza, a seguir analisadas. Em primeiro lugar, há o desenvolvimento orgânico – a evolução – do educando. O ser humano nasce como uma realidade evolutiva a partir de sua forma originária, a partir da qual acrescenta possibilidades que, no transcurso da vida, realizam-se mediante tendências intrínsecas coordenadas e que, muitas vezes, permanecem latentes como uma espécie de devir qualificado.

O educador conduz o educando ao desenvolvimento de sua vida material, mas, sobretudo, anímica: a aptidão de pensar, de saber valorar, de tomar partido, de decidir, de atuar e de referir-se ao outro. A tarefa do educador é justamente potencializar esse impulso interior, incentivando-o, dirigindo-o e retificando-o quando necessário, até que alcance seus limites.

Guardini (2000:690) justifica essa limitação ao asseverar que

 em cada ser humano, a capacidade de evolução é limitada. Não somente quanto à dinâmica, mas também no que se refere às determinações qualitativas. Os limites radicam naquilo que chamamos de dotes, quero dizer, na especial estrutura correspondente à individualidade (…). Existem, desde logo, diferenças muito importantes, pois determinados seres humanos podem manejar facilmente coisas e ferramentas, para as quais outros são menos hábeis (…). Estas diferenças alcançam uma importância decisiva na eleição da profissão e no modo em que o indivíduo encontra seu lugar no tecido das relações sociais (…). Um homem que não goste de música nunca poderá chegar a uma real compreensão de uma sinfonia ou exercer uma criatividade musical; o mesmo se dá num homem frio por essência, que não chegará a desfrutar grandes vivências afetivas.

 Em segundo lugar, o processo pedagógico é, também, biunívoco: sua direção não é só de dentro para fora, mas de fora para dentro, isto é, o devir do educando deve entranhar-se no entorno existencial concretamente dado – a inserção –, porque o homem não é um leão ou uma águia. É um animal cultural e histórico: vive num determinado caldo cultural e civilizacional e num certo período temporal, sendo condicionado por tais fatores. Por isso, nós somos filhos de nosso tempo.

Nessa perspectiva, a educação tem um peso importante. Maritain (1968:27) aponta que

 por ser dotado de um poder de conhecimento ilimitado e que deve no entanto avançar gradativamente, o homem não pode progredir na sua vida específica que lhe é própria, ao mesmo tempo intelectual e moralmente, se não for auxiliado pela experiência coletiva que as gerações precedentes acumularam e conservaram, e por uma transmissão regular dos conhecimentos adquiridos. A fim de atingir essa liberdade, com a qual se determina e na qual foi feito, necessita de uma disciplina e de uma tradição que, simultaneamente, pesarão sobre ele e o fortificarão de modo a torná-lo apto a lutar contra elas, o que enriquecerá a própria tradição, tradição esta que, uma vez enriquecida, tornará possível novas lutas e assim por diante.

 O processo educativo não reside somente no movimento dos impulsos naturais para o exterior. Igualmente relevante é a necessidade do educando de se situar entre as coisas e os fenômenos que estão ao seu entorno, ambos historicamente localizados no tempo e no espaço. Nessa linha de raciocínio, o homem é um “ser-aí”, porque ele não é um ente cuja natureza esteja assepticamente isolada dos demais ou das coisas e fenômenos vitais.

Ele é circundado por um mundo composto por uma natureza material e por um rol de interesses, preocupações, desejos, afetos, conhecimentos e saberes, nos quais sempre está imerso. Assim, o homem sempre está colocado numa situação histórico-temporal determinada, caracterizando-se por ser um ser-no-mundo, onde deve desenvolver sua essência, ou seja, sua natureza, por meio de uma postura de abertura para fora de si.

As diversas formas de apreensão do mundo circundante estão determinadas não só pelas necessidades do educando, mas também pela natureza daquelas coisas e fenômenos. Se as necessidades já contêm em si sua determinação específica (por exemplo, a escrita e a leitura), as conquistas serão condicionadas pela realidade do entorno.

Em terceiro lugar, ao lado da evolução e da inserção, radica o encontro, o momento em que o educando relaciona-se com outros semelhantes, coisas e fenômenos. Esses dados da realidade não se entrelaçam com ele a partir de uma ordem pré-determinada e absolutamente incondicionada, como o liame religioso que havia entre os gregos e seus deuses, mas se põem à sua frente, em virtude da recíproca abertura desses dados para ele. Como consequência, o educando passa a conhecer profundamente uma área do saber, um conceito até então pouco esclarecido ou uma nova forma de abordagem intelectual de um assunto complexo.

No encontro, está subjacente uma atitude aberta ao mundo e à imprevisibilidade[2]. Compreender o novo, enfrentar aquilo que surge e aprender a dar forma ao dado não planejado. É aqui onde jaz a mais acabada expressão da amplitude de movimento dos impulsos naturais do educando e, por ser cada um uma individualidade irrepetível, essa capacidade de encontro não se dá do mesmo modo e na mesma intensidade. Se, na inserção, o educando é um “ser-aí”, no encontro, ele é um “vir-a-ser-aí”.

Julián Marías (1971:36-37) exprime bem esse ser e “vir-a-ser-aí” humano, ao dizer que

 esse alguém corporal ou pessoa, não somente acontece, como também está unido à futurição, a essa tensão para frente – ou pretensão – que é a vida. Começamos agora a vislumbrar o sentido de prosópon como “frente” ou “fachada” ou “dianteira”; é importante reter esse caráter frontal da pessoa, pelo fato de ser a vida uma operação que faz para frente. Esse “alguém” é futuriço; isto é, presente e real, porém voltado para o futuro, para ele orientado, projetado para ele; para o futuro “dá” a face em que a pessoa se denuncia e se manifesta, e por isso é a face, entre as partes do corpo, estritamente pessoal, aquela em que a pessoa se contrai e se patenteia, se expressa. Porém essa condição futuriça da pessoa envolve um momento capital: é parcialmente irreal, já que o futuro não é, mas será. No rosto ou pessoa denuncia-se agora – na realidade presente – o que será. Entendemos por pessoa uma realidade que não é só real. Uma pessoa “dada” deixaria de o ser. O caráter programático, projetivo, não é algo que meramente aconteça à pessoa, mas que a constitui. A pessoa não somente “está aí”, nunca pode como tal só estar aí, está vindo.

Quando dizemos que “se está fazendo”, facilmente podemos entender mal: ou no sentido de a pessoa ainda não estar feita, ou de que se procura seu “resultado”. Não é isso: a pessoa já é, está feita como pessoa, e, por outro lado, não interessa seu “acabamento” ou resultado. Seu ser atual é se estar fazendo, ou melhor, estar vindo. Toda relação estritamente pessoal – amizade, amor – o prova: nela o “estar” é um “continuar estando”, feito de duração e primariamente de futuro, um constante estar indo e vindo; sobretudo, um “ir a estar” (…).

É claro que isso vale para mim mesmo. Igual caráter programático, durativo e eveniente tem minha própria posse, em virtude da qual o pronome pessoal – mim, eu – é possessivo – meu –. O que inverte a caracterização ontológica tradicional. Longe de haver autarquia ou suficiência, a pessoa está definida pela indigência, pela carência, pela irrealidade da antecipação, estribada numa realidade que espera.

