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Sobre o filme "Sniper Americano"

Cinema | 12/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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Adaptado do livamerican-sniper-poster-internationalro “American Sniper: The Autobiography of the Most Lethal Sniper in U.S. Militar History”, o filme “Sniper americano”, do diretor Clint Eastwood, conta a história real do fuzileiro naval norte-americano Chris Kyle (Bradley Cooper), considerado o melhor atirador de elite da história dos Estados Unidos.

O filme, um fenômeno de bilheteria (atingiu 90,2 milhões de dólares na estreia em janeiro deste ano),  tem despertado uma intensa discussão pública nos EUA, dividindo liberais e conservadores no debate sobre temas como o papel da guerra, o heroísmo dos soldados, patriotismo, a invasão americana ao Iraque, entre outros. O protagonista, conhecido como “a lenda”, entre os militares americanos e com o apelido de “o demônio de Ramadi”, entre os inimigos iraquianos, seria, para alguns, um moderno herói de guerra, mas, para outros, não passaria de um patriota psicopata.

Para contribuir para o debate, sugerimos a seguir a leitura do artigo escrito por Thiago Cortês, publicado originalmente no site Mídia sem Máscara (http://www.midiasemmascara.org/).

Antes, porém, apresentamos o trailer com uma cena que, por si só, já é um convite a este belo filme:

 

 

American Sniper: lobos e ovelhas

POR THIAGO CORTÊS 

O novo filme de Clint Eastwood começa com o sermão de um pastor sobre o apóstolo Paulo. O que Paulo ensinava e fazia, explica o ministro, era motivo de escândalo para a maioria dos seus contemporâneos. Mas Paulo tinha dentro de si a convicção de estar fazendo a coisa certa.

Chris Kyle está no culto com sua família. Ele ainda é uma criança, mas ouve atento o pastor explicar que somos incapazes de decifrar o padrão de Deus nos eventos que ocorrem na nossa vida. Só podemos considerar real e verdadeiro o que podemos enxergar?

Não se engane pelo cenário da história ou seu contexto histórico. American Sniper não é sobre a Guerra do Iraque – nem contra e nem a favor – ou sobre qualquer aspecto da vida militar.

O drama de Clint Eastwood é sobre os dilemas morais enfrentados por homens de convicção em um mundo no qual a defesa de qualquer princípio – por mais óbvio que seja – é vista como uma atitude fundamentalista. A convicção é uma anomalia. O mundo jaz do relativismo.

Se você quiser defender uma visão moral, prepare-se para enfrentar dilemas terríveis. Se você quiser se sacrificar por algo maior, prepare-se para a solidão. Sim, solidão: ao dizer que está disposto a morrer pelo seu país, Kyle ouve da futura esposa: “você é um egocêntrico!”.

Chris Kyle é filho de um diácono e de uma professora de escola bíblica dominical. Desde cedo ele aprendeu que a defesa dos princípios básicos de certo e errado o colocaria em conflito com a maioria que há muito abandonou o “preto-no-branco” por mil tons de cinza.

Ainda menino, Kyle intervém em uma briga para defender seu irmão mais novo de um típico valentão. Ao ver seu irmão apanhando, ele não tem dúvidas: soca o garoto maior até lhe tirar sangue. Ao invés de lhe repreender, o seu pai lhe explica que as pessoas são divididas em três grupos: ovelhas, predadores e cães pastores que protegem as ovelhas “do Mal”.

“Algumas pessoas preferem acreditar que o Mal não existe. Mas se algum dia ele aparecer na sua porta, não saberão como se proteger. Essas são as ovelhas. E então existem os predadores. Eu e sua mãe não estamos criando ovelhas ou predadores”, adverte o diácono.

Kyle cresce como um típico jovem dos nossos dias. É um beberrão e mulherengo. Mas ele enxerga o que os outros não enxergam. Em certo dia, o noticiário que para seu irmão é entediante, para Chris Kyle é perturbador. E, como Saulo, ele caí do cavalo.

Como a luz do dia

As escolhas daquele que se tornaria o atirador de elite mais letal da história militar dos Estados Unidos são pautadas por um antiquado senso de moralidade. Não há espaço para o cinismo ou a meia-verdade no horizonte de Chris Kyle. Ele enxerga o Mal tão claro como a luz do dia. É essa característica singular que irá definir o seu destino para sempre.

Quando poderia se arriscar menos, Kyle desce às profundezas do labirinto infernal de Ramadi para ensinar soldados novatos sobreviverem um dia a mais. Quando sua esposa grávida pede que ele fique em casa, Chris Kyle volta ao Iraque para proteger seus amigos.

Em pouco tempo a insurgência iraquiana apelida Kyle de “o Diabo de Ramadi”- em referência a uma das cidades em que combateu – e coloca a sua cabeça a prêmio. Ele é temido por sua eficiência em matar. 160 mortes “oficiais”: tudo indica que o número seja maior (255).

O maior mérito de Chris Kyle, contudo, não reside no número de inimigos que ele abateu. Mas na quantidade de garotos que ele salvou com sua mira certeira. O filme faz um sutil e brilhante paralelo entre a visão moral distinta e a pontaria acima da média de Kyle.

Além do inimigo que espreita em cada janela e porta, o jovem texano é obrigado a enfrentar as dúvidas crescentes e o medo paralisante dos seus colegas de farda.

O agnóstico Eastwood fala no filme por meio de um jovem soldado que quase foi padre e é assaltado pela dúvida: Será que eles fazem a coisa certa? E será que vale a pena?

