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Microcefalia, aborto e vida

Opinião Pública | 29/04/2016 | | IFE CAMPINAS

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Microcephaly-comparison-500px - Artigo Gama Fev 2016

Imagem: um bebê com microcefalia à esquerda, comparado a um bebê normal, à direita. Imagem em Domínio Público.

 

Hoje já se sabe que o feto é uma vida. Não precisa ser religioso, nem reacionário ou qualquer outro rótulo que se queira impor às pessoas que defendem o ser que está provisoriamente alojado no ventre materno para constatar esse fato. Digite “feto com três meses de gestão” no Google e verá: os órgãos vitais já estão todos formados.

Essas considerações iniciais devem-se ao fato, como é sabido, de que o aborto voltou à pauta de grupos que o defendem por causa da epidemia de zika vírus que estamos enfrentando. Pouco se conhece ainda da real gravidade da contaminação por esse vírus e as consequências para o feto. Mas para quem não pensa nele, isso tem pouca importância. O que conta é aproveitar uma situação de medo para oferecer uma saída ao sofrimento. Seu filho irá nascer com deficiência? Aborte-o, assim, não será preciso enfrentar as dificuldades que certamente virão.

Claro que ninguém deve julgar o outro, mas, ao menos, falo com certa vivência. Como já tive oportunidade de escrever nesse mesmo jornal, tenho um filho com autismo. Conheço muitas pessoas que têm filhos com síndrome de down, e outros transtornos do desenvolvimento. Portanto, de alguma forma, entendo a dor que essas famílias estão passando.

O que a ONU e algumas pessoas no Brasil estão fazendo se chama oportunismo. Afinal, não é de hoje que defendem o aborto livre e irrestrito. Não importa que 70% dos brasileiros sejam contra a prática. Ainda assim, defendem que a mulher rica pode abortar, enquanto a pobre não. Basta ver os dados para perceber que a maioria esmagadora da população do nosso país não quer realizar tal ato. Nas classes C e D, a porcentagem de contrários ao aborto sobe para 75%!

O que uma família que é surpreendida por um caso de doença ou transtorno do filho quer é ajuda! Como lidar com a criança? Como desenvolvê-la da melhor forma? Ainda não vi nenhuma ação governamental nesse sentido, seja federal, estadual ou municipal.

Outro fator que chamou a atenção foi o descaso de alguns pais, que chegaram a abandonar suas esposas pelo fato de o bebê ter microcefalia. Não é de hoje, infelizmente, que a irresponsabilidade masculina aumenta o sofrimento de mães, especialmente o das jovens. Muitas vezes, desamparadas, pensam que o aborto é a única saída.

Alguns afirmam: se você é contra a prática, que não aborte. A vida seria tão fácil se uma frase simplista e ilógica resolvesse tudo! Mas não é: o fato de eu ser contra o assassinato é o suficiente para que haja paz na sociedade? O fato de eu não matar, infelizmente, não significa que outros deixarão de o fazer. E é preciso lutar para que pessoas não sejam brutalmente mortas. Recentemente, o pai de um amigo, um senhor de 80 anos, foi covardemente assassinado, em sua residência, por bandidos. O que a minha decisão de não matar contribuiu para evitar essa tragédia? Portanto, quando a vida está em jogo, não bastam frases feitas.

Claro que há uma distância enorme entre ser contra o aborto e a condenação da mulher que o praticou. Alguns pensam que essa atitude é mera hipocrisia. Não é verdade. Diversas entrevistas e documentários mostraram depoimentos de mulheres que se não tivessem sido deixadas sozinhas, não teriam tomado tal decisão. Por esse motivo, parece-me hipócrita dizer que promove a prática para defender a gestante, mas não oferece ajuda para que ela possa levar adiante a gestação.

O zika vírus, segundo as informações de especialistas, pode ser detectado no primeiro trimestre de gravidez e até mesmo no último. Com treze semanas, os dedos do bebê já estão bem diferenciados e o bebê mexe a cabeça com mais facilidade devido ao desenvolvimento do pescoço. Faz xixi. Seu sistema nervoso central está completo. É nessa criança que pensam os que são favoráveis à vida.

Eduardo Gama é Mestre em Literatura pela USP, Jornalista, Publicitário e membro do IFE-Campinas.

Artigo publicado originalmente no jornal Correio Popular, edição de 27/02/2016, Página A2 – Opinião.