Eu sou uma pessoa, mas “o eu” não é pessoa. “Eu” é o nome que damos a essa condição programática e eveniente. Quando digo “eu”, me “preparo” ou “me disponho” a ser. Para o homem, ser é preparar-se a ser, dispor-se a ser, e por isso consiste em disposição e disponibilidade. Quando dizemos “eu”, não se trata de um simples ponto ou centro de circunstância, mas sim que esta é minha: por ser eu mesmo, posso ter algo meu. Na pessoa, há mesmidade, mas não identidade: sou eu mesmo, porém nunca o mesmo. É preciso, porém, acrescentar algo que disse muitas vezes, mas que se costuma esquecer: o “eu” passado não é eu, mas circunstância com a qual me encontro; isto é, com a que eu – projetivo e futuriço – me encontro quando vou viver. E não bastaria a mera “sucessão” para que houvesse mesmidade: falta essa antecipação de mim mesmo, esse ser o que não sou, a futurição ou carência intrínseca. O homem pode possuir-se ao longo de toda sua vida e ser o mesmo, porque não se possui integralmente em nenhum momento dela.

Existem inclinações no interior do educando que atribuem ao encontro uma rigidez relacional. Não são aptas a interpretar o imponderável emergente como um novo, porque o reduzem imediatamente a um esquema já existente, tanto teórico como prático. Não se preocupam em, antes, esgotar a investigação do novo, pois o status quo do esquema envolvido com o elemento imprevisível não pode ser alterado ou mesmo visto sob outra perspectiva, sem que se macule uma essência já consolidada pelo estado da arte.

Indubitavelmente, essa postura conservadora também pode ser portadora de valores (perenes ou não), como a tradição e a ordem; todavia, falta o fluir caudaloso do novo (que necessariamente não é sinônimo de ruptura ou de contradição) e, com ele, um importante elemento que se denomina realidade, o qual abarca evolução, inserção e encontro: um dado homem aqui e agora, nessas circunstâncias vitais, com esses limites históricos e sociais e aberto ao projeto de si mesmo.

Em suma, o encontro representa aprendizado constante, abertura ao imprevisto, espírito livre de investigação, perspectiva para distinguir o comum do peculiar, capacidade de reflexão e de autocrítica, convicção para bem decidir e, por trás disso, uma sensibilidade para o sentido e o alcance do próprio acontecimento decorrente do encontro. Tanto para ordená-lo no seio do já conhecido como também para tomar uma posição diante do novo enquanto tal.

Nunes (2005:101-103) assevera, nessa linha de raciocínio, que

 a educação, quer em seu aspecto institucional e jurídico, em suas bases filosóficas e éticas, quer em suas determinações políticas e constituições formais, sempre efetiva, isto é, torna aberta e presente uma consequente expressão de cultura e poder. Assim, pois, ao investigar as redes de poderes que sustentam nossa vida, as experiências que internalizam símbolos e determinam ou condicionam condutas, estamos exorcizando as formas de um poder disciplinar e autoritário, para propor novas formas de poder e de organização (…). (…) O ser humano produz uma realidade objetiva que passa a ser portadora de características humanas, assumindo identidades e características socioculturais, acumulando a atividade de gerações de outros seres humanos. Esse processo social institucionaliza-se como forma de apropriação, agora não apenas como apropriação da natureza, isto é, apropriação das objetivações do gênero humano, historicamente acumulado por conquistas, experiências e processos distintos no tempo e espaço. No campo da ética isso é ainda mais patente, pois as apropriações da identidade e das significações das condutas morais são nada menos que a objetivação coletiva, cultural e civilizatória, da marcha das sociedades. O homem, ao produzir os meios para a satisfação de suas necessidades básicas de existência, ao produzir uma realidade humanizada pela sua atividade, humaniza-se a si próprio. Trata-se, como dissemos anteriormente, da dialética entre a humanização da natureza e a hominização de si mesmo. Constitui, portanto, em seu processo de fazer-se homem, cada pessoa, uma realidade humanizada tanto objetiva como subjetivamente. Ao apropriar-se da natureza, transformando-a para satisfazer suas necessidades, objetiva-se a si próprio como subjetividade única, nessa relação dinâmica, nessa transformação prática de si. Por sua vez, essa atividade humana objetivada passa a ser ela também objeto de apropriação pelos demais homens, isto é, essas materializações passam a responder àquilo que de humano cada ser humano criou, apropriou-se, assumiu e superou em sua idiossincrática situação de constituinte e constituído, criatura e criador da cultura humana. Tal apropriação gera nele necessidades humanas de novo tipo, que exigem nova atividade, num processo sem fim.

 A tarefa educativa, assim entendida, orienta o educando para uma postura em que se dá concomitante valor para os fatores do risco e da experiência, sendo que a modulação de um e de outro será estabelecida pela realidade pedagógica concretamente considerada. Essa atitude dispõe o educando para a originalidade do acontecimento, para a liberdade vital e para a amplitude da existência, lapidando a mais relevante dimensão humana: a dimensão espiritual, onde reside o motor que leva todo homem a naturalmente desejar o conhecimento (ARISTÓTELES, 2006:43)[3].

De fato, para bem se compreender a tarefa educativa, é imperioso, também, assimilar com clareza justamente o protagonista dessa tarefa, ou seja, o homem: quem é ele? É um problema difícil, em razão da complexidade de nosso ser, de nosso virtuoso dinamismo, de nossas mais elevadas aspirações, mas também de nossos constantes retrocessos, de nossa potencial baixeza e de nossa omnipresente aptidão para o mal.

Todos os filósofos, desde Sócrates, em algum momento, debruçaram-se sobre a questão do homem e, independentemente da resposta alcançada, há um consenso em se atribuir ao estudo do homem uma relevância capital. Tomás de Aquino, citado por Mondin (2008:22), já advertia que “conhecer a alma humana é algo extremamente difícil e só se chega lá por meio de um raciocínio que procede dos objetos e se dirige para os atos e dos atos para as faculdades”.

Scheler (2007:173) ressalta que

 em certo sentido todos os problemas fundamentais da filosofia podem reconduzir-se à questão seguinte: que é o homem e que lugar e posição metafísica ele ocupa dentro do ser, do mundo, de Deus. Se há um problema filosófico cuja solução é requerida com urgência pela nossa época, este problema é o da antropologia filosófica. Entendo por isso uma ciência fundamental acerca da essência e da estrutura ética do homem; da sua relação com os reinos da natureza (minerais, plantas e animais) e com o princípio de todas as coisas; da sua origem essencial metafísica e ao seu início físico, psíquico e espiritual no mundo; das forças e potências que agem sobre ele e aquelas sobre as quais ele age; das direções e das leis fundamentais do seu desenvolvimento biológico, psíquico, espiritual e social, consideradas nas suas possibilidades e realidades essenciais. Os problemas da relação entre alma e corpo (entre psíquico e físico) e a relação entre o espírito e vida estão compreendidos em tal antropologia, somente a qual poderia dar um válido fundamento de natureza filosófica e, juntamente, finalidades determinadas e seguras à pesquisa de todas as ciências que têm por objeto o homem.

 Heidegger (1953:28) acentua a dimensão do problema ao sentenciar que

 nenhuma época teve noções tão variadas e numerosas sobre o homem como a atual. Nenhuma época conseguiu, como a nossa, apresentar seu conhecimento acerca do homem de modo tão eficaz e fascinante, nem comunicá-lo de modo tão fácil e rápido. Mas também é verdade que nenhuma época soube menos que a nossa o que é o homem. Nunca o homem assumiu um aspecto tão problemático como atualmente.

 O estudo do homem passa pelo campo da antropologia filosófica. O método da antropologia filosófica, segundo acreditamos, distingue-se em duas fases complementares: a fenomenológica e a transcendental[4]. Na primeira, são recolhidos todos os dados relativos à essência do homem e, na segunda, tenciona-se revelar o significado último desses dados, conferindo-lhes alcance e sentido.