“O Mal existe. Nós já o vimos por aqui”, responde, serenamente, Chris Kyle. Eastwood mostra que o sniper mais admirado e temido da história dos EUA permaneceu até o fim com as convicções simples de um menino dedicado a proteger os inocentes dos bandidos.

A virtude em ação

Há muitos sub-dramas terríveis contidos nas decisões de Kyle, mas não vou abordá-los para que o leitor assista ao filme e possa se surpreender com cada dilema que surge na história.

Ao contrário do que se poderia imaginar, Eastwood não manifesta aprovação diante da moralidade “preto-no-branco” de Chris Kyle. Diante disso ele é novamente agnóstico.

Mas o velho mestre americano não deixa de mostrar que são de homens como Kyle que a sociedade precisa nos momentos mais tenebrosos, quando os lobos aparecem e recuamos como ovelhas confusas e apavoradas. Sem visão moral, sem senso de direção.

Hoje em dia os homens estão mais preocupados em ser queridos por todos e não conseguem defender qualquer princípio por mais de 5 minutos. Eles não acreditam mais em certo e errado. São cínicos. Para os quais “honra” e “sacrifico” são como peças de museu.

São bem poucos os que ainda enxergam o mundo como o apóstolo Paulo e Chris Kyle enxergavam. Mas todos admiram, mesmo que secretamente, pessoas que recusam o cinismo predominante e brindam os seus próximos com uma amostra do que é a virtude em ação. Clint Eastwood faz um elogio desses homens ilustres. Assista American Sniper.

Thiago Cortês escreve no blog Descortês.

Fonte: http://www.midiasemmascara.org/artigos/cultura/15683-american-sniper-lobos-e-ovelhas.html

Sobre o filme “Sniper Americano”

Cinema | 12/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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Adaptado do livamerican-sniper-poster-internationalro “American Sniper: The Autobiography of the Most Lethal Sniper in U.S. Militar History”, o filme “Sniper americano”, do diretor Clint Eastwood, conta a história real do fuzileiro naval norte-americano Chris Kyle (Bradley Cooper), considerado o melhor atirador de elite da história dos Estados Unidos.

O filme, um fenômeno de bilheteria (atingiu 90,2 milhões de dólares na estreia em janeiro deste ano),  tem despertado uma intensa discussão pública nos EUA, dividindo liberais e conservadores no debate sobre temas como o papel da guerra, o heroísmo dos soldados, patriotismo, a invasão americana ao Iraque, entre outros. O protagonista, conhecido como “a lenda”, entre os militares americanos e com o apelido de “o demônio de Ramadi”, entre os inimigos iraquianos, seria, para alguns, um moderno herói de guerra, mas, para outros, não passaria de um patriota psicopata.

Para contribuir para o debate, sugerimos a seguir a leitura do artigo escrito por Thiago Cortês, publicado originalmente no site Mídia sem Máscara (http://www.midiasemmascara.org/).

Antes, porém, apresentamos o trailer com uma cena que, por si só, já é um convite a este belo filme:

 

 

American Sniper: lobos e ovelhas

POR THIAGO CORTÊS 

O novo filme de Clint Eastwood começa com o sermão de um pastor sobre o apóstolo Paulo. O que Paulo ensinava e fazia, explica o ministro, era motivo de escândalo para a maioria dos seus contemporâneos. Mas Paulo tinha dentro de si a convicção de estar fazendo a coisa certa.

Chris Kyle está no culto com sua família. Ele ainda é uma criança, mas ouve atento o pastor explicar que somos incapazes de decifrar o padrão de Deus nos eventos que ocorrem na nossa vida. Só podemos considerar real e verdadeiro o que podemos enxergar?

Não se engane pelo cenário da história ou seu contexto histórico. American Sniper não é sobre a Guerra do Iraque – nem contra e nem a favor – ou sobre qualquer aspecto da vida militar.

O drama de Clint Eastwood é sobre os dilemas morais enfrentados por homens de convicção em um mundo no qual a defesa de qualquer princípio – por mais óbvio que seja – é vista como uma atitude fundamentalista. A convicção é uma anomalia. O mundo jaz do relativismo.

Se você quiser defender uma visão moral, prepare-se para enfrentar dilemas terríveis. Se você quiser se sacrificar por algo maior, prepare-se para a solidão. Sim, solidão: ao dizer que está disposto a morrer pelo seu país, Kyle ouve da futura esposa: “você é um egocêntrico!”.

Chris Kyle é filho de um diácono e de uma professora de escola bíblica dominical. Desde cedo ele aprendeu que a defesa dos princípios básicos de certo e errado o colocaria em conflito com a maioria que há muito abandonou o “preto-no-branco” por mil tons de cinza.

Ainda menino, Kyle intervém em uma briga para defender seu irmão mais novo de um típico valentão. Ao ver seu irmão apanhando, ele não tem dúvidas: soca o garoto maior até lhe tirar sangue. Ao invés de lhe repreender, o seu pai lhe explica que as pessoas são divididas em três grupos: ovelhas, predadores e cães pastores que protegem as ovelhas “do Mal”.

“Algumas pessoas preferem acreditar que o Mal não existe. Mas se algum dia ele aparecer na sua porta, não saberão como se proteger. Essas são as ovelhas. E então existem os predadores. Eu e sua mãe não estamos criando ovelhas ou predadores”, adverte o diácono.

