A via Personalista (em tempos de polarização)


Conta-se que, após abandonar toda uma existência de conforto e luxo, o príncipe Siddharta Gautama, mais conhecido como Buda, tentou trilhar o caminho em busca da Iluminação por meio de uma vida ascética extremada. Após ter vivido por um tempo apenas à base de frutas silvestres e raízes, Gautama tinha o corpo reduzido à pele e osso, com as costelas já expostas. Certo dia, às margens do rio Nairanjana, ele ouviu a voz de uma garota entoando uma tradicional canção indiana sobre um instrumento musical de cordas, semelhante ao alaúde. A canção dizia que as cordas do instrumento arrebentam quando esticadas demais e que, quando frouxas, o som produzido é desafinado. Neste momento, Gautama descobriu o Caminho do Meio, a via que afasta dos extremismos.

Uma segunda história, apócrifa, nos informa que nos últimos anos do século XVI, o índio Peri, da tribo dos Goitacás, fez uma descoberta semelhante ao observar seu pai durante a confecção de um arco. O curumim notou que seu pai tinha preferência por empregar o pau-brasil e descobriu que havia alguns truques que garantiam a eficácia no lançamento das flechas. Não se pode fazer um arco de madeira verde, pois o arco enverga em demasia, o que diminui a sua força. Também não se pode utilizar a madeira muito seca, pois o arco pode quebrar na primeira puxada. É necessário achar um equilíbrio na umidade da madeira. Nada de extremos.

Tanto a experiência do indiano Buda, quanto a do índio Peri, servem como metáfora para constatarmos que nenhuma polarização em extremos é benéfica, seja para o indivíduo, seja para a sociedade. Nos cenários de polarização política, reforça-se a percepção de Martin Buber de que a vida e o pensamento se encontram diante da mesma problemática. Por um lado, a vida pode crer facilmente que tem que escolher entre individualismo e coletivismo. Por outro, o pensamento pode opinar que tem que escolher entre uma antropologia individualista e uma sociologia coletivista. Ambas são falsas disjunções, pois há uma terceira via excluída.

Por brevidade, podemos dizer que o “capitalismo selvagem” é um notório exemplo da consequência de um ponto de vista individualista. O “pensamento de colmeia”, que defende que a verdadeira realidade do indivíduo é o grupo e que só nele tem sentido, por sua vez, representa bem uma concepção coletivista. Como no caso do arco, quando levadas ao extremo, tais perspectivas podem criar uma maléfica espécie de coincidentia oppositorum, a coincidência dos opostos, ou uma tensão que pode fazer com que a sociedade quebre.

A Filosofia Personalista pode nos orientar na direção de uma terceira opção, uma via média. Utilizando pressupostos próprios ao Personalismo, pode-se reinterpretar a defesa dos direitos do sujeito, apresentada pelo individualismo, bem como a necessidade da construção de um projeto comum, defendida pelo coletivismo. Desse modo, em uma visão personalista, pode-se defender a primazia dos direitos da pessoa frente à sociedade, equilibrada pelo correlativo dever de servir a essa mesma sociedade. O ponto de equilíbrio para o cumprimento de tal visão, que pode exigir sacrifícios muito graves, deve ser o conceito de dignidade humana. Assim, o personalista é ao mesmo tempo diferente do individualista burguês e do fanático coletivista. Afasta-se tanto do “cada um por si” individualista, quanto do “nós contra eles” coletivista.

Chamam-se pessoas os seres dotados de razão. Os seres irracionais têm um valor meramente relativo, como meios. Já os seres racionais são fins em si mesmos. Estes têm uma dignidade. As pessoas são únicas, irrepetíveis e insubstituíveis. Em sua versão negativa, a norma personalista coincide com o imperativo kantiano: “Age de tal forma que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo como fim e nunca simplesmente como meio”. Por outro lado, em sua versão positiva, a norma ensina: “A pessoa é um bem com respeito ao qual só o amor constitui a atitude apta e válida”.

Para perceber a distinção entre valor e dignidade, retornamos nosso olhar à Índia, para citar um exemplo de vivência personalista prática: o de Madre Teresa de Calcutá. Ela vivia esse amor para com as pessoas, em decorrência de seu Amor por uma Pessoa. Certa vez, ao vê-la limpando a ferida infestada de vermes de um homem na rua, um repórter afirmou: “Eu não faria isso nem por um milhão de dólares!” Com um sorriso irônico no rosto ela respondeu: “Eu também não.”

