O Ano mais violento: Liderança fecunda na serenidade (por Pablo González Blasco)


(A Most Violent Year). USA, 2014. Diretor: J. C. Chandor. Oscar Isaac, Jessica Chastain, David Oyelowo, Alessandro Nivola. 125 min.

Filme - O ano mais violento - 1Dispunha-me a assistir este filme relaxadamente, sem o compromisso de buscar mensagens, ou entrever desdobramentos. Algum comentário tinha-me chegado às mãos: um bom roteiro, com elementos colocados a modo de quebra-cabeças, orquestrados por J.C. Chandor, o mesmo diretor de Margin Call- O dia antes do fim. Aquele foi um filme que me agradou. Uma trama onde, moralmente falando, ninguém se salva. Corrupção, estelionatos, aproveitadores, jovens executivos aprendendo o caminho das pedras do sucesso. O mal caminho, entenda-se. Como tirar partido dos outros para sair triunfadores. E um cinismo blindado a qualquer possibilidade de compaixão pelas necessidades alheias. O preço de cada homem. E no final, a decepção, o vazio, a solidão.

Sob a batuta do mesmo diretor, e tratando-se de um empresário de sucesso acossado pela concorrência desleal, imaginei que seria uma variante sobre o mesmo tema. De fato, a trama de fundo é exatamente essa. O amplo repertório de ações espúrias que os concorrentes –e o poder constituído- empregam na tentativa de tirar do meio um imigrante empreendedor, que triunfa no seu negócio. Mas com tudo o que isso pode ter de interessante –e atualíssimo!!!- não seria motivo para sentar e escrever estas linhas. Divulgar e comentar o que não funciona, colocar a lama da corrupção no ventilador, não me atrai. É mais do mesmo, semelhante ao que todos os dias inunda nossas redes sociais. Nada disso me impulsionaria a compartilhar com os possíveis leitores, as reflexões que se acumulavam na mente e no coração enquanto assistia o filme.

Filme - O ano mais violento - 6O encanto do filme não está em denunciar a podridão que nos rodeia, mas na reação exemplar do protagonista, magnificamente interpretado por Oscar Isaac. O que lá encontrei, e me seduziu, foi a serenidade no comando, uma liderança que sabe tratar com as pessoas, com o tempo, que não se abala nas dificuldades. Liderança calma, atenta, delicada. Um homem que sob pressão não perde nunca a compostura. Trata com carinho os funcionários, interessa-se realmente por eles; sabe o valor das coisas, espera como se nada tivesse a fazer. E quando é obrigado a buscar recursos para enfrentar as canalhadas de que é objeto, rebaixa-se sem perder o estilo. Solicita dinheiro para o usureiro, aceita as condições, com quietude e aprumo. E jamais pactua com o mal, com os negócios turvos.

Algumas semanas depois tive ocasião de assistir um workshop com empresários. De entre as muitas ideias que lá surgiram –a gente frequenta estas reuniões para aprender a manejar as inúmeras ideias que pipocam desordenadamente na mente- uma evocou de imediato o protagonista do filme: um líder, mesmo sendo consumido pelo sofrimento, jamais transmite insegurança ou preocupação à sua equipe. Lembrei de Abel Morales, o nosso empresário íntegro e sereno. Lembrei do livro de Kennedy que li faz anos: “Profiles in Courage”, onde se recolhe o famoso pensamento de Hemingway, nunca tão oportuno como agora: A coragem é a graça sob pressão. Pressão variadíssima –o quebra-cabeças do roteiro- coragem inabalável, e toneladas de serenidade que é a graça que nos conquista.

Filme - O ano mais violento - 5Conforme o filme avança sentimos revolta contra a injustiça. Segue-se uma natural inclinação a buscar soluções alternativas. Se aqui ninguém respeita nada, porque eu vou ter que manter-me firme? Tentação forte, fundamentada, até com lampejos de ortodoxia. Mesmo entre os que transitam na desonestidade, invoca-se como argumento. Sem ir mais longe, os jornais destes dias recolhem exemplos surpreendentes. A polícia prende com as mãos na massa ao corrupto que, escandalizado, exclama: Que pais é este? Ou então: Porque somente eu? Onde estão os outros? Tão triste como real.

A tentação pode vir sussurrada no próprio âmbito familiar. A esposa de Abel Morales vem de família acostumada a fazer valer seus direitos pelas próprias mãos. “Vou chamar meu pai, meus irmãos” –confidencia ela. Mas o empresário opõe-se: “Vamos resolver isto do modo certo”. Ela insiste: “Mas isto é uma guerra”. Ele é inflexível: “Eles estão em guerra, mas eu não”. Sem pactos, sem recursos ilegítimos, no caminho da lei. A violência –como a mentira- tem pernas curtas, sempre são agarradas, voltam-se contra quem as pratica. A verdade é garantia de segurança, de que não se esconde nada, porque nada há para ocultar. O ministério público, omisso em conter a violência e a concorrência criminosa, monta uma operação para encontrar fraude fiscal na contabilidade do empresário. Num momento dado, o promotor conversa com a mulher, cuja família conhece de outros carnavais: “Conheço teu pai, tua família, já me deram muito trabalho”. Ela olha e afirma contundentemente: “Meu marido não é o meu pai. Nem parecido com ele. É um homem honesto”.

Filme - O ano mais violento - 4Sempre me impactaram os filmes onde a liderança se apresenta rodeada de serenidade e aprumo, sem teatralidades, numa versão aparente de low profile. Aparente, mas profunda. Imagino que a minha admiração responde a algo que, com o tempo e a maturidade, todos almejamos. Comandar no silêncio, na atitude, sem esbanjar excentricidades, mas mantendo o ritmo, as rotinas, a própria ordem estabelecida. Nem sempre boa, às vezes torta, mas passível de ser corrigida e melhorada. Todo um projeto de vida que visualiza não apenas resolver o meu problema mas instalar uma ordem justa, que facilita a vida de todos.