Kyle cresce como um típico jovem dos nossos dias. É um beberrão e mulherengo. Mas ele enxerga o que os outros não enxergam. Em certo dia, o noticiário que para seu irmão é entediante, para Chris Kyle é perturbador. E, como Saulo, ele caí do cavalo.

Como a luz do dia

As escolhas daquele que se tornaria o atirador de elite mais letal da história militar dos Estados Unidos são pautadas por um antiquado senso de moralidade. Não há espaço para o cinismo ou a meia-verdade no horizonte de Chris Kyle. Ele enxerga o Mal tão claro como a luz do dia. É essa característica singular que irá definir o seu destino para sempre.

Quando poderia se arriscar menos, Kyle desce às profundezas do labirinto infernal de Ramadi para ensinar soldados novatos sobreviverem um dia a mais. Quando sua esposa grávida pede que ele fique em casa, Chris Kyle volta ao Iraque para proteger seus amigos.

Em pouco tempo a insurgência iraquiana apelida Kyle de “o Diabo de Ramadi”- em referência a uma das cidades em que combateu – e coloca a sua cabeça a prêmio. Ele é temido por sua eficiência em matar. 160 mortes “oficiais”: tudo indica que o número seja maior (255).

O maior mérito de Chris Kyle, contudo, não reside no número de inimigos que ele abateu. Mas na quantidade de garotos que ele salvou com sua mira certeira. O filme faz um sutil e brilhante paralelo entre a visão moral distinta e a pontaria acima da média de Kyle.

Além do inimigo que espreita em cada janela e porta, o jovem texano é obrigado a enfrentar as dúvidas crescentes e o medo paralisante dos seus colegas de farda.

O agnóstico Eastwood fala no filme por meio de um jovem soldado que quase foi padre e é assaltado pela dúvida: Será que eles fazem a coisa certa? E será que vale a pena?

“O Mal existe. Nós já o vimos por aqui”, responde, serenamente, Chris Kyle. Eastwood mostra que o sniper mais admirado e temido da história dos EUA permaneceu até o fim com as convicções simples de um menino dedicado a proteger os inocentes dos bandidos.

A virtude em ação

Há muitos sub-dramas terríveis contidos nas decisões de Kyle, mas não vou abordá-los para que o leitor assista ao filme e possa se surpreender com cada dilema que surge na história.

Ao contrário do que se poderia imaginar, Eastwood não manifesta aprovação diante da moralidade “preto-no-branco” de Chris Kyle. Diante disso ele é novamente agnóstico.

Mas o velho mestre americano não deixa de mostrar que são de homens como Kyle que a sociedade precisa nos momentos mais tenebrosos, quando os lobos aparecem e recuamos como ovelhas confusas e apavoradas. Sem visão moral, sem senso de direção.

Hoje em dia os homens estão mais preocupados em ser queridos por todos e não conseguem defender qualquer princípio por mais de 5 minutos. Eles não acreditam mais em certo e errado. São cínicos. Para os quais “honra” e “sacrifico” são como peças de museu.

São bem poucos os que ainda enxergam o mundo como o apóstolo Paulo e Chris Kyle enxergavam. Mas todos admiram, mesmo que secretamente, pessoas que recusam o cinismo predominante e brindam os seus próximos com uma amostra do que é a virtude em ação. Clint Eastwood faz um elogio desses homens ilustres. Assista American Sniper.

Thiago Cortês escreve no blog Descortês.

Fonte: http://www.midiasemmascara.org/artigos/cultura/15683-american-sniper-lobos-e-ovelhas.html

Uma vida comum: o encanto de uma rotina iluminada, por Pablo González Blasco

Cinema | 05/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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Still Life. (2013). 92 min. Diretor: Uberto Pasolini . Eddie Marsan, Joanne Froggatt.

Still life     Uma vida comum. Esse é o título que nos oferece a tradução brasileira. Correto, resume o contexto, mas não chega a ser tão desafiante como o original: Still Life, natureza morta. Esse sim é preciso, audaz, impactante. Igual a temática, a interpretação – quase um solo extraordinário do protagonista- e os detalhes nas tomadas da câmara. Nada sobra, nada falta. Um quadro perfeitamente encaixado, silencioso e gritante, instigador. Uma verdadeira natureza morta pintada, para maior requinte, por um diretor italiano transplantado na Inglaterra. Uma bela mistura que cristaliza num filme singular e intrigante.

A estética merece comentários, muitos, e sem dúvida de mais categoria do que estes. Mas não é o propósito destas linhas. Mais do que descrever o quadro, o nosso é relatar o que o quadro nos provoca. E, isso sim, origina uma enxurrada de reflexões. Tive muitas quando o vi, vieram muitas mais depois –aquele efeito retardado próprio dos filmes de categoria-, e ampliaram-se quando coloquei a fita como base de um cine-debate com universitários. Ninguém tinha assistido o filme ainda –nos dias de hoje um verdadeiro recorde- e eu sentia a necessidade de observar as reações, os comentários, de espectadores variados para ampliar um universo de percepções que, desde o início, suspeitei ser de grande riqueza.