Fábio Maia Bertato é Coordenador Associado do CLE – Unicamp e membro do IFE Campinas (fmbertato@cle.unicamp.br)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 24 de Julho de 2019, página A2 – Opinião.




Pizza de ideias


Era um final de sábado à tarde, quando, diante daquele forno à lenha com brasas flamejantes, onde assava um par de pizzas, meu afilhado questionou-me sobre minhas preferências político-partidárias no cenário atual, já que se dizia um pouco perdido para fazer suas escolhas. Respondi que, na política, sou um conservador burqueano. Também disse ser um conservador no casamento, já que ainda estou na primeira mulher.

Mas ressalvei que, em termos partidários, por aqui, não me sinto representado por nenhuma das trinta e nove agremiações políticas brasileiras e que muitas delas vendem ideias que misturam alhos com bugalhos. São capazes de defender propostas contraditórias entre si ou mesmo propor agendas políticas que servem mais para reforçar o discurso adversário.

Assistimos a tudo isso também na opinião pública. Basta ler uma seção de debates num jornal ou ouvir um telejornal com acadêmicos convidados. Muita tautologia e sofismo que passam por uma argumentação sólida e coerente. Górgias ficaria encabulado. Ao fim de nosso papo, sugeri ao meu estimado afilhado que ele fosse buscar na filosofia um começo de saída para seus anseios.

Afinal, nós vivemos as respostas para os problemas da vida e a política tem um enorme espaço vital. E, tanto quanto mais despercebida, essas respostas são fruto de uma escolha filosófica, seja essa ou aquela, ainda que a filosofia não mais pretenda avocar a responsabilidade acerca de um discurso onicompreensivo da realidade humana.

Por isso, é precisamente a falta de uma atitude genuinamente filosófica que torna as discussões sobre os temas mais prementes de nossa pauta política uma verdadeira arena analfabeta, pois elas produzem mais calor que luz. Como, então, a filosofia poderia contribuir para o bem do debate político? Por meio de duas tarefas importantes e complementares.

A primeira, a grosso modo, seria a de zelar pela “terapia do debate”, como já sugeriu Wittgenstein numa obra póstuma e, ali, nosso pensador austríaco propõe que a filosofia seja compreendida como uma atividade terapêutica. Por favor, nada de divã e psicanálise, mas de giz de cera e lousa: a filosofia deve “tratar” da linguagem, depurando-a e, desse modo, elucidar e esclarecer os falsos problemas e iluminar as verdadeiras aporias.

A pauta do debate público, que envolve não apenas a dimensão política, mas tudo aquilo que podemos chamar de “mundo da vida”, está repleta de inverdades, obscuridades, incertezas e imprecisões. Questione seu colega de trabalho e veja se há um mínimo de “clareza e distinção” sobre ideias básicas de política, religião, moral ou ciência. Ou, ainda, se há ao menos a percepção de que refinar tais ideias seja algo a se perseguir para um debate minimamente mais qualificado, sob pena de o embate de opiniões nos levar ao erro.

Longe de pretender dar a última palavra sobre os assuntos políticos, a filosofia deve procurar distinguir o joio do trigo e suscitar os problemas e soluções que geralmente não são vistos ou, por motivos ideológicos, são obstinada e deliberadamente ocultados.

A segunda tarefa da filosofia está justamente em abrir novos campos, confrontar outros aspectos, temas, problemas, dificuldades e dimensões da experiência humana no mundo, seja pelo “eu”, seja pelo “nós”. Uma compreensão minimamente bem formada sobre o ser humano percebe claramente que se, de fato, determinadas coisas são primordiais na ordem do tempo ou são condições para outras, disso não se segue que elas sejam as mais importantes ou primeiras de direito.

A alimentação é primordial para o ser humano, mas, salvo para quem vive da gulodice, a digestão, seguramente, não é a coisa mais importante de nossa existência. O aumento ou a redução da taxa de juros pela autoridade monetária vai influenciar minha decisão de investir na poupança ou no certificado de depósito bancário. Contudo, salvo para quem vive da cupidez, minhas aplicações não esgotam minha atenção cotidiana.

Aristóteles dizia que, quando a discussão é analfabeta, seus partidários assemelham-se a vegetais. Tem razão. É o quadro geral de hoje: uma abobrinha a moderar o debate entre repolhos e chuchus. Ao contrário da dita polarização política, falta-nos o rigor no pensar e no explicitar dos temas e conceitos supostos, além do reordenamento das questões propriamente ditas, segundo um senso de proporção e hierarquia. Cabe à filosofia nos ajudar nessas tarefas, a fim de que, ao cabo, todo o debate político não acabe numa pizza de ideias. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 07/03/2018, Página A-2, Opinião.




