Considerações sobre a filosofia da ciência (por Gustavo Bravo)


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Na sociedade em que vivemos, nenhuma forma de conhecimento tem um peso tão grande quanto o da ciência. Classificar qualquer informação como sendo um dado científico é suficiente para que esse dado seja tratado na esfera pública como verdadeiro. Ciência e verdade são conceitos profundamente interligados em nosso senso comum. Temos muitos motivos para estabelecer essa associação: a capacidade de prever fenômenos de diversos tipos, as incontáveis realizações e inovações técnicas propiciadas pela química, a física e a medicina, a capacidade de explicação para eventos e processos que eram totalmente desconhecidos, e muitas outras coisas.

Mas se a eficácia dos métodos de previsão e transformação da realidade material empregada pelas diversas ciências é em larga medida incontestável, o estatuto propriamente epistemológico das ciências é bastante problemático. Ao dizer que o “estatuto epistemológico” da ciência é problemático, quero dizer que as relações entre ciência e verdade, bem como aquilo que torna a ciência natural um conhecimento diferente de outras formas de conhecimento é matéria de controvérsia entre os especialistas no assunto e que a imagem do mundo que a ciência nos mostra não está sujeita a uma única interpretação. Fazendo um panorama de alguns problemas levantados por filósofos da ciência, pretendo evidenciar que, apesar do sucesso pragmático da imagem científica do mundo, existem muitas questões complexas ainda não resolvidas em torno do conhecimento científico.

Uma primeira observação, feita por filósofos da ciência como Alan Chalmers (1939 – ), é que não basta apenas dizer que a ciência “funciona”, logo, ela é verdadeira. É preciso ter em mente que teorias erradas podem “funcionar”. A teoria geocêntrica (que afirmava ser a Terra o centro do universo) de Ptolomeu explicava e era capaz de dar conta de algumas das regularidades observadas na abóbada celeste, entretanto, ela estava errada e viria a ser substituída pela teoria heliocêntrica de Copérnico e Galileu. Mas não seria apenas o caso de mais observação, de mais capacidade explicativa, para corrigir a teoria? Acontece que nada exclui a possibilidade de duas teorias incompatíveis possuírem alto poder preditivo e explicativo para os mesmos fenômenos. No que diz respeito a observação, é interessante notar que observações feitas com propósito científico nunca são “puras”, independentes das teorias que as orientam, pois a própria seleção dos fatores e propriedades relevantes a serem observados e mensurados dependem de algum tipo de teoria – ainda que não muito desenvolvida – subjacente a prática observacional. No caso das realizações técnicas grandiosas, elas não são suficientes para provar que teorias científicas empregadas na sua realização são verdadeiras. Provavelmente os egípcios não possuíam os conhecimentos de física, arquitetura e engenharia que nós possuímos hoje, entretanto, construíram as pirâmides, que com toda certeza são algumas das mais impressionantes realizações arquitetônicas de todos os tempos. A questão sobre a “verdade” das teorias não pode ser resolvida mediante apelos simplistas sobre a eficácia técnica e/ou preditiva.

Ao longo do século XX, apoiado por considerações retiradas da história da ciência, Thomas Kuhn (1922 – 1996) defendeu – grosso modo ­– que aquilo que consideramos ciência hoje não foi sempre assim e que a ideia de que o conhecimento científico progride rumo a uma adequação cada vez mais exata com a realidade é um erro. Segundo Kuhn, os pesquisadores que partilham de pressupostos teóricos comuns e que orientam a sua atividade seguindo um programa com regras bem estabelecidas operam dentro de um paradigma, e a história da ciência é uma constante substituição de paradigmas por outros, sem que haja uma base puramente racional para afirmarmos que um paradigma é superior a outro. É o pertencimento a um paradigma estável e razoavelmente coerente que configura e diferencia o que é ciência do que não é. Neste sentido, a ciência aristotélica medieval não era pseudociência ou menos ciência do que a teoria da relatividade de Einstein, era apenas um paradigma diferente e incomensurável em relação a esta. Os critérios que fazem com que um paradigma seja adotado ou rejeitado sofrem influências de ordem social, como as necessidades econômicas e materiais da sociedade em questão ou o valor que se atribui a resolução de determinados problemas em vez de outros. A ciência possui períodos relativos de estabilidade assim como alguns períodos de crise, no qual alguns modelos teóricos e práticas são postos em cheque e são substituídos por outros.