Still life - movie 2     Eddie Marsan é o ator monumental que dá vida ao protagonista, John May. Um funcionário público de um distrito londrinense que gasta seus dias –somam já muitos anos- buscando possíveis parentes daqueles que morrem sozinhos. E, naturalmente, ocupa-se de executar o que a lei prescreve sobre o sepultamento desses cidadãos. A tarefa em si é rotineira, cinzenta, uma estrita disposição municipal ao alcance de qualquer burocrata. A diferença –enorme- é o modo como Mr. May realiza sua função, quer dizer, o modo como vive o seu trabalho. Com delicadeza e ternura. Busca com afinco, esforça-se para que os defuntos tenham alguma companhia na hora de serem enterrados. Adapta o funeral aos prováveis gostos e crenças do falecido, arrisca homenagens póstumas e presta tributo pessoal com sua presença sempre discreta. Quase me atreveria a dizer que ‘humaniza’ a morte.

Não é pouco nestes tempos que vivemos onde a tal humanização parece ser a bola da vez: algo de que todos falam, dizem precisar dela, mas na prática pouco se percebe nas ações concretas que conduzam ao tal sonhado estado de humanização. Lembrei daquele outro filme japonês (A Partida) do qual saímos com uma pergunta crítica na cabeça: Como é possível fazer de um tema tão triste um filme tão delicado e positivo? A resposta trouxe outra lembrança –o filme é um gatilho de evocações- nos versos de Morte e Vida Severina: “Podeis aprender que o homem, é sempre a melhor medida; mais, que a medida do homem, não é a morte mas a vida!” A resposta, a almejada humanização, é preciso praticá-la em vida, no dia a dia, e não apenas in artículo mortis. Somente quem humaniza os detalhes simples, corriqueiros, que salpicam a rotina diária, é capaz de ter uma performance invejável no momento final, como John May.

Still life - movie 1     As muitas recordações que lutavam por abrir-se passo a passo ampliaram-se no cine debate. Tomei algumas notas, o que rendeu ainda mais reflexões, e outras lembranças estocadas na memória vieram a tona. Também as aparentemente cômicas, como a do sujeito que está sendo enterrado na presença de apenas duas pessoas que comentam: onde estão os milhares de amigos que ele dizia ter no Facebook? E outras, muito pessoais, como aquele comentário que escutei do meu irmão, um ano antes dele falecer, e que utilizei no seu funeral para agradecer a presença de muitos amigos que lá estavam: “Meu irmão disse-me certa vez, falando de um velho conhecido que estava no final da vida, que ele dizia aos amigos que não se preocupassem de ir ao seu funeral, que havia muita coisa que fazer. Sei que meu irmão teria dito o mesmo, mas felizmente ninguém obedeceu, e eu agradeço a presença de todos vocês nestes momentos tão especiais”.

Mas a nossa natureza morta não é um filme sombrio, uma espécie de elegia em celuloide. Fala da vida, do trabalho, da rotina, do encanto. Da amizade, e do melhor investimento que é sempre pensar nos demais, sair do casulo do egoísmo. Dai provém os melhores dividendos, mesmo os que não conseguimos apreciar naquele momento. A vida virtual que muitas vezes vivemos –vivemos mesmo? ou sonhamos que vivemos?- situa-nos num universo de paradigmas falsos que na hora do balanço aponta inexoravelmente os lucros e os prejuízos. Os ativos a receber –inflacionados por supostas relações e networks globais- , esfarelam-se, transformam-se em perdas porque ninguém aparece para pagar esse crédito…..que nunca existiu.

Still life - movie 3     Certa vez conversava sobre estes temas com um profissional de informática, que era cego. Tinha conseguido desenvolver sistemas e recursos de computador para pessoas deficientes, apoiando-se na capacidade de escuta que nessa situação sempre é aguçada. Falava-me do muito que tinha pensado sobre o valor real das coisas na vida, e ilustrou o tema com um comentário definitivo: “Quando vou a um enterro, e escuto o golpe da terra caindo sobre a madeira do caixão, penso que é preciso gastar a vida sendo útil. Do contrário tudo se acaba nesse golpe seco e fatal”. Cada um percebe a hora do balanço como pode, e mesmo quem ganhava a vida ajudando os outros a se comunicar não se deixava enganar com quimeras virtuais.

A medida não é a morte, mas a vida. A vida que se gasta em rotinas iluminadas, porque a rotina gris não consiste em fazer as coisas de sempre, mas em fazê-las como sempre. E no suceder-se dos dias iguais, é possível um colorido repleto de detalhes, viver uma cortesia como Mr. May, quase litúrgica, com os semelhantes, com os mortos e com os vivos. Atitude que personaliza o trato, que se adapta a cada um, que humaniza –que permite dar transito ao humano que todos levamos dentro- , sem desculpar-se com ações globais, ou atentar aos impactos do último post no Youtube. De que serve que acessem milhões de vezes a tua página web, se na hora do vamos ver não há um ombro onde chorar, alguém com quem conversar de coração aberto? Dizia Gustavo Corção que os milhares de conquistas da técnica não consolam o namorado infeliz, ou o pai que perdeu o mais amável dos filhos. Os acessos também não possuem esse predicado. E quando alguém se atreve a batizar esses relacionamentos vulgarizando o termo amizade, converte-o numa palavra vazia. Um flatus vocis, como diziam os filósofos medievais. Um termo sem nenhuma substância; thin air, por usar uma genuína expressão britânica ao gosto de John May.