VIDA HUMANA E CRIATIVIDADE | 8º Seminário IFE Campinas/ACL


No próximo sábado, 28 de Outubro, acontece a oitava edição dos seminários IFE/ACL. O evento tem um duplo tema, que abarca duas diferentes palestras e que, no entanto, complementam-se ao abordarem aspectos da vida humana. Temos, então, vida humana e criatividade. As palestras serão com Tiago Amorim e Antônio Suárez Abreu. Confira detalhes abaixo.

VIDA HUMANA E CRIATIVIDADE | 8º Seminário IFE Campinas/ACL

PALESTRAS:

MAPA DO MUNDO PESSOAL
por Tiago Amorim: professor e escritor, autor de livros na área de filosofia e literatura, e atualmente mestrando em Antropologia no ISCTE-Lisboa. É estudioso da filosofia espanhola do séc. XX (Ortega y Gasset, Julián Marías, Xavier Zubiri).

15h40 – Coffee break

CRIATIVIDADE E INOVAÇÃO: UM PONTO DE VISTA COGNITIVO
por Antônio Suárez Abreu: professor universitário, doutor em Linguística pela USP, prof. colaborador da UNESP e membro da ACL. Tem experiência nos seguintes temas: linguística cognitiva, gramática e argumentação.

Local:
Academia Campinense de Letras
Rua Marechal Deodoro, 525, Centro, Campinas/SP

Dia e horário:
Sábado, 28 de Outubro de 2017, as 14h00

INSCRIÇÕES:
Clique aqui para fazer sua inscrição: https://goo.gl/forms/FcIFkGX33LHL5TGG2

ENTRADA FRANCA.

Realização:
IFE Campinas

Parceria:
Academia Campinense De Letras
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Mário Ferreira dos Santos e o nosso futuro - por Olavo de Carvalho


Quando a obra de um único autor é mais rica e poderosa que a cultura inteira do seu país, das duas uma: ou o país consente em aprender com ele ou recusa o presente dos céus e inflige a si próprio o merecido castigo pelo pecado da soberba, condenando-se ao definhamento intelectual e a todo o cortejo de misérias morais que necessariamente o acompanham.

Mário Ferreira ocupa no Brasil uma posição similar à de Giambattista Vico na cultura napolitana do século XVIII ou de Gottfried von Leibniz na Alemanha da mesma época: um gênio universal perdido num ambiente provinciano incapaz não só de compreendê-lo, mas de enxergá-lo. Leibniz ainda teve o recurso de escrever em francês e latim, abrindo assim algum diálogo com interlocutores estrangeiros. Mário está mais próximo de Vico no seu isolamento absoluto, que faz dele uma espécie de monstro. Quem, num ambiente intelectual prisioneiro do imediatismo mais mesquinho e do materialismo mais deprimente – materialismo compreendido nem mesmo como postura filosófica, mas como vício de só crer no que tem impacto corporal -, poderia suspeitar que, num escritório modesto da Vila Olímpia, na verdade uma passagem repleta de livros entre a cozinha e a sala de visitas, um desconhecido discutia em pé de igualdade com os grandes filósofos de todas as épocas, demolia com meticulosidade cruel as escolas de pensamento mais em moda e sobre seus escombros erigia um novo padrão de inteligibilidade universal?

Os problemas que Mário enfrentou foram os mais altos e complexos da filosofia, mas, por isso mesmo, estão tão acima das cogitações banais da nossa intelectualidade, que esta não poderia defrontar-se com ele sem passar por uma metanóia, uma conversão do espírito, a descoberta de uma dimensão ignorada e infinita. Foi talvez a premonição inconsciente do terror e do espanto – do thambos aristotélico – que a impeliu a fugir dessa experiência, buscando abrigo nas suas miudezas usuais e definhando pouco a pouco, até chegar à nulidade completa; decerto o maior fenômeno de auto-aniquilação intelectual já transcorrido em tempo tão breve em qualquer época ou país. A desproporção entre o nosso filósofo e os seus contemporâneos – muito superiores, no entanto, à atual geração – mede-se por um episódio transcorrido num centro anarquista, em data que agora me escapa, quando se defrontaram, num debate, Mário e o então mais eminente intelectual oficial do Partido Comunista Brasileiro, Caio Prado Júnior. Caio falou primeiro, respondendo desde o ponto de vista marxista à questão proposta como Leitmotiv do debate. Quando ele terminou, Mário se ergueu e disse mais ou menos o seguinte:

– Lamento informar, mas o ponto de vista marxista sobre os tópicos escolhidos não é o que você expôs. Vou, portanto, refazer a sua conferência antes de fazer a minha.

