A procriação sempre foi um fenômeno natural relevante na vida do ser humano, por ser forma de sua realização pessoal, bem como por garantir sua perpetuação. Tal busca levou a ciência, diante dos problemas da infertilidade e esterilidade, a intervir nesse processo natural, gerando a possibilidade de reprodução de seres humanos por meios artificiais, em laboratório. Nota-se, todavia, que, desde esta conquista pela engenharia genética, o deslumbramento diante dessas práticas inovadoras e sua deificação pelas mídias globais muitas vezes ocultam riscos e consequências negativas, dentre o que a ausência de reflexão e o vazio ético no qual elas veem sendo praticadas.
Exemplo disso são as notícias em torno do caso do Dr. Roger Abdelmassih, antes um dos mais renomados especialistas em reprodução humana no país, que por muitos anos foi aplaudido por seus estudos e pelo trabalho pioneiro nessa área. Mas, apenas quando acusado por crimes sexuais, é que se passou a questionar o teor de suas pesquisas e as práticas em torno da reprodução artificial e da manipulação do material genético de seus pacientes.
Suspeita-se, pelo relato de vítimas, que ele implantava no útero da futura mãe, sem o conhecimento do casal, embriões formados a partir de óvulos e espermatozóides de outras pessoas, acreditando-se, por isso, que muitos dos bebês gerados, em sua clínica, não seriam filhos biológicos daqueles que forneceram o material genético. E, se comprovados tais fatos, ele teria não apenas cometido um crime de violência sexual contra suas pacientes, mas também violado a dignidade dessas mulheres e mesmo do filho a ser artificialmente gerado. É preciso considerar que o óvulo não fecundado, embora ainda não seja um ser humano, carrega a possibilidade de se tornar um, enquanto o embrião humano já é um ser vivo em desenvolvimento, e, portanto, já lhe são resguardados direitos. Não se pode ignorar, também, que muitas dessas mulheres, para as quais o Dr. Roger prometia trazer de volta a alegria da concepção, foram submetidas a todo um sofrimento físico que o próprio tratamento muitas vezes impunha, além da dor psíquica em razão da frustração causada pela não obtenção da gravidez.
Não é de hoje que as novidades trazidas pelo avanço da ciência, principalmente na área da reprodução humana, envolvem dúvidas e perigos que nem sempre são considerados, até pela dificuldade de se ter respostas para muitas das questões envolvidas. É preciso, por isso, aproveitar a exposição desses fatos pela mídia para refletir sobre as consequências da utilização desenfreada das técnicas de reprodução artificial, pois o benefício e o malefício de suas aplicações dependerão do destino para o qual elas são usadas.
Essa, todavia, é uma problemática que não se limita apenas ao consultório do Dr. Abdelmassih, já que a manipulação do material genético é uma prática cada vez mais frequente e disseminada, até por força do aumento de casais que recorrem às técnicas reprodutivas artificiais como alternativa à reprodução natural e como meio de realizar o desejo de ter filhos. Por isso mesmo, tal fato não deve impedir o enfrentamento das diversas questões éticas e jurídicas que envolvem esse assunto, dentre as quais a própria necessidade de satisfazer a vontade de ter filhos a qualquer custo e por qualquer meio.
Nesse quadro, faz-se imprescindível um norte ético a orientar o profissional da área médica, evitando o uso indiscriminado dessas técnicas. Consequências negativas de um acelerado e desenfreado desenvolvimento da ciência na área da reprodução humana é a transformação do gene em mercadoria, o que nada mais é que a própria manipulação da vida em sua origem e a consequente coisificação da vida humana. E o perigo das novidades sem refreamento consiste na possibilidade de ser violados valores humanos fundamentais. O grande desafio, portanto, é escolher o caminho, determinar o rumo do progresso científico sem impedir seu desenvolvimento e sem violar primados éticos tão caros ao próprio homem.
Adriana Zanolini Moisés é advogada, mestre em Direito de Família pela PUC/SP e colaboradora do IFE Campinas.
Artigo publicado no jornal Correio Popular, 11 de novembro de 2014, Página A2 – Opinião.