Still life - movie 5     Voltamos ao filme japonês, A Partida, que também se fez presente no cine debate. Há um momento onde alguém pergunta à esposa do protagonista, já convencida da importância do trabalho do marido, como é possível viver dessa atividade, arrumando cadáveres para o sepultamento. Ela responde sem hesitar: “O meu marido é um profissional!”. Foi mais uma evocação quando vi surgir na tela a protagonista feminina aproximando-se de Mr. May. Curiosidade no início, seguida de admiração, para converter-se em encanto. O entusiasmo pelo trabalho, a capacidade de sonhar e de aperfeiçoá-lo, independente do conteúdo, tem um poder sedutor para a alma feminina. Talvez porque as mulheres têm essa leitura transcendente que sabe apreciar os detalhes que realmente importam, na hora de fazer o balanço. Esse deve ser o motivo que explica porque, diariamente, encontro muitas mais mulheres do que homens do lado dos pacientes que sofrem, atentas aos pormenores que fazem a doença mais suportável.

Um homem apaixonado pelo seu trabalho, que não precisa de plateia para certificar-se do valor que encerram suas cuidadosas ações diárias. São qualidades que costumam passar desapercebidas aos que vivem na superfície dos acontecimentos. O chefe de John May é um belo exemplo de insensibilidade. Não é mau, até cumpre o seu dever, mas escapa-lhe o essencial. Vivemos rodeados desses espécimes, e com frequência sucumbimos ao seu fascínio. A tentação de entregar-se a aparência e desprezar a verdadeira substância, de prestar culto ao sucesso sem avaliar a competência é realidade que convive conosco e nos absorve ao menor descuido. A opinião dos espectadores pesa demais nas nossas decisões, é um tributo enorme contra o qual nos custa revelar-nos. Talvez é questão de mudar o foco, e escolher outra plateia.

Still life - movie 4     Vai uma última lembrança, visto que são as recordações as que teceram esta colcha de retalhos, a modo de um quadro impressionista, manchas de luz. Foi um comentário em espanhol sobre esta produção, que chegou há algum tempo à minha caixa de e-mails. A tradução do titulo não reflete o miolo do filme (Nunca é tarde demais), mas não me pareceu totalmente infeliz, especialmente pelo subtítulo que lá colocam: Deus o vê! Se a proposta para atuar com eficácia, é livrar-se da plateia convencional e estabelecer o gabarito com outros paradigmas, a construção de virtudes em que tudo se passa entre Deus e o homem parece um bom começo. Sempre há tempo para isso. Este filme pode ser uma boa largada nessa empreitada.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005). 

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2015/02/18/uma-vida-comum-o-encanto-de-uma-rotina-iluminada/#more-2289

47 Ronins: Uma avalanche de virtudes que carecemos!, por Pablo González Blasco

Cinema | 02/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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47 Ronins. Diretor: Carl Rinsch. Keanu Reeves, Hiroyuki Sanada, Min Tanaka, Kou Shibasaki, Tadanobu Asano, 119 min. (2013)

47ronins-capa     Reconheço que minha sensibilidade é insuficiente para apreciar a fascinante cultura oriental; escapam-me muitos dos detalhes, riquíssimos, que embrulham suas historias. Mesmo assim, aventurei-me com este filme, apesar de ter ouvido comentários não muito favoráveis. “Uma mistura de lenda épica com fantasias fora de lugar: bruxas, criaturas raras, excesso de imaginação. Um filme esquisito.”. Apertei o play e já nos primeiros fotogramas escutei o recado que me seduziu. “No Japão Feudal as províncias eram governadas por um Shogun, e a paz mantida pelos Samurais a qualquer custo. Se um Samurai fracassasse ou decepcionasse o seu senhor, sofria a pior vergonha em toda a comunidade japonesa: tornava-se um Ronin. Saber a história dos 47 Ronins significa saber a história de todo o Japão”.

Não pude menos de lembrar uma outra experiência que vivi há 10 anos, quando assisti O Último Samurai, e me emocionei com as lendas do Japão Feudal, e com a enxurrada de virtudes humanas que ornam a vida dos Samurais. Muitas vezes usei cenas desse filme nas minhas conferências, sempre com alto impacto. Recordo um aluno de medicina que se aproximou de mim no final de uma palestra, quando eu estava recolhendo o meu computador e me disse emocionado: “Professor, eu quero ser um Samurai”.

47ronins-2     Os 47 Ronins são Samurais degradados pelo Shogun porque o Samurai líder decepcionou com o seu comportamento, atacando um hóspede. Naturalmente o hóspede não era um inocente, mas um ser invejoso, mancomunado com uma bruxa malvada que arquitetou toda a farsa. Como não é possível provar a conspiração, e a queixa não é recurso contemplado no catálogo de atitudes de um Samurai, o líder aceita o castigo e o desterro. Juntam-se a ele todos os seus homens –Samurais genuínos- que decidem correr a mesma sorte do seu chefe.

A cena do desterro evocou na minha memória aquela outra onde se desterra um inocente que também está carregado de razão: El Cid. O filme entrava num clima que, também pela similitude com a Espanha medieval, me agradava. Relaxei e me dispus a saborear essa historia que as minhas lembranças atrelavam à Reconquista espanhola nas terras de Castela. E não poderia faltar até uma personagem que apresenta analogia com Dona Ximena –a filha do líder desterrado- e os amores impossíveis com um Keanu Reeves que sintoniza bem com o ambiente nipônico. “Eu te buscarei nos mil mundos possíveis, em todas as vidas”…..A voz de dona Ximena aproximando-se de Rodrigo de Vivar, o único homem em Castela capaz de humilhar um Rei e partilhar o cantil com um leproso, ecoava nas minhas lembranças. “Rodrigo, leve-me com você. Estando juntos serei feliz”. El Cid diz: “Não tenho onde te levar, vou para o desterro”. E Ximena –aquele olhar quase oriental da Sofia Loren envolvido na inesquecível trilha sonora, acrescenta: “Já que o meu homem não é um homem comum, o meu destino também não será comum”.