E assim fez. Muito apreciado no grupo anarquista, não por ser integralmente um anarquista ele próprio, mas por defender as idéias econômicas de Pierre-Joseph Proudhon, Mário jamais foi perdoado pelos comunistas por esse vexame imposto a uma vaca sagrada do Partidão. O fato pode ter contribuído em algo para o muro de silêncio que cercou a obra do filósofo desde a sua morte. O Partido Comunista sempre se arrogou a autoridade de tirar de circulação os autores que o incomodavam, usando para isso a rede de seus agentes colocados em altos postos na mídia, no mundo editorial e no sistema de ensino. A lista dos condenados ao ostracismo é grande e notável. Mas, no caso de Mário, não creio que tenha sido esse o fator decisivo. O Brasil preferiu ignorar o filósofo simplesmente porque não sabia do que ele estava falando. Essa confissão coletiva de inépcia tem, decerto, o atenuante de que as obras do filósofo, publicadas por ele mesmo e vendidas de porta em porta com um sucesso que contrastava pateticamente com a ausência completa de menções a respeito na mídia cultural, vinham impressas com tantas omissões, frases truncadas e erros gerais de revisão, que sua leitura se tornava um verdadeiro suplício até para os estudiosos mais interessados – o que, decerto, explica mas não justifica. A desproporção evidenciada naquele episódio torna-se ainda mais eloqüente porque o marxismo era o centro dominante ou único dos interesses intelectuais de Caio Prado Júnior, ao passo que, no horizonte infinitamente mais vasto dos campos de estudo de Mário Ferreira, era apenas um detalhe ao qual ele não poderia ter dedicado senão alguns meses de atenção: nesses meses, aprendera mais do que o especialista que dedicara ao assunto uma vida inteira.

A mente de Mário Ferreira era tão formidavelmente organizada que para ele era a coisa mais fácil localizar imediatamente no conjunto da ordem intelectual qualquer conhecimento novo que lhe chegasse desde área estranha e desconhecida. Numa outra conferência, interrogado por um mineralogista de profissão que desejava saber como aplicar ao seu campo especializado as técnicas lógicas que Mário desenvolvera, o filósofo respondeu que nada sabia de mineralogia mas que, por dedução desde os fundamentos gerais da ciência, os princípios da mineralogia só poderiam ser tais e quais – e enunciou quatorze. O profissional reconheceu que, desses, só conhecia oito.

A biografia do filósofo é repleta dessas demonstrações de força, que assustavam a platéia, mas que para ele não significavam nada. Quem ouve as gravações das suas aulas, registradas já na voz cambaleante do homem afetado pela grave doença cardíaca que haveria de matá-lo aos 65 anos, não pode deixar de reparar na modéstia tocante com que o maior sábio já havido em terras lusófonas se dirigia, com educação e paciência mais que paternais, mesmo às platéias mais despreparadas e toscas. Nessas gravações, pouco se nota dos hiatos e incongruências gramaticais próprios da expressão oral, quase inevitáveis num país onde a distância entre a fala e a escrita se amplia dia após dia. As frases vêm completas, acabadas, numa seqüência hierárquica admirável, pronunciadas em recto tono, como num ditado.

Quando me refiro à organização mental, não estou falando só de uma habilidade pessoal do filósofo, mas da marca mais característica de sua obra escrita. Se, num primeiro momento, essa obra dá a impressão de um caos inabarcável, de um desastre editorial completo, o exame mais demorado acaba revelando nela, como demonstrei na introdução à Sabedoria das Leis Eternas, um plano de excepcional clareza e integridade, realizado quase sem falhas ao longo dos 52 volumes da sua construção monumental, a Enciclopédia das Ciências Filosóficas.

Além dos maus cuidados editoriais – um pecado que o próprio autor reconhecia e que explicava, com justeza, pela falta de tempo –, outro fator que torna difícil ao leitor perceber a ordem por trás do caos aparente provém de uma causa biográfica. A obra escrita de Mário reflete três etapas distintas no seu desenvolvimento intelectual, das quais a primeira não deixa prever em nada as duas subseqüentes, e a terceira, comparada à segunda, é um salto tão formidável na escala dos graus de abstração que aí parecemos nos defrontar já não com um filósofo em luta com suas incertezas e sim com um profeta-legislador a enunciar leis reveladas ante as quais a capacidade humana de discutir tem de ceder à autoridade da evidência universal.