Em suma, é uma abordagem, no seio de suas fases complementares, que se move vertical e indutivamente, dos fenômenos às suas causas ou às últimas razões, as quais justificam seus modos de ser e de agir, inferindo as condições que os tornam possíveis.  E essa abordagem permite-nos afirmar que o homem, pois, é dotado de corpo e alma. Veja-se.

O corpo é uma realidade física e material, dotado de uma série de propriedades (sistêmico, biologicamente intelectivo, não especializado, pouco instintivo e vertical) e que porta uma somaticidade que, se por um lado, está exposta à corrupção e a um fim, por outro, é cheia de consciência e aberta no ser. É um fenômeno, ou seja, uma manifestação de algo que a ultrapassa, de uma realidade mais profunda e vital, que a permeabiliza e a transforma totalmente, atendendo pelo nome de alma.

A alma corresponde à essa realidade íntima e orgânica que ela, ao mesmo tempo, esconde e revela por meio da somaticidade humana. Afinal, é no corpo que vemos a bondade ou a malícia, a magnanimidade ou a mediocridade e a beleza e a fealdade de um homem. O corpo subjaz à alma, que desempenha o papel de forma e que possui o ser diretamente, isto é, tem seu próprio ato de ser e dele faz participar o corpo. Existe uma densa e substancial unidade entre corpo e alma, porque é “único seu ato de ser” (AQUINO, 2005: 41)[5].

Em outras palavras, o homem tem três dimensões: uma matéria orgânica, um princípio vital que organiza e que também vivifica essa matéria. A matéria orgânica é o corpo. O princípio vital, aquele pelo qual um ser é organizado e vivificado, é a alma, o que o faz ser e ser como é. Por isso, é a forma do corpo, aquilo que faz movê-lo e comportar-se de um determinado modo. A tradição filosófica clássica definia com clareza essa relação unitária entre corpo e alma: anima forma corporis (a alma é a forma do corpo). E isso corresponde à realidade do ser humano, porquanto aquilo que acontece na alma tem estreita relação com o corpo e vice-versa: a saúde chama a alegria; a depressão, a tristeza; o pessimismo, a inação, por exemplo[6].

Considerada a dimensão unitária do ser do homem, composta por corpo e alma, a educação, nas perspectivas da evolução, da inserção e do encontro, acaba por fomentar a direção de si mesmo e a possibilitar o alcance da harmonia entre corpo e alma no mundo real[7]. Isso implica afirmar que a educação é uma arte, no sentido clássico, cuja finalidade não se resume à mera transmissão de um puro conhecimento teórico[8], mas, sobretudo, de modelos e valores que guiem o conhecimento, a reflexão e a ação do educando, aprimorando-o nas excelências que podem bem reger a razão teórica e a razão prática[9].

Assim, educar não é apenas um saber teórico: é, sobretudo, um saber prático[10], visto que consiste em ensinar ao educando como agir e, no caso do ensino jurídico, como atuar na defesa dos interesses de uma pessoa, de uma instituição, de uma empresa, de uma sociedade; como proceder no reconhecimento espontâneo e bilateral daqueles interesses; e, no caso de uma pretensão resistida, sob o ângulo do titular da distribuição da justiça, o magistrado, como obrar segundo o justo concreto no seio daquela pretensão.

No caso do ensino jurídico, existe uma profunda cisão entre razão teórica e razão prática, como se esse dualismo existisse efetivamente na realidade profissional. Falta ao ensino jurídico a necessidade de se conferir para ambas razões um sentido humano por intermédio de uma visão global e harmônica dos vários campos segmentados da ciência do Direito.

A chave para a solução desse problema apoia-se na personalização da relação entre educando e conhecimento jurídico transmitido pelo professor, a fim de se evitar a realidade dominante nos bancos escolares: o monótono discurso repetitivo das aulas expositivas, do lado docente, e a passividade de copiadores profissionais de anotações de aula, aliada à ausência de reflexão, a que tantos reduzem o conteúdo de sua formação profissional, do lado discente.

Mas não é só. No caso do ensino do Direito, por se tratar de um saber eminentemente prático, somado ao fato de que, como dissemos acima, ser a educação, de per se, um saber igualmente prático e, também, em ambos os casos, haver o envolvimento de um agir dotado de bilateralidade, é de extrema importância que a ética seja a seiva da cena pedagógica, a fim de que as tecnicalidades do direito a ela não se sobreponham, de molde a reduzir o direito a um mero joguete de interesses dos titulares de um poder político ou econômico, à ideia de uma simples convenção entre seus protagonistas sociais[11] ou à singela expressão de tendências naturais contra os abusos da legalidade positiva.

E, nesse diapasão, será necessária uma metodologia capaz de fornecer uma ferramenta pedagógica dotada de notável fecundidade ética na consecução de uma ideia de justiça que impeça tais reducionismos e de uma noção de Direito como saber prudencial e não estritamente científico.

No que toca ao aspecto ético, convém lembrar que o homem está inserido numa ordem do ser de cunho teleológico, na qual todos os entes naturalmente tendem para o fim que lhes é próprio. Entre as causas que constituem todos os entes, a mais relevante é a causa final ou o bem, isto é, “aquilo para o qual todas as coisas tendem[12]” (ARISTÓTELES, 2009:17). O bem é uma realidade metafísica (AGOSTINHO, 1958:121)[13]. Segundo Garcia Hoz (1988:41), o bem

 tem, principalmente, um sentido moral na medida em que o bem indica o que corresponde à natureza humana e, consequentemente, é objeto de tendências naturais do homem. De certa forma, poderíamos considerar que a ideia metafísica de bem corresponde à sua consideração objetiva, ôntica, enquanto o conceito moral implica na sua referência ao homem. Se aplicamos estas ideias à atividade humana, exprimida através de obras, poderemos distinguir entre o fazer, a ação e o resultado.

 À luz desse postulado metafísico, segundo o qual o bem de um ente corresponde ao seu fim (telos), a cogitação aristotélica desloca-se para telos da vida do homem. Para Aristóteles, o fim ou o bem supremo da existência humana é a felicidade (eudaimonia), porque é o único bem buscado por si mesmo, consistente na vida plenamente realizada segundo a reta razão (orthos logos), telos para o qual o homem deve convergir seus impulsos e instintos naturais, orientados sempre pela razão, em prol do cultivo das virtudes ou excelências que aprimoram a dimensão moral do homem.

A ética aristotélica é teleológica, porque tudo aquilo que colabora para o alcance do fim do homem deve ser realizado, evitando-se, como consequência, tudo aquilo que o impede. Esse fim é objetivo, está inscrito na ordem do ser, determina o bem moral e não pode ser modificado segundo o arbítrio do sujeito, no afã de estabelecer uma outra ordem, antítese de ideia contemporânea de autonomia moral. Esse lastro metafísico da ética aristotélica deve ficar bem acentuado, pois o papel da prudência (a reta razão), conforme será abordado no capítulo específico, não consiste em fundar o bem moral, mas descobri-lo na realidade das circunstâncias específicas e concretas de cada ação.

O bem moral, em cada situação singular, está no seio de uma ação virtuosa. Para Aristóteles, no agir humano, pode existir um excesso, uma falta e um justo meio: numa circunstância de perigo iminente, posso ser temerário (excesso), medroso (falta) ou corajoso (justo meio). Nessa situação, a ação será virtuosa ou excelente se atingir o justo meio entre os extremos, mediada pela reta razão, e, assim, serei conduzido, de ação virtuosa em ação virtuosa, nessa e naquela outra circunstância, para meu fim último, a felicidade.