Impossível não lembrar de Thomas More, um dos grandes expoentes dessa liderança profunda, densa, silenciosa. “Eu daria ao próprio demônio o privilégio da lei, para com ela conquistar os meus direitos” –afirmava quando na família e no círculo dos amigos nobres da Inglaterra lhe sugeriam driblar a lei de sucessão, de todo ponto injusta e arbitrária. “Do contrário –dizia More- como vou me defender quando o demônio venha atrás de mim?”. A liderança requer observação, entender o que está acontecendo, despojar-se de preconceitos e desconfiar de diagnósticos pretensamente geniais, para então conseguir penetrar no cerne dos problemas humanos. Requer aprender a ouvir as pessoas até o fim, sem pressa. Demanda reflexão, “trabalhar” os silêncios, que também são manifestação de sabedoria e liderança. Por isso Thomas More, Lorde Chanceler da Inglaterra, mostra-se reflexivo e silencioso quando interpelado sobre “a questão do Rei” (o divórcio com a Rainha para poder se casar com Ana Bolena): “O silêncio de More ecoa por toda Europa” – queixava-se o Rei, Henrique VIII.

Filme - O ano mais violento - 3É o mesmo silencio, a assombrosa e fecunda passividade do protagonista, naquele filme inesquecível de Kurosawa, “Kagemusha- A sombra de um Samurai”. Morre o jovem imperador, e os anciãos colocam um sósia –que era um mendigo- no seu lugar. O objetivo, claro, é impedir que o primo do imperador falecido assuma o trono, porque carece das faculdades de comando. O mendigo-imperador assume o posto, fala pouco, observa de cima da montanha as suas tropas se debatendo no combate. E quando os seus soldados fraquejam na batalha, olham para cima e vem ele lá, sereno, em atitude de apoio, como uma referência inabalável. E recuperam terreno, vencendo a luta. O líder jamais transmite aos seus homens espasmos da própria insegurança. Não se envolve no operacional, porque confia na equipe. E está sempre lá, de braços abertos, acolhedor, impulsionando cada um nas suas responsabilidades. Com o passar do tempo, o primo herdeiro descobre a tramoia, destitui o mendigo impostor, e assume o trono. Mas, como previsto pelos anciãos, ele é incapaz de observar e manter uma atitude serena, de quietude no comando. Inerva-se, grita, envolve-se nas batalhas –naturalmente pensa que faz as coisas melhor do que os outros- e acaba perdendo a guerra e o império.

O ano mais violento trouxe-me esta magnífica surpresa embrulhada numa trama repetidamente apresentada no cinema. Trouxe-me aprendizados preciosos da mão da atitude de Abel Morales. Provocou-me reflexões, despertou emulação, desejo de imitar essa liderança inabalável. Reações análogas às que , em seu dia, despertou em mim o filme de Kurosawa. Não sei se J.C.Chandor, na sua direção magistral, contemplaria estes efeitos “colaterais”, mas são os que me servem, os que me levam a escrever. E a pensar. E a querer melhorar. Afinal, o cinema, como toda arte, serve-nos opções variadas das quais cada um toma as que quer, ou as que pode, ou talvez, as que anda buscando.

Filme - O ano mais violento - 2Escrevo estas linhas no meio de uma atividade educacional onde me foram assinadas algumas atuações. Impossível desprender-se destes pensamentos, enquanto abordamos outros temas que, sendo formativos, são sempre correlatos. Talvez por isso, até me tremeu a voz, emocionado, quando inclui na minha exposição uma frase que tinha lido no dia anterior. Diz assim: “Para tirares importância ao trabalho de outro, murmuras-te: ‘Não fez mais do que cumprir o seu dever’. Eu comentei: ‘Parece-te pouco?’. De fato, se conseguíssemos contabilizar nos dedos de uma mão, todos os dias, pessoas que simplesmente cumprem o seu dever –e nos incluir entre elas- o mundo seria um lugar melhor. Bem melhor.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

 

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2015/06/02/o-ano-mais-violento-lideranca-fecunda-na-serenidade/




Antes de Partir: a alegria de fazer as opções certas na vida (por Pablo González Blasco)


(The Bucket List). Diretor: Rob Reiner. Morgan Freeman, Jack Nicholson. 97 min.

downloadDevo confessar que já faz algum tempo que assisti a este filme. Mas faltou-me ocasião para escrever; não encontrava o momento para alinhavar as idéias – muitas e de todo tipo – que se juntaram na minha cabeça. Aconteceu-me, no fim, o mesmo que às personagens: nem sempre se consegue fazer o que previmos. É preciso decidir, estipular hierarquias, pois a sabedoria não consiste em fazer cada vez mais coisas – a pesar de que a técnica nos faz acreditar o contrário – mas em fazer as coisas que de verdadeiramente importam. Não as coisas importantes – afinal a importância é muito relativa – mas as que devem ser feitas. Sabedoria é, por tanto, abrir mão de muitas outras coisas que nunca se poderão fazer, para centrar-se naquelas que devem ser feitas. O universo de possibilidades que nos cerca é muitas vezes uma desculpa confortável para fugir de algumas tarefas – ações, conversas, decisões, ou mesmo saber perder tempo com um sorriso que conforta o próximo – que são nossa missão na vida. Por isso, bati o martelo e decidi escrever sem deixar passar nem um dia mais, enquanto coloquei na espera… algumas coisas ditas importantes que insistem em tomar a dianteira, e querem monopolizar o meu tempo.

O filme é um “mano-a-mano” genial de quase 100 minutos entre dois autores consagrados. Não há perigo de contar o argumento, porque não existe como tal. Mais se assemelha a um diálogo de Platão, em versão Hollywood, com a sabedoria de Morgan Freeman no papel de Sócrates, e um prosaico, deselegante e encantador Jack Nicholson, que personifica o sofista de turno. Pura reflexão sobre o que de verdade importa na vida e, como me dizia um amigo animando-me a escrever, um filme “sem desperdício”. Impossível não se lembrar daquele Schmidt de Nicholson, que se confessa por carta com o menino que adotou na África, e não consegue ver a utilidade da sua vida que se acaba. O Schmidt precisa agora de um câncer e de um interlocutor, também com câncer, para nos brindar as reflexões que vão muito além do cômico ou do anedótico.