A biografia interior de Mário Ferreira é realmente um mistério, tão grandes foram os dois milagres intelectuais que a moldaram. O primeiro transformou um mero ensaísta e divulgador cultural em filósofo na acepção mais técnica e rigorosa do termo, um dominador completo das questões debatidas ao longo de dois milênios, especialmente nos campos da lógica e da dialética. O segundo fez dele o único – repito, o único – filósofo moderno que suporta uma comparação direta com Platão e Aristóteles. Este segundo milagre anuncia-se ao longo de toda a segunda fase da obra, numa seqüência de enigmas e tensões que exigiam, de certo modo, explodir numa tempestade de evidências e, escapando ao jogo dialético, convidar a inteligência a uma atitude de êxtase contemplativo. Mas o primeiro milagre, sobrevindo ao filósofo no seu quadragésimo terceiro ano de idade, não tem nada, absolutamente nada, que o deixe prever na obra publicada até então. A família do filósofo foi testemunha do inesperado. Mário fazia uma conferência, no tom meio literário, meio filosófico dos seus escritos usuais, quando de repente pediu desculpas ao auditório e se retirou, alegando que “tivera uma idéia” e precisava anotá-la urgentemente. A idéia era nada mais, nada menos que as teses numeradas destinadas a constituir o núcleo da Filosofia Concreta, por sua vez coroamento dos dez volumes iniciais da Enciclopédia, que viriam a ser escritos uns ao mesmo tempo, outros em seguida, mas que ali já estavam embutidos de algum modo. A Filosofia Concreta é construída geometricamente como uma seqüência de afirmações auto-evidentes e de conclusões exaustivamente fundadas nelas – uma ambiciosa e bem sucedida tentativa de descrever a estrutura geral da realidade tal como tem de ser concebida necessariamente para que as afirmações da ciência façam sentido.

Mário denomina a sua filosofia “positiva”, mas não no sentido comteano. Positividade (do verbo “pôr”) significa aí apenas “afirmação”. O objetivo da filosofia positiva de Mário Ferreira é buscar aquilo que legitimamente se pode afirmar sobre o conjunto da realidade à luz do que foi investigado pelos filósofos ao longo de vinte e quatro séculos. Por baixo das diferenças entre escolas e correntes de pensamento, Mário discerne uma infinidade de pontos de convergência onde todos estiveram de acordo, mesmo sem declará-lo, e ao mesmo tempo vai construindo e sintetizando os métodos de demonstração necessários a fundamentá-los sob todos os ângulos concebíveis.

Daí que a filosofia positiva seja também “concreta”. Um conhecimento concreto, enfatiza ele, é um conhecimento circular, que conexiona tudo quanto pertence ao objeto estudado, desde a sua definição geral até os fatores que determinam a sua entrada e saída da existência, a sua inserção em totalidades maiores, o seu posto na ordem dos conhecimentos, etc. Por isso é que à seqüência de demonstrações geométricas se articula um conjunto de investigações dialéticas, de modo que aquilo que foi obtido na esfera da alta abstração seja reencontrado no âmbito da experiência mais singular e imediata. A subida e descida entre os dois planos opera-se por meio da decadialética, que enfoca o seu objeto sob dez aspectos:

 

1. Campo sujeito-objeto. Todo e qualquer ser, seja físico, espiritual, existente, inexistente, hipotético, individual, universal, etc. é simultaneamente objeto e sujeito, o que é o mesmo que dizer – em termos que não são os usados pelo autor – receptor e emissor de informações. Se tomarmos o objeto mais alto e universal – Deus –, Ele é evidentemente sujeito, e só sujeito, ontologicamente: gerando todos os processos, não é objeto de nenhum. No entanto, para nós, é objeto dos nossos pensamentos. Deus, que ontologicamente é puro sujeito, pode ser objeto do ponto de vista cognitivo. No outro extremo, um objeto inerte, como uma pedra, parece ser puro objeto, sem nada de sujeito. No entanto, é óbvio que ela está em algum lugar e emite aos objetos circundantes alguma informação sobre a sua presença, por exemplo, o peso com que ela repousa sobre outra pedra. Com uma imensa gradação de diferenciações, cada ente pode ser precisamente descrito nas suas respectivas funções de sujeito e objeto. Conhecer um ente é, em primeiro lugar, saber a diferenciação e a articulação dessas funções. Alguns exercícios para o leitor se aquecer antes de entrar no estudo da obra de Mário Ferreira: (1) Diferencie os aspectos e ocasiões em que um fantasma é sujeito e objeto. (2) E uma idéia abstrata, quando é sujeito, quando é objeto? (3) E um personagem de ficção, como Dom Quixote?