O justo meio, por sua vez, não é fruto de uma equação algébrica, mas (ARISTÓTELES 2006:48) “consiste em fazer o que se deve, quando se deve, nas circunstâncias em que se deve, às pessoas a quem se deve, pelo fim pelo qual se deve e como se deve[14]”. Sem dúvida, a fim de se conseguir a medida de uma ação que se configure no justo meio, é imprescindível uma espécie de saber prático que delimite, em cada caso concreto, o justo meio a ser realizado.

Esse saber prático não pode estar voltado para a busca da essência do bem moral objetivo, empreitada de cunho estritamente teórico e a cargo da filosofia, mas à definição daquilo que é o bem aqui e agora, nessa situação concreta, sopesando-se todas as circunstâncias. Essa categoria de saber atende pelo nome de prudência e será enfocada com profundidade no capítulo específico.

Assim, a ética, entendida como a busca do sumo bem pelo exercício da excelência (ou virtude) na circunstância concreta, cujo agir é mediado pela reta razão, não se reduz a um saber prático padronizado acerca do desempenho de papéis sociais, mas se preocupa com crescimento moral do titular desses papéis, porque o homem, como visto acima, é um ser vivente cuja radicalidade é espiritual e cujo fim repousa na felicidade.

Ao colocar essa pauta ética de lado, o homem corre o risco de descambar para uma escravidão existencial, porque fica mais suscetível aos seus instintos egoísticos[15]. Torna-se massa de manobra sobre a qual gravitam interesses insensíveis ao semelhante e ao bem comum[16].

Sem essa dimensão ética, na forma aqui defendida, capaz de perpassar, como uma seiva, o conteúdo do ensino jurídico, o resultado sociologicamente identificável da educação jurídica consistirá na mera implantação de uma série de pautas de comportamentos profissionais, dotadas de uma suposta neutralidade, como pretende fazer crer o positivismo jurídico reinante.

E, ao mesmo tempo, tais pautas serão caracterizadas pela superficialidade, porquanto não atingirão o âmago do ser homem, diante da ausência de lastro ético, o único lastro que permite, na dimensão do agir (AQUINO, 2005:56), “a efetiva transformação interior do indivíduo (…) quando, porém, cuida-se da ética, a ação humana é vista com afetando não um aspecto particular, mas a totalidade do ser do homem. Ela diz respeito ao que se é enquanto homem[17]”.

Para a concepção aristotélico-tomista da ética, a faceta de maior importância jaz na dimensão interna do agir humano, porque a reflexão, o juízo intencional e o comando da ação operam nesse âmbito interior do agente, resultando numa potencial ação ética propriamente dita que, por sua vez, é capaz de levar o ser humano à realização de sua órbita axiológica. A outra faceta desse mesmo agir humano – o fazer – representa exatamente o aspecto externo desta ação. Como o agir profissional é, em essência, um agir humano, mas voltado para o exercício de um labor, logo, o agir profissional deve subordinar-se ao influxo ético aqui enfocado.

Dessa forma, a educação do ser humano atinge a totalidade do real no qual se insere e processa dinamicamente o indivíduo. Na seara jurídica, a essência da universidade (do latim, universitas) corresponde, no aspecto institucional, justamente àquilo que constitui o espírito humano, por sua vez, no aspecto ontológico. Isto é, na condensada fórmula de Pieper (1989:5-8), “a abertura para a totalidade do real em suas conexões globais[18]”.

Por conseguinte, nessa missão pedagógica baseada nos postulados expostos ao longo dessas linhas – a advertência de Píndaro (“Torna-te o que és!”); a educação entendida como evolução, inserção e encontro; a natureza espiritual do homem; a dimensão prática da tarefa pedagógica e a essência ético-virtuosa do agir humano –, duas atitudes éticas fundamentais devem ser desenvolvidas no educando na órbita do Direito: a prudência e a justiça.

Ambas as excelências devem ser adquiridas por um processo pedagógico em que se privilegie seu manejo teórico-prático às circunstâncias concretas, sempre à luz de um trabalho de criação do direito a partir da norma abstrata visando ao justo concreto, labor essencial para qualquer profissional do ramo jurídico e que, por isso, deve ser considerado o fim primordial da escola de Direito, e numa perspectiva de formação aberta, reflexiva, crítica, operante e criativa, bem ao contrário daquilo que distingue o ensino jurídico atual nos bancos acadêmicos.

 

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NOTAS

[1] Existe um adágio popular que guarda uma realidade bem profunda e é inexplicavelmente dirigido apenas para o gênero masculino: “Filhos, a mãe começa a criá-los e a esposa termina”.

[2] “Com efeito, sucede no caso do homem exatamente o mesmo que no caso do recinto aberto, ao ser projetado nos planos longitudinal e horizontal de um quadro fechado. O homem é representado no plano biológico como um sistema fechado de reflexos fisiológicos, e no plano psicológico, como um sistema fechado de reações psicológicas. Mais uma vez, portanto, a projeção tem por resultado uma oposição. Mas, porque pertence à essência do homem o ser ele, em todo caso, aberto, o ser “aberto no mundo” (Scheler, Gehlen e Portmann), – ser homem significa, já de si, ser para além de si mesmo. A essência da existência humana, diria eu, radica na sua autotranscendência. Ser homem significa, de per se e sempre, dirigir-se e ordenar-se a algo ou a alguém: entregar-se o homem a uma obra a que se dedica, a uma pessoa que ama, ou a Deus, a quem serve. Esta autotranscendência quebra os quadros de todas as imagens do homem que, no sentido de algum monadologismo, representem o homem como um ser que não atinge o sentido e os valores, para além de si mesmo, orientando-se, assim, para o mundo, interessando-se exclusivamente por si mesmo, como se lhe importasse a conservação ou o restabelecimento da homeostase (FRANKL, 1989: 44-45)”.

[3] In Metafísica, L. I, 980 a22: “todos os seres humanos naturalmente desejam o conhecimento”.

[4]Crítica do positivismo, portanto, a fenomenologia se apresenta também como pensamento desconfiado em relação a todo apriorismo idealista. Com isso, se insere naquele vasto movimento de pensamento caracterizado pela ‘tendência para o concreto’ (…). Nessa preocupação de construir uma filosofia ligada o mais possível a ‘dados imediatos’ e inegáveis, com base nos quais erguer depois as teorias, a fenomenologia está de acordo com o pensamento de Henri Bergson. E esse é o motivo por que ela promoveria, ou se entrelaçaria, com as concepções de Heidegger, Sartre ou Merleau-Ponty. Escreve Heidegger em Ser e Tempo: ‘a expressão fenomenologia significa antes de mais nada um conceito de método, um lema que poderia ser assim formulado: voltemos às próprias coisas! E isso em contraposição às construções desfeitas no ar e às descobertas casuais, em contraposição à aceitação de conceitos só aparentemente justificados e aos problemas aparentes que se impõem de uma geração à outra como verdadeiros problemas’. Portanto, a palavra-de-ordem da fenomenologia é a de retorno às próprias coisas, indo além da verbosidade dos filósofos e de seus sistemas construídos no ar. Mas como se fez para construir uma filosofia que se sustente? Para cumprir essa tarefa, é preciso partir de dados indubitáveis para com base neles construir depois o edifício filosófico. Em suma, procuram-se evidências estáveis para colocar como fundamento da filosofia. Essa, portanto, é a intenção de fundo da fenomenologia, intenção que os fenomenólogos procuram realizar através da descrição dos ‘fenômenos’ que se anunciam e se apresentam à consciência depois que se faz a epoché, isto é, depois que são postas entre parênteses as nossas persuasões filosóficas, os resultados das ciências e as convicções engastadas naquela nossa atitude natural que nos impõe a crença na existência de um mundo de coisas. Em outros termos, é preciso suspender o juízo sobre tudo o que não é apodítico nem incontrovertido até se conseguir encontrar aqueles ‘dados’ que resistam aos reiterados assaltos da epoché. E os fenomenólogos encontram esse ponto de aproximação da epoché – o resíduo fenomenológico, no dizer de Husserl – na consciência: a existência da consciência é imediatamente evidente. A partir dessa evidência, os fenomenólogos pretendem descrever os modos típicos como as coisas e os fatos se apresentam à consciência. E esses modos típicos são precisamente as essências. A fenomenologia não é ciência dos fatos, e sim ciências de essências. (…) Eis, portanto, o que a fenomenologia pretende ser: ciência, fundamentada estavelmente, voltada à análise e à descrição das essências. (ANTISERI, 1991:553-555)”. Adotamos a noção de fenomenologia retro exposta, sendo a essência, captada a partir das aparências, encarada como uma realidade objetiva e determinante do pensamento, postulado da filosofia aristotélico-tomista. Assim, entendemos que a fenomenologia (ainda que, depois, alguns de seus pensadores tenham permanecido apenas na intencionalidade, como Husserl, e outros caminharam para um diálogo com o realismo clássico, como Edith Stein) e o realismo aristotélico-tomista são portadores de princípios que se complementam epistemologicamente no que concerne ao estudo do ser do homem.