”Antes de partir” é o título em português da lista de pendências que os dois protagonistas querem completar numa corrida contra o “relógio” do câncer que vai tomando conta do seu organismo. Quais são as coisas importantes na vida, as que não posso deixar de fazer? Eis uma excelente colocação que serve para quase tudo: decidir e fazer o que não pode deixar de ser feito, sem distrair-se – e depois desesperar-se – com o que poderia ser feito. A vida é um leque de possibilidades, e a escolha de uma excluirá possivelmente as outras. A figura do leque de possibilidades associa-se na minha mente ao filósofo dinamarquês Kierkegaard, desde os tempos das aulas de filosofia no colegial. Bons tempos aqueles, em que se estudava filosofia com 15 anos. Não estou certo de que aprendêssemos grandes teorias, mas ao menos tomávamos conhecimento de que existiam pessoas cujo ofício era pensar, questionar-se. Mesmo que, como Kierkegaard, sofressem por isso. Hoje, temos muito que fazer e não podemos dar-nos o luxo de pensar, muito menos de nos questionar. Vai ver que de repente descobrimos que não sabemos porque fazemos as coisas, ou porque fazemos sempre o que não é importante, e ignoramos o essencial. No dia em que essa ficha vier a cair a angústia será tremenda, como a do Schmidt, e o sofrimento dos filósofos existencialistas – que ao menos tiveram a coragem de pensar no assunto – será “café pequeno” comparada à do insensato que passou a vida em piloto automático. Não temos tempo – dizemos – e quase nos convencemos. A pressa é tanta, que não paramos para colocar gasolina no carro… e fatalmente o carro ficará no acostamento, cedo ou tarde.

A perspectiva da morte – a única realidade certa na vida do homem – é a temática do filme. E por isso aborda o essencial. Já dizia V. Frankl – o estudioso do sentido da vida – que um dos melhores desafios que o homem tem é saber que não é eterno, que o seu tempo se acaba. E por isso deve empregar o tempo com sabedoria. Se tivéssemos todo o tempo do mundo provavelmente não faríamos nada de útil. Daí o mesmo Frankl aconselhar a, antes de realizar qualquer tarefa, fazê-la como se fosse a segunda vez que a fazemos, depois que, na primeira, a tivéssemos feito tão defeituosamente quanto estamos quase a ponto de fazer agora. Vale a pena pensar na frase, que é mais do que um jogo de palavras.

antes_de_partir_2Mas a morte parece estar longe demais do nosso dia-a-dia. Acontece a toda hora, lemos nos jornais, nos atinge de perto, mas parece que não é conosco. Não há outra explicação para que vivamos sem pensar, para que a tal ficha “do que realmente importa” demore tanto a cair. Os cursos de liderança tentam retomar o tema e propõem aos participantes que imaginem o dia do seu enterro, quem vai estar lá, o que falarão dele. Mas mesmo assim, tudo isso é visto mais como a passarela da fama do que um funeral. A realidade da morte – fenômeno de maior prevalência neste mundo – ignora-se, dissimula-se, esconde-se das crianças. Certa vez falaram-me de um menino americano a quem disseram que o seu avô tinha morrido. Ele perguntou muito triste: “Mas,… quem disparou nele?”

Há algum tempo li um magnífico livro: “A Morte Íntima” de Marie de Hennezel, – uma psicóloga francesa que dirige uma instituição hospitalar dedicada aos cuidados paliativos. Os pacientes que lá se internam não costumam sair. Mas se cuida deles, com carinho e dignidade, até o fim. A autora afirma que ao invés de enfrentar a realidade da proximidade da morte, empenhamos-nos em aparentar que nunca chegará. Mentimos aos outros, mentimos a nós mesmos, e ao invés de falar do essencial, envolvemos com o silêncio esse momento único da vida. Isso acontece antes e depois: basta ver a falta de originalidade – e o conseqüente martírio para a família – das conversas de velório. As monótonas perguntas de sempre: “Mas, como foi? Parecia estar tão bem…

As reflexões de Hennezel colocam o dedo na ferida, com maestria. “Os que têm o privilégio de acompanhar alguém nos últimos momentos sabem que se trata de algo especialmente íntimo, porque aquele que morre falará do essencial, daquilo que de verdade importa e nem sempre pôde ou soube dizer. A morte nos impulsiona a não ficar na superfície das coisas, nos faz aprofundar. E talvez por isso nos angustie tanto: porque nos situa diante das últimas perguntas, das autênticas, dessas que tantas vezes deixamos para responder em outra ocasião, quando sejamos velhos, ou mais sábios, quando tenhamos tempo de colocar-nos questões essenciais.

Os nossos personagens têm a oportunidade ímpar de conversar sobre este tema que todos parecem evitar. É verdade que a condição que padecem une-os, e por tanto de nada serve disfarçar. Freeman é Carter Chambers, um mecânico culto, um humanista, que faz questão de elaborar a lista de pendências. Nicholson é o terrível milionário Edward Cole, que entra no jogo, e acaba gostando. O mecânico almeja realizar as pendências, ao mesmo tempo em que comprova que a vida que viveu tem substância e não a trocaria por nada. A proximidade da morte é uma confirmação de que o importante é o de sempre, o que se fez com amor e carinho, as pequenas coisas da vida onde reside o encanto. O milionário vem descobrir o contrário: que não é feliz porque lhe falta simplicidade, saber apreciar os detalhes, e lhe sobra dinheiro. E descobre que também com dinheiro se pode ser feliz, sabendo usá-lo. Os dois constroem um diálogo filosófico – um banquete de Platão -, para descobrir que a felicidade e o sentido da vida têm muito a ver com a doação, com o que se faz pelos demais. “A porta da felicidade abre-se para fora e se tentarmos abri-la para dentro, para nós mesmos, acabaremos por fechá-la inexoravelmente”. Atenção a estas palavras que são de Kierkegaard, nada menos!!

antes_de_partirO humor e bom gosto do filme não lhe impedem dar o recado. Nestes tempos globalizados, em que a informação nos chega em tempo real, é preciso recorrer ao Cinema para provocar a reflexão, num mundo governado pela pressa e pela impaciência. Um pensador que faz o elogio da lentidão – característica da qual carecemos quase a nível cromossômico – comenta que o tema da velocidade não é de dimensão técnica, mas sim transcendente, porque é difícil admitir que vamos morrer, é desagradável. E por isso procuramos maneiras de distrair a consciência da nossa mortalidade. A velocidade seria uma espécie de estratégia de distração. Chegamos de novo ao início das nossas reflexões: conseguimos esquecer o que realmente é importante, para ocupar-nos com o periférico.