2. Campo da atualidade e virtualidade. Dado um ente qualquer, pode-se distinguir entre o que ele é efetivamente num certo momento e aquilo em que ele pode (ou não) se transformar no instante seguinte. Alguns entes abstratos, como por exemplo a liberdade ou a justiça, podem se transformar nos seus contrários. Mas um gato não pode se transformar num antigato.

3. Distinção entre as virtualidades (possibilidades reais) e as possibilidades não-reais, ou meramente hipotéticas. Toda possibilidade, uma vez logicamente enunciada, pode ser concebida como real ou irreal. Só podemos obter essa gradação pelo conhecimento dialético que temos das potências do objeto.

4. Intensidade e extensidade. Mário toma esses termos emprestados do físico alemão Wilhelm Ostwald (1853-1932), separando aquilo que só pode variar em diferença de estados, como por exemplo o sentimento de temor ou a plenitude de significados de uma palavra, e aquilo que se pode medir por meio de unidades homogêneas, como por exemplo linhas e volumes.

5. Intensidade e extensidade nas atualizações. Quando os entes passam por mudanças, elas podem ser tanto de natureza intensiva quanto extensiva. A descrição precisa das mudanças exige a articulação dos dois pontos de vista.

6. Campo das oposições no sujeito: razão e intuição. O estudo de qualquer ente sob os cinco primeiros aspectos não pode ser feito só com base no que se sabe deles, mas tem de levar em conta a modalidade do seu conhecimento, especialmente a distinção entre os elementos racionais e intuitivos que entram em jogo.

7. Campo das oposições da razão: conhecimento e desconhecimento. Se a razão fornece o conhecimento do geral e a intuição o do particular, em ambos os casos há uma seleção: conhecer é também desconhecer. Todos os dualismos da razão – concreto-abstrato, objetividade-subjetividade, finito-infinito, etc. – procedem da articulação entre conhecer e desconhecer. Não se conhece um objeto enquanto não se sabe o que tem de ser desconhecido para que ele se torne conhecido.

8. Campo das atualizações e virtualizações racionais. A razão opera sobre o trabalho da intuição, atualizando ou virtualizando, isto é, trazendo para o primeiro plano ou relegando para um plano de fundo os vários aspectos do objeto percebido. Toda análise crítica de conceitos abstratos supõe uma clara consciência do que aí foi atualizado e virtualizado.

9. Campo das oposições da intuição. A mesma separação do atual e do virtual já acontece no nível da intuição, que é espontaneamente seletiva. Se, por exemplo, olhamos esta revista como uma singularidade, fazemos abstração dos demais exemplares da mesma tiragem. Tal como a razão, a intuição conhece e desconhece.

10. Campo do variante e do invariante. Não há fato absolutamente novo nem absolutamente idêntico a seus antecessores. Distinguir os vários graus de novidade e repetição é o décimo e último procedimento da decadialética.

 

Mário complementa o método com a pentadialética, uma distinção de cinco planos diferentes nos quais um ente ou fato pode ser examinado: como unidade, como parte de um todo do qual é elemento, como capítulo de uma série, como peça de um sistema (ou estrutura de tensões) e como parte do universo.

Nos dez primeiros volumes da Enciclopédia, Mário aplica esses métodos à resolução de vários problemas filosóficos divididos segundo a distinção tradicional entre as disciplinas que compõem a filosofia – lógica, ontologia, teoria do conhecimento, etc. –, compondo assim a armadura geral com que, na segunda série, se aprofundará no estudo pormenorizado de determinados temas singulares.