Leandro Karnal e o autismo

Opinião Pública | 15/10/2015 | | IFE CAMPINAS

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No dia dois de outubro, o professor Leandro Karnal ministrou uma palestra no Café Filosófico, na CPFL Cultura. Muito concorrida, como de costume. Fui testemunha porque, como moro perto do local, passava por lá de carro e pude ver a fila que se formou para escutá-lo.
Ao que tudo indica, a palestra foi brilhante. Contudo, ao fim da apresentação, uma senhora fez uma pergunta ao professor: por que insistia em usar o termo autismo como metáfora de pessoas isoladas, que se distanciam dos outros? A resposta de Karnal não poderia ter sido mais equivocada. Lamentou o politicamente correto reinante na sociedade e o patrulhamento de palavras que ocorre na sociedade de hoje. E ainda publicou o vídeo na internet.
Breves parênteses: um dia antes, ocorria um novo massacre nos Estados Unidos. Um homem de 30 anos, Christ Mintz, teve um gesto heroico: acionou o alarme, avisou os alunos para fugirem e voltou ao lugar onde estava o atirador para fazer algo. Antes de levar o primeiro tiro, pediu para não ser alvejado, pois naquele dia seu filho completava seis anos. O filho é autista. Mintz levou sete tiros, mas passa bem.
Fiz esses breves parênteses, porque sei que os pais e as mães de crianças nessa condição fariam o mesmo. O primeiro pensamento que nos vem à mente são sempre nossos filhos, que dependem tanto de nós. Certo, todo filho precisa de seus pais, mas o que dizer dessas frágeis criaturas?
Nós, pais de crianças com autismo, não queremos policiar as expressões de ninguém, não queremos impedir qualquer pessoa de falar sobre autismo. Pelo contrário: quanto mais gente, ainda mais da capacidade intelectual de Karnal, tocar no assunto, melhor. Mas do modo correto, que impeça o preconceito. Sei que a intenção do professor não foi má, porém, a pergunta da senhora também não foi.
Sabemos que poucas pessoas sabem como lidar com os nossos filhos. Não é fácil. Quando a criança busca um canto para se refugiar, pensa-se que ela não gosta dos outros, que prefere mexer as suas mãozinhas ou fazer sons estranhos. Mas, hoje já se sabe que os autistas têm interesse pelos outros. O problema é que eles não sabem como interagir com as pessoas, nem elas com eles. Não é um mundo à parte, mas diferente.
Um colega contou-me que escutou a conversa entre dois alunos de treze anos. Um disse: “Fui ao Mac Donalds outro dia e o atendente era down. Sabe o que eu fiz? Pedi um Mac down”. É essa a sociedade que queremos? Meu colega corrigiu com veemência o aluno e explicou que aquela pessoa era uma vitoriosa, assim como sua família, pois lutaram e lutam para que o portador da síndrome tenha uma vida digna.
Portanto, não se trata de politicamente correto, de patrulhamento. Trata-se de vidas, de pessoas que amam seus filhos e querem proporcionar-lhes, dentro de todas as suas limitações, o melhor possível.
Acabei de ler a edição espanhola do livro de Josef Schovanec, “Je suis à l’Est”. Schovanec, além de autista, é filósofo, escritor e militante pelos direitos dos autistas. Na obra, descreve que, quando era criança, tinha medo dos coleguinhas: “No plano social, estava sozinho. Tinha medo dos outros; infelizmente, por uma boa razão: recebia pancadas diariamente.” Em outro trecho: “As crianças sabem logo quem será popular e quem será rechaçado. A sociedade dos adultos é similar, mas sua hipocrisia mais refinada: em lugar de bater diretamente, utilizam expressões de exclusão, certas atitudes, para atingir um objetivo mais ou menos análogo.”
Hoje, Schovanec tem 30 anos e ainda se lembra dessas feridas. Eu desejo uma sociedade mais humana. Desejo que meu filho não passe por isso.
Aliás, sr. Karnal, a senhora que fez a pergunta é autista.

Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, jornalista, publicitário e membro do IFE-Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 09/10/2015, Página A-2,Opinião.