Os nossos filósofos atores nos guiam nesta reflexão plasmada no celulóide. A morte é o pano de fundo, mas o filme é alegre, positivo, real. Certamente porque a “ficha do importante” cai ainda em tempo. Na verdade, é na vida, no dia-a-dia, quando estas questões devem ser colocadas, e temos de conquistar o espaço para refletir, roubando-o à pressa infecunda, à globalização que nos massifica. Não há como deixar de lado os versos do nosso poeta, que colocam ponto final a estas linhas: “Podeis aprender que o homem/ é sempre a melhor medida/ Mais, que a medida do homem/ Não é a morte, mas a vida”. Para saber morrer, é preciso saber viver, com intensidade, sem medo, de portas abertas aos outros.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

 

Fontehttp://www.pablogonzalezblasco.com.br/2008/04/29/antes-de-partir-a-alegria-de-fazer-as-opcoes-certas-na-vida/




Bella: O poder de fogo da família (por Pablo González Blasco)


Bella (2006). Diretor: Alejando Gómez Monteverde.

Atores: Eduardo Verástegui. Tammy Blanchard, Manny Perez. 91 min

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Quando me pedem a opinião sobre um filme que ainda não assisti, já sei que mais cedo ou mais tarde acabarei assistindo. É questão de tempo e oportunidade. Não consigo resistir; aliás, para ser franco, nem tento fazê-lo. Afinal, quem ergue a bandeira de que o cinema educa deve manter-se atento às novidades.

Assim ocorreu com “Bella”. Houve perguntas e também comentários que incluíam o ator, Eduardo Verástegui, um cantor e ator mexicano que sofreu um processo de conversão espiritual e milita entre os “Pro Life”. Parece que há uma entrevista com ele, divulgada pela EWTN, a emissora da Madre Angélica, essa surpreendente freira de clausura do Alabama, que no dizer de alguns teria créditos para ser a santa padroeira dos CEOs . De fato, tive oportunidade de ler uma biografia de Mother Angélica, quando acabei me tornando seu fã incondicional – dessa mulher que alia capacidade de gestão e empreendedorismo incomuns, sob o amálgama de gigantesca personalidade espiritual. A santidade, o senso comum e a voz de comando lhe saem pelos poros.

Isso, e saber que “Bella”, surpreendentemente, conquistou o prêmio do Festival de Toronto, fizeram-me pensar que seria um filme ortodoxo, que ofereceria soluções moralmente corretas e opções “pró vida” para a polêmica questão do aborto. Foi com essa expectativa que me sentei para contemplar os 90 minutos de filme. Mas enganei-me rotundamente.

“Bella” é um filme sobre a família, sobre o poder de cura da família, e as feridas que não acabam de sarar quando se carece de um verdadeiro lar. Apalpa-se o realismo, a dificuldade, a miséria humana. Sente-se a dor, a dos personagens e a nossa, que entram em ressonância durante o filme. Junto com a dor, a dúvida, a ingratidão que torna tudo mais difícil, e o destino que parece querer nos afundar de vez. O sofrimento tem um nome: chama-se Nina. E a compreensão – que ouve com paciência e busca saídas – encarna-se em outro protagonista: José, homem igualmente curtido pela dor. Mas no meio de tudo isso, a família, o lugar onde somos compreendidos, onde se tenta entender o que não tem lógica, porque nos ouvem pelo coração, que acolhe as razões que a razão não consegue entender, como dizia Pascal.bella_2

Mês passado regressei de uma viagem a uma universidade da Colômbia, onde conversei com um velho amigo, médico pediatra, pai de doze filhos, professor de um instituto que promove a educação familiar e aconselha tanto as famílias que têm problemas como as que não têm… ainda. “É como medicina preventiva” – disse-me o amigo, que tem longa experiência no trato com a dor, sobretudo de uma classe de dor para a qual dificilmente temos respostas a dar: a dor das crianças. Certa vez contou-me como viu adolescentes, quase-crianças, morrerem nas terríveis guerrilhas do narcotráfico de seu pais. Falamos sobre muitas coisas, inclusive o sofrimento. Em dado momento, com um sorriso próprio de quem está revelando um segredo, afirmou: “Nós, médicos, tratamos a dor com analgésicos, damos morfina. Mas o que funciona de verdade contra a dor é a família”. Olhei-o surpreso, mas continuou: “Na família, encontramos o sentido da dor, o que propicia, paradoxalmente, a sua cicatrização”. Sem família não há cura para a dor que nos oprime”. Ora, as cenas de “Bella” me evocavam o tempo todo esses comentários de meu amigo.

Parece-me que foi Tolstoi, em “Ana Karenina”, quem disse que as famílias felizes se parecem todas entre si, enquanto as infelizes o são cada uma a seu modo. Este pensamento, juntamente com outras recentes vivências pessoais, também me vieram à mente enquanto assistia “Bella”. Meus últimos meses foram marcados por perdas importantes. Amigos perderam parentes. Eu mesmo perdi um familiar querido. Onde estão essas “famílias felizes” a que se refere Tolstoi? Serão felizes as que não têm problemas nem sofrem perdas? Do que depende, afinal, a felicidade? Será que a felicidade – a que conseguimos tocar – é apenas a ponta de um imenso iceberg, de toda uma unidade de sentimentos, vida, missão e postura diante da vida, diante do sofrimento e até da morte?

Pude testemunhar nesses meses o que são famílias unidas e presididas pela dor, e ao mesmo tempo felizes, muito felizes. O tema é profundo e o filme consegue abordá-lo com acerto. A dor vem, queiramos ou não, e a reação – talvez “ação”, que é “proativa”, como se diz ultimamente – depende da estrutura familiar que se tem por base. Razão assiste a meu amigo colombiano: “diante da dor, o que funciona é a família”.