[5] Suma Teológica, I, qq. 75-95.

[6] Diz um ditado italiano que “se il corpo va bene, l’anima balla (se o corpo está bem, a alma dança)”.

[7] Um bom exemplo disso está justamente numa área pedagógica tão delicada como o ensino superior, cuja finalidade é a de capacitar o estudante para uma profissão no mundo do trabalho. A profissão é o meio pelo qual o ser humano se instala num locus social e, a partir de então, adquire um ângulo de vista a partir do qual pode acrescentar novas e ricas realidades ao lugar em que vive. Por isso, uma deficiência orgânica nos princípios epistemológicos do ensino de uma área tão sensível socialmente como a nossa, o Direito, provoca uma espécie de “desemprego forçado” do bacharel recém-egresso dos bancos acadêmicos. Esse desemprego é um grande atentado contra a dignidade da pessoa humana, pois impede – no nascedouro de uma longa perspectiva de vida profissional – que esse ex-estudante possa ser útil socialmente, ao mesmo tempo em que lhe diz o que efetivamente não é: a lógica da razão instrumental (na mais genuína acepção habermasiana) pede-lhe que não se incomode, pois logo lhe será concedido um polpudo e longevo seguro-desemprego, já que essa pessoa não tem mais nada para oferecer à sociedade. Condenar uma pessoa – na flor da existência humana – à estrita sobrevivência é, no fundo, exilá-la precocemente do mundo dos homens e relegá-la à “periferia existencial” da realidade, na condensada e feliz expressão empregada pelo Papa Francisco em seu discurso de posse na cátedra de Pedro em 19.03.2013.

[8] A cultura tem um assento reservado no trabalho pedagógico em qualquer nível. Não existe uma verdadeira educação sem transmissão de cultura, sem o fecundo ensinamento do tesouro intelectual daqueles que nos precederam.  A cultura é o cadinho onde se deposita o resultado do longo e complexo processo de destilação do sentido das realidades históricas produzidas pelo homem ao longo dos séculos. A cultura, como ensinou Hegel, é o lugar onde se transcende o estreito limite das ocorrências particulares, das vontades interesseiras. Sem aprendizagem, não existe o homem.

[9] “Assim o demonstra a teoria de S. Tomás de Aquino, que se liga à filosofia de Aristóteles. Este não perfilhava o idealismo platônico e a sua filosofia incide na problemática do mundo empírico. Todavia, as concepções de Aristóteles constituem um dos fundamentos da pedagogia da essência. Aristóteles fez uma distinção que teve grande importância na história da filosofia: separou a matéria de forma. De acordo com sua concepção, a matéria é passiva, variável e neutra; a forma é ativa, duradoura, e dá um aspecto qualitativamente definido. A <forma> do homem é a atividade, uma atividade específica. Não a que possui à semelhança de plantas e animais, mas a atividade pensante. Esta <forma> molda a <matéria> e cria o homem. Há, portanto, uma <forma> para cada homem. A tarefa da educação consiste em atuar da mesma maneira em todos. Não é a partir da matéria que convém avançar para a <forma> do homem; pelo contrário, é preciso moldar a matéria com a energia do sentido contido na noção de forma humana. A orientação da ação educativa é assim idêntica à de Platão, embora variem seus motivos de justificação. Inspirando-se embora nesta filosofia, São Tomás de Aquino opôs-se aos aspectos excessivos da interpretação ascética da pedagogia da essência, mas conservou as teses principais, tal como o fez Aristóteles em relação às teorias pedagógicas de Platão, cujos aspectos extremos igualmente rejeitava. Na obra De Magistro, São Tomás de Aquino definiu a tarefa e as possibilidades da educação, baseando-se na distinção entre potencial e atual. Ao negar a concepção das ideias inatas, como reserva sempre disponível do espírito do conhecimento, São Tomás considerou que o ensino era uma atividade em virtude da qual os dons potenciais se tornam realidade atual. Este processo, quer pelo lado do educador, quer pelo do próprio aluno, implica uma atividade. Alargando este ponto de vista a todo trabalho educativo, São Tomás pôs em relevo o papel da vontade para se assenhorar da natureza falível do homem (…) e esta (a atividade do homem) não é mais do que um meio pelo qual o ideal da verdade e o ideal do bem devem formar a natureza corrompida do homem (SUCHODOLSKI, 1984:20-22)”.

[10] “Paideia, a palavra que serve de título a esta obra, não é apenas um nome simbólico; é a única designação exata do tema histórico nela estudado. (…) Os antigos estavam convencidos de que a educação e a cultura não constituem uma arte formal ou abstrata, distintas da estrutura histórica objetiva da vida espiritual de uma nação (JAEGER, 2003: introdução)”.

[11] Platão, em três famosos diálogos, explica como os sofistas tentaram várias perspectivas de compreensão da lei e da justiça. Nos diálogos “A República” (L. I, 338-340), “Górgias” (482-484) e “Protágoras” (337d), Platão afirma que os sofistas buscaram muitas perspectivas de compreensão da lei e da justiça, oscilando entre a conveniência do mais forte, o resultado de uma convenção e a expressão de tendências naturais contra os abusos da legalidade positiva. Trasímaco identifica a justiça como a vantagem do mais forte ou superior; Cálicles antepõe o direito natural dos mais fortes à tática das leis defensivas a que recorrem os mais débeis, que se satisfazem com a igualdade; Hípias escolhe as leis não-escritas, pois a lei positiva, tirana dos homens, obriga a muitas coisas contrárias à natureza.

[12] Ética a Nicômaco, L. I, 1094 a.

[13] In Confissões, VII, 18: “Vi claramente que todas as coisas que se corrompem são boas: não se poderiam corromper se fossem sumamente boas, nem se poderiam corromper se não fossem boas. Com efeito, se fossem absolutamente boas, seriam incorruptíveis, e se não tivessem nenhum bem, nada haveria nelas que se corrompesse (…). Logo, se forem privadas de todo o bem, não existirão em absoluto: pois, enquanto são, são boas”.

[14] Ética a Nicômaco, L.II, 1106 b.