O povo mais justo do planeta

Opinião Pública | 06/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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Um dos textos mais conhecidos do evangelho cristão é aquele em que Jesus se dirige a uma turma prestes a apedrejar uma prostituta, e lhes diz: quem não tiver pecado que atire a primeira pedra. A lição, que deveria ser óbvia, é a de que somos todos imperfeitos, e portanto incapazes de fazer julgamentos sobre os outros. A narrativa bíblica confirma que os envolvidos no episódio captaram a mensagem, já que se retiraram um a um, deixando a cena do quase-linchamento.

O episódio envolvendo a torcedora gremista, Patrícia, e o goleiro do Santos, Aranha, é a prova de que nossa sociedade está profundamente adoecida. Não seria correto defender a atitude da torcedora, já que ela estava errada. Houve o xingamento, o xingamento foi racista, e a coisa toda foi gravada. Mas a sequência de fatos deflagrados por esse acontecimento pontual tomou proporções irracionais e absurdas, envolvendo desde pessoas comuns até entidades como o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD).

O Código Penal brasileiro prevê penalidades proporcionais para cada tipo de crime, aplicáveis apenas através do poder Judiciário. Ele, portanto, veta o linchamento, ato que é criminoso e também passível de punição. Ora, se a torcedora ofendeu o goleiro, se foi configurado ato racista por parte dela, que sejam tomadas as ações judiciais cabíveis. Além disso, seria de se esperar que ela perdesse alguns colegas, até mesmo algum amigo, e que sofresse algum revés profissional por conta de seu comportamento. Tudo isso seria normal e previsível.

O que não é normal, e nem aceitável, é uma reação absolutamente desproporcional e insana contra a gremista. Ameaças de morte, apedrejamento de sua residência, perseguição, terror — tudo o que não se faz nem aos piores assassinos, se fez com a referida torcedora. Os “justos” não só atiraram a primeira pedra, como também a segunda, a terceira, e mais um caminhão delas. A sabedoria, a maturidade e a sensatez deram lugar a um comportamento animalesco, desonroso e hipócrita. Não é difícil imaginar que entre os acusadores de Patrícia haja canalhas, mentirosos, racistas, golpistas e ladrões, gente que talvez tenha desgraçado muito mais vidas, sem jamais ter recebido uma pedrada de reprimenda. Muitos o devem ter feito em oculto, e um bom tanto deles com certeza já usou a mesma palavra, “macaco”, para se referir a algum outro esportista negro de um time rival. Mas nesse momento todos se acham melhores do que ela, porque suas falhas não foram pegas por uma câmera, e nem espalhadas pelas redes sociais.

Para completar a loucura que se instalou no Brasil, o STJD resolveu punir um time inteiro e seus milhões de torcedores por causa da falha de uma pessoa. Todo pai ou mãe sabe que a pior coisa que se pode fazer é colocar os dois filhos de castigo por causa das travessuras de um deles. Assim como os méritos têm de ser reconhecidos individualmente, as punições devem atingir somente os autores dos delitos. Só assim se desenvolve a noção de responsabilidade. A coletivização da sociedade é uma desgraça que mata os talentos, impede o amadurecimento das pessoas, e não faz nada além de criar subcidadãos tutelados por um estado cada vez mais gigantesco e patronal.

Quem assiste à sociedade brasileira de hoje assiste a um misto de terror com ficção. Os brasileiros convivem com sessenta mil mortes violentas por ano como se fosse algo normal, mas revoltam-se com um xingamento acontecido dentro de um estádio de futebol, no meio de um jogo onde o juiz, sozinho, é mais xingado em noventa minutos do que muitos de nós numa vida inteira. É uma sociedade que aceita a desonestidade e abraça a malandragem, ao mesmo tempo que condena a virtude e ridiculariza o honesto. É o lugar onde os criminosos são tratados como vítimas, e as vítimas como opressoras. A inversão de valores é tão brutal que os parâmetros e padrões já não codificam mais nada na mente das pessoas. Estamos colhendo os frutos de décadas de plantio de relativismo moral e de sucateamento da intelectualidade.

O Brasil precisa de pessoas extraordinárias, e não de massas ordinárias. Precisa de indivíduos bem educados, e não de grupos inflamados. Menos “justos”, e mais justiça. E quem não tiver pecado, que atire a primeira pedra.

■■ Flavio Quintela é bacharel em Engenharia Elétrica, escritor, tradutor de obras sobre política, filosofia e história, e membro do IFE Campinas. É o autor do livro “Mentiram (e muito) para mim”

Publicado no jornal Correio Popular, dia 06 de setembro de 2014, Página A2 – Opinião