Serão famílias especiais, essas, que conseguem manter a esperança e até a alegria diante da dor? Serão, seus membros, pessoas fora do comum, tão centrados na transcendência que o sofrimento sequer lhes abala? Evidentemente não. São, simplesmente, seres que buscam na família os recursos para se recuperarem, para se apoiarem mutuamente e se refazerem. Sabem extrair da família a fortaleza de que necessitam para digerir a dor e crescer com ela. Alguém apontava em acertada metáfora que tais famílias são como cartas de baralho: sozinhas, não param em pé, mas apoiando-se umas às outras se consegue montar um castelo. “Teus familiares não esperam encontrar em ti alguém extraordinário. Querem apenas contar contigo para poderem se apoiar em e ti, e tu neles.” A frase não é minha, mas de Miriam Weinstein, autora do livro que acabo de ler: “O surpreendente poder das refeições em família – como elas nos fazem mais inteligentes, fortes, saudáveis e felizes”. Um encanto de livro, que mais do que as refeições em família, versa sobre a própria família. A autora realiza uma extensa pesquisa e demonstra o tremendo poder de fogo – de formação educacional – das refeições em família. Por exemplo: entre os adolescentes que jantam com a família cinco ou mais vezes por semana, a incidência de drogas e alcoolismo diminui sensivelmente, acima dos 40%, resultado mais expressivo qubellae o referente ao nível de notas escolares, ou até mesmo à freqüência a grupos religiosos. Recolhe também uma pesquisa realizada em Harvard segundo a qual, na fase de alfabetização, as crianças que alcançam melhor aproveitamento são as que almoçam mais vezes com a família, porque acabam adquirindo um vocabulário muito mais amplo que as demais. Não porque tenham lido mais que as outras, mas porque ouvem os adultos conversarem à mesa. E com não pequena surpresa, a pesquisadora vem a descobrir que há lares onde não há sala de jantar, outros sequer mesa para refeições em família. Não admira que justamente nesses lares verificou-se maior incidência de anorexias e transtornos alimentares.

Vivemos na era do fast-food, do self-service, do delivery, em que parece não haver tempo para detalhes como almoçar em família e conversar. A refeição virou apenas “alimentação”, “nutrição”, e não por acaso, em nossos centros comerciais, a área reservada aos restaurantes costuma se chamar “praça de alimentação”. Pode-se comer de tudo, bastante, rapidamente, mas dificilmente se pode conversar, “perder” tempo, praticar a liturgia das refeições que nos educa no esperar, no escutar, no conviver, nos verdadeiros ritmos da alma. No dizer de Weinstein, parafraseando Epicuro: “Antes de pensar no que comer, bom seria pensar com quem vamos comer. Comer sozinhos é próprio de leões e de lobos”.

A autora acerta em cheio, porque o valor que está em jogo não é apenas o estilo fast-food das refeições, mas a própria família. Hoje, há quem queira obter o título de “família” para justificar qualquer tipo de relacionamento. É como quem quer comprar uma comenda ou um título nobiliário. Alguns se assustam com essas perspectivas aberrantes. Eu, porém, confesso que não perco o sono, pois acho que o horizonte acabará se desanuviando. Será como a purificação do ouro. O fogo se encarregará de separar da escória o que tem valor. A dor chegará algum dia, inevitavelmente, e sob sua luz ficará evidente quem é de verdade família e quem comprou esse “título” para usá-lo como enfeite.

Weinstein – que se apóia na tradição judaica – encerra seu estudo com a história de um sábio Rabino do século XVII. Sempre que os judeus eram ameaçados, este bom homem ia até o bosque, acendia uma fogueira, fazia uma prece, e Deus lhe atendia. Morreu o mestre, e um de seus discípulos seguiu o seu exemplo nos momentos de crise. Ele não sabia como acender o fogo, mas lembrava-se da prece. O milagre acontecia igualmente. Morreu também este, e seu sucessor também se esqueceu da oração. Mas, mesmo assim, ia ao bosque e dizia: “Não sei como acender o fogo, nem mesmo lembro-me da prece, mas pelo menos sei para onde devo ir em momentos como esses”.

Nestes tempos em que tantos desaprenderam a rezar e a acender fogueiras, nós, que pelo menos nos sentimos “família”, sabemos para onde ir nos momentos de dor: ao nosso lar! É na família onde tudo tem conserto, onde nos sobrepomos à dor, onde reconquistamos a esperança de viver.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2008/12/09/bella-o-poder-de-fogo-da-familia/




Walt nos Bastidores de Mary Poppins: Educar com experiências inesquecíveis (por Pablo González Blasco)


“Saving Mr. Banks” (2013). Diretor: John Lee Hancock. Emma Thompson, Tom Hanks, Colin Farrell, Paul Giamatti, Jason Schwartzman, Bradley Whitford, Annie Rose Buckley, Ruth Wilson 125 min.

saving_mr_banks     Assisti o filme, faz já alguns meses. Fascinou-me. Ainda sob o impacto das emoções, mandei uma mensagem para os meu irmãos, que moram na Europa. “Um filme encantador. Para os que éramos crianças nos anos 60. Um despertador de vivências”. Recebi reposta, quase imediata, de um deles: “A tua sobrinha foi assistir ontem com as amigas –todas na casa dos 20 anos- e adorou”.

Lembrei da teoria do meu pai –muitas vezes comprovada na prática – de que há filmes, ou melhor, trilhas sonoras, que encantam as crianças (com perdão da minha sobrinha) mesmo que nunca o tenham visto antes. De fato, quando os primeiros netos chegaram e ele tinha, vez por outra, que ficar de babá junto com a minha mãe, colocava-lhes o CD de “The Sound of Music” (A Noviça Rebelde)…. e as crianças sorriam placidamente, ficavam calmas, serenas. Aproveitando o ensinamento, eu mesmo ofereci de presente –nessas festas de aniversário de um ano, que nunca sei o que dar, sempre é um dilema- não a música, mas o filme em DVD. Não uma vez, várias, muitas até. E parece –pelo retorno que tenho- que a estratégia continua funcionando.

saving_mr_bansk_1     Mr. Banks não é a Noviça Rebelde, mas o outro musical que a Julie Andrews estreou na década de 60: “Mary Poppins”. Ou melhor, como o título anuncia, os bastidores do filme, a gestação desse grande sucesso infantil….que seduz aos adultos. Faltou-me tempo, depois de ver o filme, de buscar e assistir novamente Mary Poppins. Conhecer as entrelinhas, e a difícil negociação de Walt Disney para que a escritora australiana lhe vendesse os direitos da encantadora babá mágica –foram 20 longos anos- fez me pensar que, quando assisti por primeira vez com 9 anos, não tinha captado o recado principal. Na verdade, captei o que interessava naquele momento. A música que grudava na memória, os limpadores de chaminés dançando, os remédios que provocavam levitações desafiando a lei da gravidade, e o sorriso impactante de Mary Poppins que tinha soluções para tudo. Soluções que tirava de uma bolsa peculiar, elástica como o coração de uma mãe, onde se encontravam todos os recursos para as necessidades próprias e as alheias.