Ainda que não concordemos com as teses elaboradas por Kuhn em A estrutura das Revoluções Científicas, seu relato da história da ciência nos faz perder o preconceito ingênuo de que a ciência naturalmente se desenvolve rumo a uma concepção cada vez mais verdadeira da realidade. A filosofia descritiva da ciência de Kuhn abriu o campo de investigações para a sociologia do conhecimento científico, uma disciplina voltada para a investigação das condições sociais da produção de conhecimentos científicos e que conta com nomes como Bruno Latour (1947 – ) e David Bloor (1942 – ).

Apesar das dificuldades de critérios de separação entre ciência e não ciência (o famoso problema da demarcação), um ponto relativamente pacífico é que teorias científicas são construções humanas que explicam e preveem eventos e empregam uma linguagem própria que carrega em si um sentido. Essas características colocam um problema clássico na filosofia, mas que ganha novos contornos na filosofia da ciência, que é o problema do estatuto epistemológico das teorias científicas. Tendemos, por força do hábito, a acreditar que quando um físico enuncia que o mundo está composto por partículas e ondas de tamanho ínfimo essas entidades existem realmente, e são independentes de nossas teorias sobre como as coisas funcionam. Partículas e ondas existiam desde a origem do universo, os cientistas é que demoraram a descobri-las. Nessa visão realista, teorias científicas descrevem a estrutura da realidade tal como ela é em si mesma. No entanto, as coisas não são tão simples assim, pois algumas entidades postuladas por teorias científicas como certas partículas e suas propriedades são completamente inobserváveis, como os quarks. Mas se elas não podem ser observadas o que é que torna válida e verdadeira a afirmação de que essas entidades realmente existem?

Em relação às entidades inobserváveis, os antirrealistas sustentam uma posição agnóstica: nós não podemos afirmar a existência dessas entidades, mas apenas utilizá-las como instrumentos teóricos para derivar certas conclusões empíricas e dar conta de certos fenômenos. Um dos argumentos mais conhecidos contra a posição antirrealista é o chamado “argumento sem milagres” elaborado por Hilary Putnam (1926 – ). Segundo esse argumento, a posição realista é a única que não faz do sucesso da ciência um milagre. Já que muitas de nossas teorias científicas são construídas com hipóteses que envolvem a existência de entidades de inobserváveis e essas teorias são empiricamente bem sucedidas (elas explicam fenômenos e são capazes de prever eventos), temos um indício forte de que essas entidades realmente existem. O argumento do milagre apela para a noção de sucesso empírico; entretanto, como já observei anteriormente, dizer que uma teoria funciona não significa dizer que ela é verdadeira, ou seja, não significa que ela descreve adequadamente aquilo que realmente existe e como existe. Muitos exemplos na história da ciência são utilizados pelos antirrealistas para mostrar que teorias falsas se adaptavam bem aos dados e previam consequências empiricamente observáveis, a já citada teoria de Ptolomeu é um exemplo disso. Os realistas respondem dizendo que, se os dados empíricos fossem adaptáveis a uma variedade muito grande de teorias diferentes esse realmente seria um ponto a favor dos antirrealistas, entretanto, na maioria dos casos é difícil encontrar uma teoria que dê conta dos fenômenos observados e que podemos elaborar critérios para determinar quais são as teorias mais adequadas aos dados como o poder explicativo, o poder preditivo e a simplicidade da explicação, por exemplo.