[15] Acerca do individualismo egoísta, são pertinentes as palavras de Adorno e Horkheimer (1985:67), no excurso 1 da dialética do esclarecimento: “Esse idílio é na verdade a mera aparência da felicidade, um estado apático e vegetativo, pobre como a vida dos animais e, no melhor dos casos, a ausência da consciência da infelicidade”.

[16] O Papa João Paulo II, na Encíclica Dives in Misericordia (VI, 11-12) retratou bem uma realidade social que dá as costas para a dimensão ética do homem: “Aumenta no nosso mundo a sensação de ameaça, aumenta o medo existencial que anda ligado sobretudo — conforme já tive ocasião de insinuar na Encíclica Redemptor Hominis— com a perspectiva de um conflito que, tendo em conta os hodiernos arsenais atômicos, poderia significar a autodestruição parcial da humanidade. A ameaça não diz respeito apenas ao que os homens podem fazer uns aos outros, utilizando os recursos da técnica militar. Ela envolve ainda muito outros perigos que são o produto de uma civilização materialista, que, não obstante declarações «humanistas», aceita o primado das coisas sobre a pessoa. O homem contemporâneo, receia que, com o uso dos meios técnicos inventados por este tipo de civilização, não só cada um dos indivíduos, mas também os ambientes, as comunidades, as sociedades e as nações, possam vir a ser vítimas da violência de outros indivíduos, ambientes e sociedades. Na história do nosso século não faltam exemplos a esse respeito. Apesar de todas as declarações sobre os direitos do homem tomado na sua dimensão integral, isto é, na sua existência corpórea e espiritual, não podemos dizer que tais exemplos pertencem somente ao passado. O homem tem justamente medo de vir a ser vítima da opressão que o prive da liberdade interior, da possibilidade de manifestar publicamente a verdade de que está convencido, da fé que professa, da faculdade de obedecer à voz da consciência que lhe indica o reto caminho a seguir. Os meios técnicos à disposição da civilização dos nossos dias encerram de facto, não apenas a possibilidade de uma autodestruição por meio de um conflito militar, mas também a possibilidade de uma sujeição «pacífica» dos indivíduos, dos ambientes de vida, de inteiras sociedades e de nações que, seja por que motivo for, se apresentem incómodos para aqueles que dispõem de tais meios e estão prontos para empregá-los sem escrúpulos. Pense-se ainda na tortura que continua a existir no mundo adoptada sistematicamente por Autoridades, como instrumento de dominação ou de opressão política, e posta em prática, impunemente, por subalternos. Assim, ao lado da consciência da ameaça contra a vida vai crescendo a consciência da ameaça que destrói ainda mais aquilo que é essencial ao homem, ou seja, aquilo que está intimamente relacionado com a sua dignidade de pessoa, com o seu direito à verdade e à liberdade. Tudo isto se desenrola, tendo como pano de fundo o gigantesco remorso constituído pelo facto de que, ao lado de homens e sociedades abastados e fartos, a viverem na abundância, dominados pelo consumismo e pelo prazer, não faltam na mesma família humana indivíduos e grupos sociais que sofrem a fome. Não faltam crianças que morrem de fome sob o olhar de suas mães. Não faltam, em várias partes do mundo, em vários sistemas sócio-econômicos, áreas inteiras de miséria, de carência e de subdesenvolvimento. Este facto é universalmente conhecido. O estado de desigualdade entre os homens e os povos não só perdura, mas até aumenta. Sucede ainda nos nossos dias que ao lado dos que são abastados e vivem na abundância, há outros que vivem na indigência, padecem a miséria e, muitas vezes até morrem de fome, cujo número atinge dezenas e centenas de milhões. É por isso que a inquietação moral está destinada a tornar-se cada vez mais profunda. Evidentemente na base da economia contemporânea e da civilização materialista há uma falha fundamental ou, melhor dito, um conjunto de falhas ou até um mecanismo defeituoso, que não permite à família humana sair de situações tão radicalmente injustas. Eis a imagem do mundo de hoje, onde existe tanto mal físico e moral, a ponto de o tornar um mundo enredado em tensões e contradições e, ao mesmo tempo, cheio de ameaças contra a liberdade humana, a consciência e a religião. Tal imagem explica a inquietação a que está sujeito o homem contemporâneo inquietação sentida, não só pelos que se acham desfavorecidos ou oprimidos, mas também por aqueles que gozam dos privilégios da riqueza, do progresso e do poder. Embora não faltem aqueles que procuram descobrir as causas de tal inquietação, ou reagir com os meios à disposição que lhes oferecem a técnica, a riqueza ou o poder, todavia, no mais fundo da alma humana, tal inquietação supera todos os paliativos. Como justamente concluiu na sua análise o Concílio Vaticano II, ela diz respeito aos problemas fundamentais de toda a existência humana. Esta inquietação está ligada ao próprio sentido da existência do homem no mundo. É mesmo inquietação quanto ao futuro do homem e de toda a humanidade e exige resoluções decisivas que hoje parecem impor-se ao gênero humano. Não é difícil verificar que no mundo atual despertou em grande escala o sentido da justiça, o que indubitavelmente põe mais em relevo tudo o que se opõe à justiça, tanto nas relações entre os homens, grupos sociais ou «classes», como nas relações entre os Povos ou os Estados e até mesmo nas relações entre inteiros sistemas políticos ou os assim chamados «mundos». Esta corrente profunda e multiforme, em cuja base a consciência humana contemporânea situou a justiça, atesta o carácter ético das tensões e das lutas que avassalam o mundo. A Igreja compartilha com os homens do nosso tempo este profundo e ardente desejo de vida justa sob todos os aspectos. Não deixa de fazer objeto de reflexão os vários aspectos da justiça exigida pela vida dos homens e das sociedades. Bem o comprova o amplo desenvolvimento alcançado no último século pela doutrina social católica. Na linha deste ensino situam-se tanto a educação e a formação das consciências humanas no espírito da justiça. Apesar disso, seria difícil não se dar conta de que, muitas vezes, os programas que têm como ponto de partida a ideia da justiça e que devem servir para sua realização na convivência dos homens, dos grupos e das sociedades humanas, na prática sofrem deformações. Embora depois continuem a apelar para a mesma ideia de justiça, todavia a experiência mostra que sobre ela predominam certas forças negativas, como o rancor o ódio e até a crueldade. Então, a ânsia de aniquilar o inimigo de limitar a sua liberdade ou mesmo de lhe impor dependência total, torna-se o motivo fundamental da ação. Isto contrasta com a essência da justiça que, por sua natureza, tende a estabelecer a igualdade e o equilíbrio entre as partes em conflito. Esta espécie de abuso da ideia de justiça e a sua alteração prática demonstram quanto a ação humana pode afastar-se da própria justiça, muito embora seja empreendida em seu nome. Não sem razão Cristo reprovava nos seus ouvintes, fiéis à doutrina do Antigo Testamento, a disposição manifestada nestas palavras: «Olho por olho, dente por dente». Era esta a forma de alterar a justiça naquele tempo; e as formas de hoje continuam a pautar-se pelo mesmo modelo. É óbvio efetivamente, que, em nome de uma pretensa justiça (por exemplo, histórica), muitas vezes se aniquila o próximo se mata, se priva da liberdade e se despoja dos mais elementares direitos humanos. A experiência do passado e do nosso tempo demonstra que a justiça, por si só, não basta e que pode até levar à negação e ao aniquilamento de si própria, se não se permitir àquela força mais profunda, que é o amor plasmar a vida hurnana nas suas várias dimensões. Foi precisamente a experiência da realidade histórica que levou à formulação do axioma: summum ius, summa iniuria. Tal afirmação não tira o valor à justiça, nem atenua o significado da ordem instaurada sobre ela, indica apenas, sob outro aspecto, a necessidade de recorrer às forças mais profundas do espírito, que condicionam a própria ordem da justiça. Tendo diante dos olhos a imagem da geração de que fazemos parte, a Igreja compartilha a inquietação de não poucos homens contemporâneos. Além disso, devemos preocupar-nos também com o declínio de muitos valores fundamentais que constituem valor incontestável não só da moral cristã, mas até simplesmente da moral humana, da cultura moral, como sejam o respeito pela vida humana desde o momento da concepção o respeito pelo matrimônio com a sua unidade indissolúvel e o respeito pela estabilidade da família. O permissivismo moral atinge sobretudo este setor mais sensível da vida e da convivência humana. Paralelamente, andam também a crise da verdade nas relações dos homens entre si, a falta de sentido de responsabilidade pela palavra, o utilitarismo nas relações dos homens entre si, a diminuição do sentido do autêntico bem comum e a facilidade com que este é sacrificado. Enfim, é a dessacralização que se transforma muitas vezes em «desumanização»; o homem e a sociedade, para os quais nada é «sagrado», decaem moralmente, apesar de todas as aparências.