Estou convencido que cada filme tem o seu momento, o tempo certo para ser visto. Nesta ocasião o meu plano temporal estava definido por duas retas. Uma, a primeira, um vídeo que assisti e recomendo vivamente (vídeo abaixo). Trata-se de um comentário à sugestiva obra do Prof. Antonhy Esolen, do Providence College: “Dez maneiras de destruir a imaginação do seu filho” (Ten ways to Destroy the Imagination of your Child).

Os conselhos lá comentados são, naturalmente, um recurso para apontar as atitudes erradas e cada vez mais comuns, que pais e educadores empregam e que conduzem ao desfecho fatal: destroçar a imaginação da criança, fazer dele um produto meia boca, em série, que infelizmente contemplamos diariamente.

Lá pelo meio do vídeo, destacam-se dois “conselhos” que estão relacionados: difame o heroico e o patriótico, diminua todos os heróis, ensine os seus filhos a rir e a desacreditar das virtudes difíceis de conseguir (aquelas que naturalmente você mesmo não tem), ridicularize a excelência, ou melhor, democratize-a: todos são excelentes, todos são heróis, mesmo por fazer o café da manhã na hora. Há muitos outros conselhos nesse vídeo que são suculentos, sugestivos, e desafiantes: um verdadeiro gabarito para tirar a limpo os modos como se educam –quer dizer, se deformam- os jovens hoje. Por exemplo, as explicações prosaicas sobre os fenômenos transcendentes ou notáveis reduzindo-os com um sorriso e rebaixando-os com a frase chavão: “é somente isso, não esquente”. É claro, que não há nenhuma obrigação de concordar com o educador americano; podem se ignorar as advertências ou desprezá-las por parecerem exageradas. Mas tudo indica que desconhecer o tema que ele coloca acabará por levar até à via fácil que conduz à mediocridade.

47ronins-4     A segunda reta é por conta da enxurrada de virtudes que o filme destila. Virtudes das que carecemos no mundo de hoje. Lealdade, fidelidade, compromisso, cumprimento do dever, consciência de missão. Não se trata de ser pessimista; a virtude sempre foi um desafio a ser conquistado, um divisor de águas que separa as pessoas de acordo com a sua fibra moral, com a sua estatura como cidadão e ser humano. Mas vivemos momentos onde as atitudes virtuosas –que comprometem toda a existência- brilham pela ausência. Nunca se falou tanto de ética, em momentos onde o sentido do termo está desbotado. Ortega falava do clamor ético num mundo que não se rege por esses parâmetros, assemelhando-o à dor do membro fantasma. A dor do membro que foi amputado, e continua doendo: a dor da ausência.

47ronins-3     Sim, é verdade que os 47 Ronins convivem com um universo de monstros, bruxas, criaturas diabólicas e fantasiosas. Mas também são notáveis as prioridades e o valor da virtude: da palavra empenhada, da sinceridade de vida, da lealdade a toda prova, da integridade. Um Samurai feito Ronin encontra-se degradado no seu status, mas conserva as virtudes que viveu como Samurai. Conserva-as porque as incorporou, fazem parte do seu ser, não são um apêndice, ou uma habilidade comportamental treinada num curso de liderança feito no final de semana. São constitutivas. Por isso, assinam o compromisso com tinta e com sangue, sublinhando que vida e missão são inseparáveis. A missão é a razão de ser da própria vida. “Triste de quem é feliz, e vive porque a vida dura –escreve Fernando Pessoa- nada na alma lhe diz, mas que a lição de raiz: ter por vida a sepultura”. Quem não tem missão, vive como um morto vivo.

Hoje convivemos com a mentira –a nível institucional- que nega o óbvio; com homens públicos que se desdizem, com uma nutrida fauna do “deixa disso”, com argumentos de articulação que não convencem nem aos próprios autores dos mesmos. E com a deslealdade a todo e qualquer nível: basta cair na desgraça –quer dizer, que apareçam teus podres- que em poucos minutos se dá a fuga de todos os que andavam do teu lado (também repletos de podres, é claro, mas ainda ocultos) e negam te conhecer. É o salve-se quem puder dos medíocres. Integram-se nas artimanhas nefastas –aquilo que Balzac chamava a secreta maçonaria das paixões- e desparecem quando o bicho pega.

47ronins-1     Os 47 Ronins relatam, no dizer do narrador, a história do Japão. Até hoje se celebra a data em sua honra, e têm a admiração desse povo que devolve para a Cruz Vermelha Internacional 150 milhões de dólares que lhes emprestaram para reconstruir os desastres causado pelo Tsunami anos atrás, e que sobraram. Devolver o que sobra, depois de reerguer-se da tragédia. Está tudo dito.

Sim, tinha razão o meu aluno: eu quero também ser um Samurai, um Ronin que seja. Sinto a dor do membro fantasma, da ética que –trazida e levada- nos é amputada diariamente nas notícias que lemos no jornal, nas ponderações da mídia, no péssimo exemplo de quem está no comando e carece por completo das virtudes que constituem a integridade do ser humano. E ainda dão risada dos heróis –como a raposa da fábula, para quem as uvas estavam verdes, fora do seu alcance. E desaparecem quando a coisa fica difícil. Que história vamos contar para as gerações futuras? A opção cabe a cada um de nós.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005). 