Seria possível alinhavar alguns comentários sobre o filme, e os motivos que levaram P. Travis a criar Mary Poppins, como expediente para reconciliar-se com os seus fantasmas da infância. Fantasmas que não são exclusivos, porque Walt Disney tinha também os dele. Em ambos os casos, a arte –a escrita, a criação- é o remédio, o modo de entender. E isto sim, já é um bom recado para os nossos desassossegos. Quando escrevemos e damos vazão ao mundo interior na criação artística –que pode ser própria, ou emprestada de outros que têm reconhecido talento- chegamos a compreender as vivências que nos rodeiam. Conversamos com nossas emoções –alegrias, frustrações, expectativas, desânimos- quando as tornamos explícitas. E desse modo nos conhecemos, nos construímos, curamos as chagas da alma. “Nós contamos histórias –diz a personagem de Walt Disney- é isso que fazemos”. O que poderia interpretar-se como: nos arrumamos a nós mesmos através das histórias que contamos.

saving_mr_banks_2     Nosso mundo é rápido, frenético, em tempo real. Não temos tempo para nada, e não parece que queiramos mudar o panorama. Carecemos de serenidade para escrever –aqueles saudosos diários das nossas avós!- , para saborear as próprias emoções, degustando-as da mão da arte, domesticando-as ao ritmo sereno da reflexão que decanta em palavras. “Para que poetas em tempo de indigência?” –exclamava Holderlin. Sempre que tropeço com esta frase, pergunto-me se a indigência não será justamente a causa da falta de poesia, e não o empecilho para que os poetas floresçam.

Mas a verdade é que a proposta do filme não é um convite a grandes mergulhos psicológicos. Melhor é relaxar e se dispor a assistir um agradabilíssimo espetáculo de duas horas, num mano-a-mano sublime: uma Emma Thompson extraordinária e Tom Hanks que incarna Walt Disney com perfeição. Tive ocasião de assistir novamente com um grupo de amigos, algumas semanas depois. Afinal, promovi-o tanto, que era necessário estar presente na sessão conjunta. Sem reflexões psicológicas mas, novamente, experimentando o despertar das vivências, agora alavancadas pelos comentários e pela satisfação que pude comprovar à minha volta.

saving_mr_banks_3     São vivências que surgem ao compasso das canções que cantarolávamos quando criança. No colégio, entre os amigos, ou na família, muitas vezes lideradas pela minha mãe que tinha uma linda voz de soprano. Naquela época, me dizia muito mais a melodia do Chim Chimney ou doSupercalifragilisticexpialidocious do que Madama Butterfly ou La Boheme. Mesmo assim, tomei nota pois imaginei que o tal de Puccini era uma personagem importante….como vim comprovar e apreciar, muitíssimo, anos depois.

Aquilo que se planta na infância, dura sempre. Floresce com o tempo, no decorrer da vida que encadeia os acontecimentos e nos faz evocar as raízes. E daqui brota a reflexão mais séria que o filme me acendeu: o que vão evocar os que não tiveram infância, ou passaram por ela sem cultivá-la? Entendemos que quem cultiva a infância nunca é o interessado mas aqueles que lhe nutrem e educam. Pais, professores, familiares, vizinhos. O tempo de indigência que não permite poetas, converte-se hoje na indigência de tempo: ninguém tem tempo para nada, muito menos para os outros, para cultivar pessoas, tarefa artesanal que requer paciência de ourives.

saving_mr_banks_5     A minha inevitável relação com o mundo da educação tem me levado a frequentar as leituras nessa área. Não lembro exatamente onde –provavelmente em mais de um autor- deparei-me com uma consideração relevante para o tema que nos ocupa. Somente o ser humano tem infância. Os outros animais, depois que são desmamados e ganham independência dos progenitores, estão já prontos para se reproduzirem. O ser humano dispõe de um longo período – a infância- antes de tornar-se apto para ser pai ou mãe. São anos de crescimento biológico, psicológico, afetivo. E também intelectual e moral. Mas, são, sobre tudo, anos de acumular vivências, de aprofundar raízes. Não há dúvida de que o desenvolvimento intelectual e de aptidões tem se fomentado muito. O déficit –pela aparente indigência de tempo que leva a um investimento equivocado de recursos- recai sobre o capítulo das vivências.

As crianças se beneficiam de modernos métodos de ensino, aprendem várias línguas, meia dúzia de esportes, um sem fim de atividades paralelas, ocupadíssimos como um executivo mirim que cursa vários MBA, preparando-se para uma vida….que não está vivendo…e que talvez venha a viver algum dia, mas sem raízes. Vale lembrar que o alemão Froebel, inventor do Kindergarten (jardim da infância), tinha em mente justamente o contrário: colocar, literalmente, cada criança num pedaço de jardim para que o cultive. O objetivo não é aprender a ler, a escrever, e ser um poliglota. Trata-se de entrar em contato com a natureza, o que implica cultivar a terra, caçar insetos, sujar-se de lama, ver as nuvens no céu. É preciso dar tempo ao tempo, sem a ansiedade de acelerar o curriculum, entulhando conhecimentos.

Uma vida cabal se consegue vivendo com plenitude e apropriadamente cada etapa da vida: sem atalhos que acabarão rendendo problemas posteriores. Não se estica a criança para que cresça: nem física, nem intelectualmente. Este último aspecto está um pouco abafado por uma má entendida educação precoce. Os homens tem um período de latência, grande, longo: a infância. Não se pode encurtar esse tempo –que é onde se descobre o mundo- sem pagar as consequências. Vivências, experiências compartilhadas com os formadores, desenvolver a capacidade de contemplar, de surpreender-se. Enfim, uma educação estética, artística, vital.

saving_mr_banks_4     O progresso tecnológico –que traz inegáveis benefícios- entranha também sérios riscos quando não se ensina a usá-lo convenientemente. Vem à minha cabeça a compulsão fotográfica. Todo o mundo faz fotos de tudo, a toda hora. Nos locais turísticos, nas filas que entopem os museus, nas paisagens de consagrada beleza, e até no quotidiano catalisado pelo festival visual que oferece o Facebook. O registro fotográfico sempre foi uma tentativa de congelar uma vivência, um momento que merece ser registrado porque carrega um sem fim de lembranças, de emoções, de carinho comum. Dai a foto, uma tentativa de eternizar o contingente. Hoje porém, é tanta a sofreguidão com que se dispara a câmara embutida no celular –e maior a rapidez em deletar a imagem que não ficou boa- que mal se encontra espaço para viver o momento. Quer dizer: registram-se momentos não vividos, ou vive-se para registrar o vazio. Guardam-se as fotos –que dificilmente se contemplam- mas ninguém armazena as vivências….simplesmente porque elas não aconteceram. As muitas fotos impedem as pessoas de viver o momento. São as árvores que não deixam ver o bosque. É aquela música que cantava o Julio Iglesias: “ de tanto correr pela vida, me esqueci de viver”.