[17] In Eth. 6, 3, 10 e Suma Teológica I-II, 21 2 ad 2.

[18] “Podemos agora falar da experiência fundamental que se encarnou e que tem permanecido por mais de dois mil anos nesta instituição da civilização ocidental europeia: essa experiência que, só ela, é em última análise o fundamento da universidade e sua razão de ser. Essa experiência tem por objeto, nada menos, a natureza do espírito humano. Para formulá-la, pode-se dizer o seguinte: o espírito por sua própria essência, refere-se ao todo da realidade; não é, no fundo, senão aquela capacidade de relacionamento que aponta para a universalidade do real; está capacitado e disposto a entrar em contato (e a manter este contato) com o “em si” de tudo que é. “Ter espírito”, ser “um ente dotado de espírito”, significa sobretudo ser capax universi, capaz de abarcar e de ser receptivo ao todo do mundo. Ao contrário do animal, que está encerrado num meio fragmentário, num “mundo circundante”, ter espírito significa existir face ao conjunto da realidade, vis-à-vis de l’univers. Este pensamento tem sido repetido inúmeras vezes, desde os antigos até hoje: Aristóteles diz que a alma é, de certo modo, todas as coisas, anima est quodammodo omnia; S. Tomás de Aquino atribui ao espírito humano a potência natural de convenire cum omni ente, “ir junto”, entrar em positiva relação com qualquer ente; e Max Scheler fala de “abertura para o mundo” e de “posse-do-mundo” (Welt-haben); todos estes pensadores estão falando da mesma situação da realidade. Mas esta situação implica em algo mais: implica que um ente espiritual (e portanto também o homem) só realiza suas verdadeiras potencialidades quando divisa o todo da realidade e a ele se abre expressamente. A educação daquilo que é própria e especificamente humano, ou, em outras palavras, a verdadeira formação do homem, somente se dá quando se põe em marcha esse confronto com o todo existente. Um homem verdadeiramente formado é alguém que sabe como se relacionar com o mundo como um todo, ainda que (e sobre isto ainda falaremos mais adiante) esse conhecimento da realidade seja imperfeito. Na medida em que uma comunidade humana considere como plenas de sentido e necessárias, não só as instituições que têm por fim assegurar a existência do homem e atender “às necessidades da vida” (nas quais se incluem também as, sem dúvida, indispensáveis, organizações de ensino especializado, técnico, de treinamento e instrução), mas também a “escola superior” em sentido pleno, verdadeiramente dirigida para o ideal de construir um lugar de formação que sirva para a educação daquilo que é propriamente humano; nessa mesma medida, essa comunidade considerará necessária uma instituição que tenha expressa e metodicamente por projeto o confronto do homem com o todo real. Tal instituição é exatamente a universidade! O que faz com que a universidade seja universidade não é a ciência, mas… Mas o quê? Mas a resoluta orientação do pensamento para o universum, para a unidade do conjunto do real; o decidido e persistente esforço de abertura para o todo, que desde sempre tem sido designado e entendido como filosofar. Com esta tese – que traduz uma realidade complexa no mais alto grau e, infelizmente, não triunfalmente unívoca como talvez poderia parecer à primeira vista – encontramo-nos naturalmente situados no meio de uma polêmica. Antes de tomarmos nossa posição, porém, é necessário precisar um pouco melhor o que deve ser entendido por filosofia, filosofar e ciência. Filosofar significa: dirigir o olhar a tudo aquilo que se nos depara e, num esforço de pensamento preciso e metodicamente disciplinado, suscitar a questão de seu significado último e fundamental. Alfred North Whitehead († 1947), o célebre filósofo da Universidade de Harvard, que foi ao mesmo tempo um dos fundadores da moderna Lógica Matemática (e em relação a quem, portanto, não se admite facilmente a suspeita de que não expressasse seu pensamento com suficiente precisão), afirmou em seus últimos anos de vida que a Filosofia simplesmente se ocupa da questão: What is all about?, questão que indaga do todo e que quer saber o que o todo tem a ver com esta realidade concreta (PIEPER, 1989:5-8)”.

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André Fernandes é bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Mestre em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Juiz de direito titular de entrância final. Pesquisador do grupo Paideia, na linha de ética, política e educação (FE/UNICAMP) e professor do CEU-IICS Escola de Direito. Coordenador do IFE Campinas. Articulista da Escola Paulista da Magistratura, da qual é também Juiz Instrutor, e do Correio Popular de Campinas, com especialidade na área de Filosofia do Direito, Deontologia Jurídica, Estado e Sociedade. Experiência profissional na área de Direito, com especialidade em Direito Civil, Direito de Família, Direito Constitucional, Deontologia Jurídica, Filosofia do Direito e Hermenêutica Jurídica. Membro da Escola do Pensamento do IFE (www.ife.org.br), do Comitê Científico do CCFT Working Group (Diálogos entre Cultura, Ciência, Filosofia e Teologia), da União dos Juristas Católicos de São Paulo e da Comissão de Bioética da Arquidiocese de Campinas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas. Autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos científicos em revistas especializadas.

Alberto Da Veiga Guignard – O Poeta Das Tintas

Artes | 18/08/2014 | | IFE CAMPINAS

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Fonte: http://www.pinturasemtela.com.br/alberto-da-veiga-guignard-pintor-brasileiro/

 

Alberto da Veiga Guignard, carioca de nascimento, viveu os anos mais importantes e produtivos de sua vida em Belo Horizonte, MG, com contínuas viagens às cidades históricas deste Estado. Foi mestre de importantes nomes da arte moderna brasileira como Iberê Camargo, Lygia Clark, Amilcar de Castro, Farnese de Andrade e outros.

Relevantes foram os fatores e acontecimentos que envolveram a permanência do artista na Capital e cidades históricas mineiras, para uma melhor e mais profunda compreensão da grandeza e singularidade de sua obra como um todo, mas especialmente no que tange à sua temática paisagística e religiosa. Entretanto, para além da experiência com o barroco mineiro, a obra de Guignard sofre viva influência dos anos de estudo na Europa em que pôde ver de perto tanto grandes obras clássicas como as modernas: da perspectiva de Da Vinci às “distorções” do Expressionismo Alemão de Munch.