Fontehttp://www.pablogonzalezblasco.com.br/2014/05/23/47-ronins-uma-avalanche-de-virtudes-que-carecemos/

A Árvore da Vida: Terrence Malick em busca de Sentido – por Pablo González Blasco

Filosofia | 08/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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The Tree of Life (2011). Diretor: Terrence Malick. Brad Pitt, Sean Penn and Jessica Chastain. 139 minutos. 2011.

Este é um desses filmes que eu nunca teria me animado a assistir, mas não tive escapatória. A convocação me chegou a través de um amigo, depois outro, e mais um. “Você tem que ver esse filme que ganhou Cannes”. Assim de simples. Na verdade, o que se deve ler é “Você tem de ver esse filme, e escrever sobre ele, porque quero saber o que você vai comentar”. É o que da quando a gente se mete a crítico de cinema – que, aliás, nunca afirmei ser, nada mais longe do meu propósito. Apenas compartilho as ideias que me ocorrem quando vejo filmes, na tentativa –isso sim é verdade- de promover a reflexão.

A bandeira do humanismo que, também é fato, levanto sempre que se me oferece a oportunidade, é estandarte confeccionado à base da reflexão. Educar no humanismo não é tanto ensinar coisas novas, mas, sobretudo ajudar a lembrar das raízes que todos levamos dentro. Ou, como me dizia o outro dia um professor universitário envolvido com os temas da bioética, trata-se de despertar o humano que está adormecido, esquecido dentro de nós. Não se trata de inventar nada, ou melhor, é pura invenção, no sentido latino que Ortega lembra nos seus escritos: inventar- invenire, descobrir, encontrar. Não é criar–afirma o filósofo-, mas aprender a demorar-se em contemplar as coisas próximas da nossa intimidade, do nosso âmbito doméstico, que preenchem as horas da nossa vida. Lá encontramos o filão do humanismo, das raízes, das aventuras que somos chamados a viver.

Terrence Malick é um diretor muito peculiar, um cult. Como já comentei em alguma ocasião, não sou entusiasta dos diretores que fazem um filme a cada 5 ou 10 anos, e depois desaparecem. Uma espécie de cometa Halley do Cinema. Mas a insistência dos amigos e o premio de Cannes –logo mais volto sobre isto, pois tem sua importância- foram o motor de arranque para enfrentar as quase duas horas e meia de filme.

Malick deve ter suas razões para trabalhar assim: estudou filosofia em Harvard, foi para Oxford onde desenvolveu uma tese sobre Heidegger. Temos, pois, um filósofo atrás da câmara, e nada surpreende a profundidade das suas produções – que, naturalmente, ele mesmo escreve – e que não são acessíveis para qualquer um. A Árvore da Vida é um claro exemplo de cinema de autor, no caso, de cinema de filósofo. E em se tratando de um filósofo sintonizado com os existencialistas, o resultado sempre será denso. Até agora não estou certo se isto é um filme, ou uma reflexão existencial desenhada em fotogramas. O que não subtrai o mérito, inegável, deste espesso mergulho vital.

Vale dizer, para nos entender melhor, que o menos acessível é a forma, não tanto o fundo do que Malick transmite. É possível ventilar questões existenciais e perspectivas transcendentes, em linguagem aberta. O cinema está repleto de exemplos: das comedias americanas de Frank Capra, até os ensaios de transcendência de Clint Eastwood; do cinema de Chaplin e os dramas de William Wyler até Peter Weir ou Spielberg, por citar alguns. Mas tudo isso é Hollywood, um modus dicendi direto, aberto, onde as questões existenciais estão diluídas em histórias fortes, cativantes. Malick não é Hollywood, e a advertência procede.

Uma história pessoal esclarecerá melhor esta temática. Há já alguns anos, durante a defesa da minha tese doutoral em Medicina -coloquei lá vários filmes como recurso pedagógico para fomentar o humanismo nos estudantes de medicina- um professor da banca me interpelou: “Noto que você utiliza somente filmes americanos. Seria de esperar que alguém com a sua formação humanística e filosófica, além da sua origem europeia, utilizasse autores como Bergman, Kurosawa, Kieslovsky. Por que essa preferência por Hollywood? Não estará adotando um viés muito americano em sua docência?”. Limitei-me a sorrir, enquanto buscava as palavras mais delicadas para responder ao professor. Para minha felicidade as encontrei em tempo. “Sem dúvida, os autores que o senhor cita são de fundamental importância para provocar a reflexão do estudante. Mas, devemos convir, que o que Kurosawa diz em 30 minutos, Hollywood consegue de algum modo coloca-lo em 5 segundos. E eu, professor, não tenho todo o tempo do mundo para ensinar. A economia do tempo orienta os autores que escolho”. Parece que minhas razões convenceram, porque o diálogo se encerrou por ali mesmo.

Voltando ao nosso filme: Malick não é Hollywood, e a temática do filme é servida em ritmo lento, pausado, com um visual atraente, que solicita continuamente a cooperação do espectador, sua interação vital, como vital é a posta em cena, onde se adivinha a própria alma do diretor. Uma alma repleta de sensações e vivências, de dúvidas e de procura, onde se mesclam numa estética visual espetacular os mais diversos ingredientes.