Indigência de tempo, que impede a educação pausada, artesanal, o compartilhar as vivências. Indigência de vivências que se supre, erradamente, com toneladas de fotos, com ótima resolução em megapixels mas desbotadas de vitalismo. Indigência de poesia, de arte, que decanta na miséria que todo ser humano carrega.

Educar –diz outro dos autores que frequento nas minha leituras- é proporcionar experiências inesquecíveis. Eu, felizmente, tive muitas na infância e sou imensamente grato por isso. Tanto que deixei plasmada a minha gratidão por escrito várias vezes. Lembro, por exemplo, de um breve capitulo de um livro, que intitulei: filme-família, uma festa a ser reconquistada.

Neste momento tenho o livro diante e copio, porque é difícil dar o recado com menos palavras: “Começa o filme. Mamãe já falou tanto deste filme…É, porque o filme-família nunca é desconhecido para todos. Sempre alguém já o viu – faz muitos anos!!, diz- e o recomenda porque…bem, porque é bonito, é ótimo. Não sabe dizer por que é bonito; lembra da sensação que teve quando assistiu. Será parecida com a nossa que o vemos por primeira vez? Não, não é. São o entorno, os sentimentos, as expectativas, o filme enfim, que se gravam fotograficamente no álbum das lembranças entranháveis e que o tempo realça, sem amarelá-las, tornando-as gigantes. O tempo é um ampliador genial das emoções. O filme-família é isso, o evento que marca, que se registra nos sentimentos, que pede “replay”… quando os anos passam. Mas “replay” familiar; se não, perde o encanto. Não se revê um filme-família a modo de lembrança pessoal, para mim. Há que revê-lo para os outros, com os outros. As sensações dos outros -da família- despertam em nós as vibrações antigas do evento de outrora”

Os bastidores de Mary Poppins levaram-me até os meus próprios bastidores, as experiências inesquecíveis. Um privilégio que desejo a muitos. Um desafio para os que têm de educar as mulheres e os homens que conduzirão o nosso mundo nas próximas décadas. Se tiverem bastidores com experiências inesquecíveis, podemos ter a esperança de que o mundo será melhor do que este que nos toca viver.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2014/07/24/walt-nos-bastidores-de-mary-poppins-educar-com-experiencias-inesqueciveis/




Hannah Arendt: o compromisso de pensar, por Pablo González Blasco


“Hannah Arendt” – Direção: Margarethe von Trotta. Barbara Sukowa, Axel Milberg, Janet McTeer, Julia Jentsch, Ulrich Noethen,. Alemanha, Luxemburgo, França. 2012. 113 min.

     Todos os comentários que me chegaram deste filme eram unânimes: cinema de primeira categoria. Direção perfeita de Margarethe Von Trotta, interpretação magistral de Bárbara Sukowa. Magistral e realista: fumando o tempo todo, como a personagem que encarna, embora o filme não chegue a mostrar os charutos que Hanna fumava em público. Os intelectuais, os filósofos e o tabaco: alguém já escreveu sobre isso, eu não me detenho nessa particularidade, até porque estou em atraso com estas linhas. Explico.

Deixei o filme em suspenso, e debrucei-me sobre um livro que repousava na minha prateleira. Quis lê-lo antes de assistir o filme, para ter uma ideia da vida e obra da pensadora alemã. Levou-me algumas semanas, mas valeu a pena.  É pouco provável que os leitores tenham a oportunidade de ler alguma das obras de Arendt antes de ver o filme. Mas seria muito útil que, ao menos, lessem o comentário que fiz a esse livro, antes de mergulhar na fita. Sem preocupação; não conto a trama do filme, até porque o aspecto em que se foca a produção é pontual: a cobertura jornalística que Hanna Arendt fez para o New Yorker do julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém.

O filme serve a modo de aperitivo a vida da Hanna Arendt e do seu marido Heinrich Blucher, as reuniões na sua casa com a tribo de pensadores e artistas,  e até alguns flash back com Heidegger, o amante da juventude. Mas o prato forte é, sem dúvida, a vivência do julgamento do criminal nazista. Arendt foi a Jerusalém para cobrir o evento como jornalista –mais colunista do que repórter, diríamos hoje- mas o resultado foi uma verdadeira experiência filosófica, a contemplação de uma realidade que se lhe figurava com perfis diferentes aos que todos os outros conseguiam enxergar. Tudo culmina no discurso onde, diante uma plateia de universitários absolutamente seduzidos pela pensadora, dá razão da sua perspectiva, e dos seus escritos que cristalizaram na obra polêmica: “Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal”.

     A cena do discurso cativou-me. Imediatamente a inclui no meu repertório de clips cinematográficos, e a utilizei seguidamente em duas conferências que tive de dar em dois congressos médicos diferentes. O impacto no público foi notável. E as ideias que me sugeria foram se desdobrando, com rapidez, enquanto eu tentava alinhavá-las para anotá-las nestas linhas.

Independente do tempo histórico e de uma possível justificativa para os que a criticavam por entender, equivocadamente, que estaria negando o holocausto, Arendt estabelece um paradigma de capital necessidade para o momento presente. Eichmann funcionou apenas como uma desculpa – um caso extremo- de alguém que abdicou de uma das características integrantes do ser humano: o compromisso de pensar. “Não encontrei ali um ser diabólico, nem a encarnação da perversidade. Deparei-me com um funcionário, um burocrata que se adaptou ao sistema e abriu mão de pensar”. E a seguir o grande recado: “Os maiores males do mundo são causados por gente comum que deixa de refletir, que não pondera suas ações, porque interrompeu o diálogo intimo que devemos ter conosco mesmos. Desta atitude medíocre nasce o que eu denominei a banalidade do mal”.