O debate intenso entre realistas e antirrealistas mostra que de forma alguma podemos tratar dados científicos como sendo pura e simplesmente verdadeiros, considerando como um dado evidente que a ciência procede através de um método rigoroso e testa amplamente suas conclusões e por isso seus resultados nos mostram realmente o que as coisas são. Entre os filósofos envolvidos com este debate estão Bas Van Fraassen (1941 – ), Stathis Psillos(1965 – ), Ian Hacking(1936 – ) e muitos outros.

Há ainda outra ordem de problemas que concerne à questão sobre quais são as condições ontológicas de possibilidade de qualquer teoria científica. Todas as ciências naturais operam com conceitos como o de causalidade, de classe e de lei. Todas são possíveis graças a algum tipo de ordem e regularidade encontradas na natureza, assim como a possibilidade da inteligência humana de representar essa ordem e essa regularidade através de modelos teóricos, muitas vezes de caráter matemático. Essas condições são pressupostos das teorias científicas e, por isso mesmo, não podem ser explicadas por elas. A física usa abundantemente a matemática na mensuração e quantificação de processos naturais, mas uma teoria que explique como é possível quantificar um evento que em si mesmo não é feito de números (por exemplo, a mensuração da atividade das moléculas de um gás) já não é mais uma teoria física, mas uma espécie de metateoria que vai além da física. Do mesmo modo, explicar o que é causalidade, o que é uma lei científica e o que é uma classe é algo que vai além das ciências particulares e que transcende a todas elas na medida em que seus objetos constituem a base de qualquer ciência natural possível. São problemas como esses, de ordem metacientífica, que estão no âmbito da filosofia e que são objetos de uma disciplina bastante recente chamada de “metafísica da ciência”.

Quando se postula algo como a “lei da gravidade” ou a “lei da inércia”, o que devemos entender por isso? É uma simples regularidade que ocorre e poderia não ocorrer no futuro ou é algo que necessariamente tem de ser assim dadas certas condições ambientes? A prática preditiva da ciência parece indicar que as leis que estruturam os processos naturais são necessárias e universais, caso contrário, a predição não seria possível e não passaria de um belo chute. Entretanto, a partir de que tipo de observação ou teoria científica poderíamos validar os conceitos de necessidade e de universalidade, uma vez que qualquer observação se limita a um evento particular, espaço-temporalmente circunscrito? A investigação desse tipo de questão depende da elaboração de conceitos puramente abstratos e pressupõe que a ciência é mais do que um simples instrumento para manipular a realidade, pressupõe que ao menos alguns dos enunciados científicos dizem respeito a realidades independentes de nossas representações, numa palavra, a metafísica da ciência pressupõe algum nível de realismo científico e ela é uma disciplina filosófica desenvolvida em um espírito de colaboração com as diversas ciências naturais, dado que suas especulações não são feitas no vazio, mas sobre os dados fornecidos pelas teorias científicas. São muitos os filósofos que se dedicaram e ainda continuam se dedicando à metafísica da ciência como Michel Ghins, Alexander Bird, E.J. Lowe (1950 – 2014), Wolfgang Smith(1930 – ), Nancy Cartwright(1944 – ) e Tim Maudlin(1958 – ) para citar apenas alguns.

Portanto, longe de possuir a transparência que o senso comum lhe atribui, a prática científica levanta uma série de questões muito interessantes e complexas de cunho propriamente filosófico que ainda estão distantes de consensos substanciais. É evidente que o médico, o físico e o engenheiro nunca precisarão de um filósofo da ciência para lhes dizer o que fazer, mas também é verdade que uma compreensão adequada da própria teoria e prática científica, de seus limites e de suas possibilidades, é fundamental se quisermos entender verdadeiramente o que a ciência está nos dizendo sobre o mundo.

 

Gustavo Bravo é graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro e professor de filosofia no ensino médio.

Publicado originalmente no site da Revista Dicta&Contradicta