Infelizmente, como acontece em tantas e tantas vezes, a obra deste excepcional artista só tem sido devidamente reconhecida nos últimos 25 anos. Mesmo artistas e críticos de seu tempo demoraram em degluti-lo e aceitar o caráter verdadeiramente moderno de sua obra, simplesmente por se fecharem em seus esquemas ideológico-valorativos parciais, não admitindo que outros modos criativos, outras formas e idéias pudessem caber no que “eles” haviam determinado e proclamado como “moderno no Brasil” – refiro-me especificamente aos chamados artistas, críticos e literários modernistas – logo “eles” que insistiram tanto em “libertar” as artes brasileiras das amarras formais dos  “modos parnasianos”: armaram outra “armadura” para quebrar a antiga…!

Um comentário de Marcos Rodrigues Aulicino em sua tese de doutorado utilizando-se de uma citação de Amilcar de Castro exemplifica e fundamenta a minha “crítica” da crítica moderna assim arriscada:

“Muitas vezes esta elaboração espacial de Guignard foi identificada com a autonomia da linguagem plástica alcançada pelo pintor, questão esta que problematizamos ao discutir a crítica dos anos 80 e 90 e a construção de um lugar “à margem” do modernismo oficial, reservada a este pintor, legitimando-o como verdadeiramente moderno, pois distante das filiações literárias. Em tal leitura algo da pintura de Guignard se perde, algo que está num conluio com a imaginação poética. Discutiremos nas paisagens “imaginantes” outras categorias interpretativas. ‘Olhar e ver a dança das cores  ritmo do mundo. Cor é emoção e pensamento descoberta e procura  certeza e espanto  fundamento e caminho.  E caminhar com as cores é testemunhar com o silêncio da luz. Cor não existe uma.  E muitas  quanto uma sustenta a outra  todas solidárias tramam intrigam  comprometem o tempo e o espaço no lugar  onde a beleza acabou de nascer verdade. E assim esse pintor poeta fundou.Ouro Preto em cor.  Grande Mestre (CASTRO, 1992, p.22-23).”

 A história deste grande artista foi permeada do início ao fim por tristes intervenções humanas que, qual tintas sombrias numa paisagem luminosa de verão, vão dando relevo e profundidade ao grande quadro que foi sua própria vida. Assim, se por um lado a vida imita a arte, não deixa de ser também verdade que a arte, mais do que a “imitação” da vida, é o fenômeno da sua recriação ou releitura pelo artista.

Por este prisma entendo estas mesmas tristes circunstâncias que a liberdade mal administrada de outros homens provocou na história de Guignard, como fatores decisivos para o seu amadurecimento pessoal e artístico – assim como o de sua obra como um todo – cunhando em sua personalidade – como também em sua obra – um caráter teimosamente autêntico e livre que em última instância fizeram dele o gênio incomparável, inovador e singularíssimo que foi.  Por outro lado, ainda, graças a este mergulho estilístico independente possibilitado por seu modo sereno e forte de enfrentar as contínuas adversidades,  é que sua obra, de tão singular que é, passa a ser também universal.

Guignard começou seu namoro com Minas bem antes de sua mudança para Belo Horizonte, conforme comenta Marcos Rodrigues Aulicino em sua tese de doutorado:

“Viajou para Minas Gerais em 1941, perfazendo o circuito modernista pelas cidades históricas, além de Paraná, interior do Rio de Janeiro e São Paulo, atendendo aos objetivos do prêmio. Em 39 já havia ido para Sabará e Ouro Preto, registrando uma série de paisagens da arquitetura colonial e o seu entorno. (AULICINO; Marcos Rodrigues, “O próximo distante, o distante próximo”, CAMPINAS, UNICAMP – IFCH – 2007)”.

Com a Exposição Moderna de 1944, talvez, pela primeira vez a produção de Belo Horizonte tenha conseguido alguma visibilidade fora das fronteiras de Minas Gerais. A partir deste momento  e principalmente nos governos municipais seguintes ao de Juscelino, Guignard passou a ser implacavelmente perseguido por seus opositores, liderados pelo arquiteto e desenhista Aníbal de Mattos, acadêmico, bem como pelos dois sucessores de Juscelino na prefeitura de Belo Horizonte, cujas visões e tendências em termos de apoio às artes eram também acadêmicas e tradicionalistas.  Quem relata com detalhes este período é o jornalista e escritor Frederico Morais, em seu livro Alberto da Veiga Guignard (Editora Monteiro Soares Editores e Livreiros,1979).

Carlos Zílio foi aluno do artista Iberê Camargo e hoje é artista plástico, pesquisador e crítico.  É pesquisador e estudioso da obra de Guignard, sob o foco de sua inserção no contexto da arte moderna como um todo, sem perder de vista as suas próprias especificidades técnicas e criativas, levando em conta as especificidades do ambiente intelectual e artístico da Capital Mineira, no qual estava profundamente imerso nos seus últmos 18 anos. Zílio afirma que o mais importante da obra de Guignard está na diluição da figura e do fundo provocando uma dissolução do espaço formal e das pessoas retratadas em seus quadros. Este autor está mais preocupado com as questões estéticas e territorializadas da arte em Guignard, do que, propriamente em questões de caráter biográfico.  Assim sendo nos oferece uma análise mais aprofundada de sua obra paisagística partindo do ponto de vista estético e sígnico no contexto da arte moderna brasileira.

Considerando-se que, do ponto de vista da sociologia, a arte é um sistema de comunicação inter-humana (ARAGÃO, Solange; Comunicante-comunicado-comunicando: método de estudo de obras de arte; II Encontro de História da Arte, IFCH-Unicamp, 27 a 29 de Março de 2006, Campinas, SP), artista, obra e público devem ser levados em conta e inter-relacionados entre si quando o objeto de estudo é qualquer um desses três elementos.

A história da Arte tem por premissa a importância de se transmitir e conservar a memória dos fenômenos artísticos com seus sujeitos e objetos, situando-os no contexto da civilização. Portanto, em seus estudos e investigações, interessa sobremodo o valor de um objeto artístico, não medido em cifras monetárias, mas enquanto objeto de significação e representação, que faz dele produto e mensagem ao mesmo tempo, remetendo-o diretamente à  sua origem e destino: o artista, espelho e síntese do homem de seu tempo. Interessa o valor do objeto artístico enquanto vestígio e reflexo do homem enquanto ser singular e universal que é; o homem histórico e antropológico.

Neste sentido a obra de Guignard, ainda tão pouco explorada por nossas instituições artísticas e educacionais, pode oferecer um novo prisma no que tange a uma identidade genuinamente brasileira (ainda que diversa e não excludente em relação a tantas outras manifestações artísticas nacionais) no painel artístico pictórico moderno nacional. Esta identidade, retratada nas imagens que reúnem o povo, as festas, a religiosidade e a paisagem montanhosa típica das regiões históricas de Minas, tem hoje o poder de lançar o “contemplador” num estado de aspiração ou desejo de um tempo-espaço que partindo daquele experimentado em tais lugares (Minas histórica/ Minas montanhosa) o transcende, à medida que se reconstrói idealmente na sua imaginação poética.

Mas… que importância teve Guignard  para o seu tempo? Que importância tem para o nosso, bem como às gerações futuras do nosso Brasil culturalmente despedaçado? Guignard tem para o homem de todos os tempos e especialmente para o homem brasileiro, a importância da direção para onde aponta o seu olhar contemplativo: o desejo do ser humano de plenitude, de harmonia com o meio, de felicidade; a importância da integração harmoniosa entre homem e paisagem, homem e contexto histórico social, homem e espiritualidade.

Por Iura Breyner Botelho – Pós graduação em História das Artes – Crítica e Teoria – FPA – Faculdade Paulista de Artes – 2012. Iura Breyner Botelho é colaboradora do IFE Campinas.