Aconteceu que, na elaboração dessa segunda série, ele se deteve mais demoradamente no estudo dos números em Platão e Pitágoras, o que acabou por determinar o upgrade espetacular que marca a segunda metanóia do filósofo e os dez volumes finais da Enciclopédia, tal como expliquei na introdução à Sabedoria das Leis Eternas. O livro Pitágoras e o Tema do Número, um dos mais importantes do autor, dá testemunho da mutação. O que chamou a atenção de Mário foi que, na tradição pitagórico-platônica, os números não eram encarados como meras quantidades, no sentido em que são usados nas medições, mas sim como formas, isto é, articulações lógicas de relações possíveis. O que Pitágoras queria dizer com sua famosa afirmação de que “tudo são números” não é que todas as qualidades diferenciadoras podiam se reduzir a quantidades, mas que as quantidades mesmas eram por assim dizer qualitativas: cada uma delas expressava um certo tipo de articulação de tensões cujo conjunto formava um objeto. Mas, se de fato é assim, conclui Mário, a seqüência dos números inteiros não é apenas uma contagem, mas uma série ordenada de categorias lógicas. Contar é, mesmo inconscientemente, galgar os degraus de uma compreensão progressiva da estrutura do real. Vejamos, só para exemplificar, o que acontece no trânsito do número um ao número cinco. Todo e qualquer objeto é necessariamente uma unidade. Ens et unum convertuntur, “o ser e a unidade são a mesma coisa”, dirá Duns Escoto. Ao mesmo tempo, porém, esse objeto conterá em si alguma dualidade essencial. Mesmo a unidade simples, ou Deus, não escapa ao dualismo gnoseológico do conhecido e do desconhecido, já que aquilo que Ele conhece de si mesmo é desconhecido por nós. Ao mesmo tempo, os dois aspectos da dualidade têm de estar ligados entre si, o que exige a presença de um terceiro elemento, a relação. Mas a relação, ao articular os dois aspectos anteriores, estabelece entre eles uma proporção, ou quaternidade. A quaternidade, considerada como forma diferenciada do ente cuja unidade abstrata captamos no princípio, é por sua vez uma quinta forma. E assim por diante.

A mera contagem exprime, sinteticamente, o conjunto das determinações internas e externas que compõem qualquer objeto material ou espiritual, atual ou possível, real ou irreal. Os números são portanto “leis” que expressam a estrutura da realidade. O próprio Mário confessa não saber se essa sua versão muito pessoal do pitagorismo coincide materialmente com a filosofia do Pitágoras histórico. Seja uma descoberta ou uma redescoberta, a filosofia de Mário descerra diante dos nossos olhos, de maneira diferenciada e meticulosamente acabada, um edifício doutrinal inteiro que, em Pitágoras – e mesmo em Platão – estava apenas embutido de maneira compacta e obscura. Ao mesmo tempo, em A Sabedoria dos Princípios e demais volumes finais da Enciclopédia, ele dá ao seu próprio projeto filosófico um alcance incomparavelmente maior do que se poderia prever até mesmo pela magistral Filosofia Concreta. A esta altura, aquilo que começara como conjunto de regras metodológicas se transmuta num sistema completo de metafísica, a mathesis megiste ou “ensinamento supremo”, ultrapassando de muito a ambição originária da Enciclopédia e elevando a obra de Mário Ferreira ao estatuto de uma das mais altas realizações do gênio filosófico de todos os tempos.

Não tenho a menor dúvida de que, quando passar a atual fase de degradação intelectual e moral do país e for possível pensar numa reconstrução, essa obra, mais que qualquer outra, deve tornar-se o alicerce de uma nova cultura brasileira. A obra, em si, não precisa disso: ela sobreviverá muito bem quando a mera recordação da existência de algo chamado “Brasil” tiver desaparecido. O que está em jogo não é o futuro de Mário Ferreira dos Santos: é o futuro de um país que a ele não deu nada, nem mesmo um reconhecimento da boca para fora, mas ao qual ele pode dar uma nova vida no espírito.

 

Olavo de Carvalho lecionou Filosofia Política na Pontifícia Universidade Católica do Paraná de 2001 a 2005 e é autor de vários livros bem conhecidos, entre os quais O Jardim das Aflições: de Epicuro à Ressurreição de César – Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil (1995), Aristóteles em Nova Perspectiva (1996) e O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras (1996). Colunista de vários jornais brasileiros que o expulsaram de suas páginas quando passou a denunciar as atividades criminosas do Foro de São Paulo, ele hoje vive em Richmond, Virginia, EUA, como correspondente do Diário do Comércio, de São Paulo. Olavo de Carvalho foi também o primeiro estudioso brasileiro a retirar do ostracismo as obras de Mário Ferreira dos Santos, pronunciando a respeito inúmeros cursos e conferências e preparando, com introdução e notas, a edição do manuscrito A Sabedoria das Leis Eternas (São Paulo: É-Realizações, 2001). Website: www.olavodecarvalho.org.

NOTAS:

[1] São Paulo: É-Realizações, 2001.

Publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta & Contradicta, Edição nº 3, disponível [online] em <http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-3/mario-ferreira-dos-santos-e-o-nosso-futuro/>




Uma droga de argumento


O STF está em vias de decidir sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. É uma ideia, com o perdão do trocadilho, bem opiácea, por produzir, nas mentes, uma expectativa de efeito narcótico, em regra, tranquilizante, já que seria a óbvia solução diante dos problemas sociais envolvidos no consumo de narcóticos, como a violência gerada pelo tráfico, a redução de danos para a sociedade e o enfrentamento do problema como uma questão de saúde pública.

Há dois argumentos-chave, um filosófico e outro pragmático. Hoje, ficaremos no primeiro: o Direito Penal não deve ser ativado nos casos em que uma conduta pessoal não interfira nos direitos alheios. É uma espécie de progressão da mentalidade reflexiva. Primeiro, o impensável torna-se pensável e, subitamente, deixa a heterodoxia e se transforma em ortodoxia, cuja verdade surge tão elementar que, a partir de então, ninguém mais se lembra que já se pensou de forma diferente.

O desejo humano de tomar substâncias que alteram a mente é tão velho quanto a própria sociedade, à semelhança das tentativas de regulação de seu consumo. Mas nenhuma época humana teve de lidar com um duplo dilema: a disponibilidade de inúmeras drogas diferentes e a demanda crescente de um conjunto de cidadãos desejosos do exercício de seu “direito” de gozar de seus próprios prazeres à sua maneira.

Numa sociedade livre, a lei deveria permitir que os indivíduos pudessem fazer o que lhes conviessem, incluídos desejos e apetites, contanto que assumissem as consequências de suas próprias escolhas e não causassem danos diretos aos outros. A ideia, que remonta a Mill, é muito atraente na teoria.

Na prática, a teoria, como dizia Goethe, é cinza e, verde, a árvore da vida: é muito difícil garantir que assumamos todas as consequências de nossos atos, ainda mais quando o consumo de drogas tem o efeito imediato de reduzir a liberdade individual e, como resultado, mitigar o senso de responsabilidade.

Essa ótica libertária impede a sociedade de conceber qualquer código moral. No limite, seria como se não tivéssemos nada em comum, mas nosso “contrato social” de não interferência mútua permaneceria, enquanto buscássemos nossos prazeres privados. Você acende seu cigarro aí e eu me injeto aqui.

Em minha experiência profissional, a demanda recreativa de drogas atinge não apenas o usuário. Sempre leva junto o cônjuge, filhos, colegas de trabalho, amigos e parentes. Ninguém, exceto um eremita, é uma ilha. Estou saturado de mandar internar judicialmente drogadictos – que começaram como inocentes usuários – a pedido, justamente, daquelas pessoas que, segundo os defensores da descriminalização, estariam imunes à conduta daqueles.

Por isso, a aplicação do princípio de Mill às ações humanas em geral beira à inutilidade, quanto mais para justificar a descriminalização do porte de drogas para uso privado. Eis o erro de nosso filósofo utilitarista: os assuntos humanos – sobretudo no campo penal – não podem ser decididos por um apelo a uma regra infalível, expressa em poucas palavras, cuja mera aplicação possa decidir corretamente todos os casos. Fundamentalismo filosófico não é preferível à sua variante religiosa.

Todos valorizamos a liberdade, mas também a ordem; às vezes, sacrificamos a liberdade em favor da ordem e, outras vezes, a ordem em prol da liberdade. Uma vez retirado o véu, nesse caso, da proibição das drogas, será difícil de restaurá-lo, mesmo quando a liberdade recém descoberta revelar-se ter sido socialmente desastrosa.

Mill, anos após, viu as limitações de seu próprio princípio na ação social, quando negou que todos os prazeres tinham igual significado para a existência humana: era melhor, disse ele, ser um Sócrates descontente a um tolo satisfeito. Assim, nosso pensador inglês concluiu que nem todas as liberdades são valorativamente iguais e nem todas as limitações são impeditivas de seu exercício.

Com a palavra os demais ministros que ainda não apresentaram seus votos. Espero que se recordem que caprichos pessoais não são fontes do direito e que o homem mais livre não é aquele que obedece servilmente a seus apetites, porque a premissa da descriminalização defende o contrário, o que a torna, em outro trocadilho, uma droga de argumento.

E, caso se esqueçam, lembrem-se que chancelarão outro parasitismo social. Já descemos ladeira abaixo nesse tema da descriminalização. Mas não precisamos chegar ao fim da rua, ainda mais quando essa rua parece nos levar para um beco sem saída. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 22/03/2017, Página A-2, Opinião.