O caso extremo do carrasco nazista que despacha pessoas para os campos de concentração como quem controle estoque de mercadorias com apurada competência, serve para ilustrar aspectos menos chocantes, mas de premente atualidade. Lá está o tema que me ocupa habitualmente –a Humanização da Medicina- motivo dos convites e das conferências apontadas. Não tanto a humanização, mas o por que nos desumanizamos.

     As palavras em inglês arrastado de Hanna Arendt funcionaram como veículo perfeito para dar o meu recado. A grande –e preocupante- questão, é que os médicos que destratam o paciente, aqueles aos que lhes falta humanismo, não são pessoas más, cruéis e insensíveis: são, simplesmente, profissionais que entraram no sistema, que fizeram o que todos fazem, que não se deram ao trabalho de pensar na sua missão, no compromisso vocacional. Veio à mente algo que me aconteceu há já muitos anos. Foi também durante uma conferência, nessa ocasião dirigida a estudantes. Quando acabei, aproximou-se de mim uma aluna –os alunos nem sempre falam diante da plateia, reservam as melhores questões para os momentos em que o professor começa a abandonar a sala- e me disse que estava em crise. Sorri, e olhei para ela convidando-a a desabafar. “Estou no quinto ano de medicina. Ontem dei plantão no pronto socorro da obstetrícia, e chegou uma mulher que tinha provocado um aborto. Estava sangrando, com dor, assustada. O residente encarou-se com ela e gritou que essas coisas há que pensá-las antes. Foi se preparar para fazer a curetagem e eu segurei a mão da paciente e disse a ela que o médico (residente) não era má pessoa, que estava cansado do plantão”. Devo ter colocado uma cara compreensiva, porque ela continuou: “Professor, eu conheço esse residente. Ele estava no quarto ano quando entrei na faculdade. Era uma pessoa ótima, alegre, animada. Hoje ele é assim….” Minha cara deve ter assumido um interrogante, porque ela disparou: “Minha angústia é …..Quando é que a gente vira bandido, professor?”.

Não lembro o que respondi àquela aluna. Talvez não respondi nada. Mas contei este fato inúmeras vezes nos meus encontros com estudantes. Hoje, se tivesse ocasião –quem sabe agora com as redes sociais onde todos ficam sabendo de tudo ela leia estas linhas- lhe diria: convide-o, em nome dessa velha amizade, para assistir o filme de Hanna Arendt. Lá veria a pensadora apaixonada explicar por que abdicamos de ser pessoas –nos desumanizamos- quando abrimos mão da característica que define o homem como tal: a capacidade de pensar. Entenderia que a incapacidade de pensar é o que permite que gente normal, medíocre, cometa as maiores atrocidades.

     Naturalmente as conclusões no nosso cenário não são tão evidentes como no caso de Eichmann. É preciso conduzir a reflexão da plateia para que se atreva a pensar que o recado é para eles, para todos nós.  Até porque abdicar da reflexão, atitude frequentíssima, costuma estar disfarçada de condutas equívocas. Falávamos das redes sociais e da aluna de quem nunca mais tive notícia. O que poderia ser um bom recurso para oferecer agora uma ajuda concreta, é também uma arma de dois gumes. É difícil que alguém que passa a vida se comunicando com metade do planeta, imagine que não dedica um minuto da sua vida a….pensar. Troca informações, “curte” notícias, compartilha fotos, tem a vida –e a intimidade- como livro aberto, em vitrine comunitária. O barulho virtual é tanto, que não há espaço para o silêncio que a reflexão requer. E quando alguém põe as manguinhas de fora e se atreve a socializar uma carga de profundidade reflexiva, é muito provável que receba um comentário irônico, ou que seja sumariamente eliminado de grupo de “amigos”, que rapidamente podem substitui-lo por outras duas dúzias de elementos que transitam no universo de mediocridade não pensante.

Eu costumava ilustrar o descaminho do médico na figura do Cavalheiro Jedi que se passa para o lado negro da força. Alguém muito bem treinado, com poderes formidáveis que por medo cai para a escuridão.  Os olhos vermelhos de Anakin Skywalker transpirando medo de perder a mulher que ama são o prenúncio da metamorfose em Darth Vader. Agora, Hanna Arendt me mostra que a questão não é tão simples, e que os bandidos nem sempre estão integrados num Império que conspira. O perigo que nos ameaça, está dentro de cada um de nós, em tênue divisão, onde a reflexão é a verdadeira fronteira. Muito bem o adverte um conhecido educador quando escreve: “O  meu problema imediato sou eu mesmo, e o pacto silencioso que estabeleço com o sistema e que permite que “o de sempre” governe a minha vida e as minha decisões” (Parker Palmer: The Courage to Teach). Cruzam-se os limites sem maldade intrínseca, num deixar-se levar, maria-vai-com-as-outras; tudo sem grandes traumas, amparados pelo sistema, enfeitado com o cintilar de bijuterias que piscam alegremente no smartphone fazendo sentir o aconchego de um mundo virtual –milhares de amigos- que compartilham e “curtem” um gregarismo medíocre que promove a banalidade do mal.

O imenso conhecimento que temos ao alcance da mão não dispensa o compromisso de pensar. Essa advertência seria a principal função dos professores universitários, ao invés de vomitar repetidamente informações que os alunos adquirem por si sós, mais rapidamente, de pijama nos respectivos domicílios. Advertir e provocar, fazer pensar: um verdadeiro desafio para os que se envolvem na educação, que não é simples treino, mas fomentar uma atitude de reflexão de por vida. Não dar peixes, ensinar a pescar, entender por que se pesca, e abrir espaço à criatividade e a novas modalidades de pesca.  As frases finais do contundente discurso de Hanna Arendt servem para fechar estas considerações: “A manifestação do ato de pensar não é simples conhecimento. Mas é a habilidade de distinguir o bem do mal, o feio do bonito. Sem pensar nos tornamos incapazes de fazer juízos morais. Espero que essa capacidade de pensar dê às pessoas a força para evitar as catástrofes nos momentos decisivos”.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

 

Fontehttp://www.pablogonzalezblasco.com.br/2013/10/25/hanna-arendt-o-compromisso-de-pensar/