A dor da mãe que perde um filho – ponto de partida do filme, e de todos os interrogantes-, o relacionamento familiar com luzes e sombras, as omissões no amor, a celebração da vida, a criação do universo com Big-Bang incluído, os dinossauros, a vida além da morte. E, como uma constante, Deus. Não um Deus panteísta, difuso, que se confunde com o universo. Um Deus que se busca com afinco, com quem se pode falar e a quem se pedem explicações; um Deus pessoal em quem se busca o sentido do sofrimento, do amor, da vida como um todo. Ver as coisas como Deus as vê: “Quero ver o que você vê” clama a protagonista no meio da sua aflição. Vulcões e lava, trovões e criaturas pré-históricas, seres humanos frágeis que proferem verdadeiros gemidos de transcendência. É tão explicita a forma com que Malick o apresenta, que até São Paulo veio à minha memória, quando fala dos gemidos inenarráveis da criação, que espera a manifestação dos filhos de Deus.

Os tais amigos não deixaram por menos, e sabendo que já tinha assistido, perguntaram-me: “O que te pareceu?”. Eu, que estava alinhavando –ainda estou- o impacto das reflexões, respondi de bate pronto: “Uma mistura de Viktor Frankl com Santo Agostinho”. Perplexidade: “Como assim? Explique-se”. Nisso estamos, nas explicações.

V. Frankl, psiquiatra e neurologista vienense, sobrevivente de Auschwitz e fundador da Logoterapia, recolhe na sua obra “Um psicólogo num campo de concentração: um homem em busca de sentido”, os fundamentos dessa escola psicológica. Valha um resumo em poucas palavras. Não é falta de prazer o que frustra o homem, como dizia Freud, de quem Frankl foi discípulo; nem a falta de poder, opinião da Adler, seu colega. O que afunda o homem é a falta de sentido na vida. Sem sentido, sucumbe-se: no campo de concentração, e em Wall Street, tanto faz. Frankl afirma que todo homem precisa de uma sadia dose de tensão para conservar na sua vida um sentido claro para viver. Essa sadia tensão vem em forma de dor, de sofrimento, de privações; um tempero necessário para manter-se em forma, para não adormecer.

     E como bússola do sentido, o amor. “Ama e faz o que quiseres” – diz Santo Agostinho, em frase tão conhecida, como frequentemente mal interpretada. Não por falta de limpidez, pois o recado é claro. Diz assim a frase completa: “Ama e faz o que quiseres. Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos.” Os mal-entendidos não são por conta do que Agostinho escreveu, mas do mercado negro onde o termo amor se ventila em subasta pública. Até o próprio Ortega – nada suspeito nestes temas teológicos-, comentando este pensamento se atreve a afirmar que Agostinho foi um dos temperamentos mais eróticos que já houve, um campeão do amor, porque colocava em Deus todo o seu peso, a sua densidade, o seu sentido de existência. “Deus meus, amor meus et pondus meus– Deus é o meu amor, o meu peso, a minha medida”.

A Árvore da Vida são inúmeras pinceladas, a modo de quadro impressionista, que desenha os contornos que o espectador deverá adivinhar e completar em si mesmo. Perfis que se projetam no sentido que é preciso buscar na vida, e no amor que sara as feridas que se produzem nessa procura. Lesões que nos mesmos causamos naqueles que amamos, por insuficiência e desatenção, por pura falta de jeito, quando não por orgulho e despeito. Estragos que a vida infecta, mas que o sofrimento e o amor purificam.

Este amplo repertório de questões existenciais não chega por surpresa, pois a abertura do filme é clara e contundente. Quem avisa, amigo é. Diz assim, em tradução livre: “Ensinaram-me que há dois modos de viver a vida: o modo da natureza, e o modo da graça. É preciso escolher qual dos dois vai seguir. A graça não busca o seu conforto; aceita ser esquecido e desprezado. Aceita insultos e injurias. A natureza somente busca satisfazer-se e que os outros a agradem; e encontra sempre motivos para não estar alegre, mesmo com o mundo brilhando à sua volta, e o amor transpirando em todos os cantos. Ensinaram-me que quem escolhe o modo da graça, nunca se da mal. Venha o que vier, sempre chega a bom termo”.

E agora, a pergunta fatal. Como um filme assim conquista a Palma de Ouro de Cannes? Vai ver que é o intelectualismo de Malick, o cinema de autor, enfim, motivos que sempre se ventilam nestes palcos. Mas depois do que aconteceu no ano passado, onde os nove monges da Argélia levaram a Palma, (Homens e Deuses), tudo isso não me convence. Perguntei a um amigo, filósofo, o que está acontecendo na França onde os prêmios os levam filmes que falam abertamente de transcendência, da alma, de Deus. “Deve ser a crise” – me disse, sem dar muita importância ao tema. Sim, a crise, pensei; mas não a do euro, nem a da bolha imobiliária, mas a emparentada com sua própria etimologia. Em latim, crisis, mudança; em grego, krisis, momento de decisão. As mudanças que, antes ou depois, teremos de enfrentar para decidir o sentido que vamos dar à nossa vida. Um filme ou uma reflexão? Tanto faz. Se catalisar nossas crises, já cumpriu o seu papel.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005). 

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2011/10/24/a-arvore-da-vida-terrence-malick-em-busca-de-sentido/

Sobre o mesmo filme também indicamos o texto “As lágrimas da Criação”, de Martim Vasques da Cunha, publicado no site da revista Dicta&Contradicta.