A verdadeira questão é: o que é o nascituro?


Recentemente, as discussões em torno do aborto se tornaram ainda mais acaloradas em decorrência de alguns eventos tanto no Brasil quanto no mundo. Em março de 2018, a ministra do STF, Rosa Weber, convocou audiência pública para discutir a legalização do aborto no âmbito da tramitação da ADPF 442. Em maio, ganha destaque o referendo em que 66% dos irlandeses votaram a favor do aborto. Em junho, os deputados argentinos aprovaram projeto para legalizar o aborto no país.

Desconsiderando a triste e óbvia diferença de que no Brasil questões como essas são preferivelmente resolvidas via canetada de 11 magistrados iluminados do Poder Judiciário, ao arrepio da consulta direta ao povo ou aos seus 513 deputados e 81 senadores eleitos, todos esses eventos – ADPF brasileira, referendo irlandês e deputados argentinos – trazem em comum o mesmo rol de argumentos tão bem conhecidos e incessantemente repetidos pelos fiéis defensores do aborto.

Aqui, neste breve artigo, faço questão de levantar apenas uma das bandeiras fortes do movimento, repetidamente compartilhada nas redes sociais e inclusive abertamente destacada no voto da deputada argentina Silvia Lospennato: não se trata de discutir a vida ou não, mas de reconhecer que o aborto existe, sempre vai existir, podendo haver a diferença de ser seguro ou precário.

Este tipo de argumento remeteu-me a um diálogo fictício narrado pelo americano Gregory Koukl, no qual uma pessoa a favor do aborto (sujeito A) discute com outro contrário (sujeito B), e que julgo pertinente reproduzir aqui:

A: “O aborto é uma escolha privada entre a mulher e seu médico”. B: “Nós permitimos que pais abusem de seus filhos se for feito em privacidade?” A: “Isso não é justo. Essas crianças são seres humanos”. B: “Então a questão não é realmente sobre privacidade, mas, sim, se o feto é um ser humano”. A: “Mas muitas mulheres pobres não possuem condições financeiras de criar outros filhos”. B: “Quando seres humanos ficam caros, nós os matamos?”. A: “Bem, não, mas abortar um feto não é o mesmo que matar um humano”. B: “Então, mais uma vez, a questão real é ‘o que é o nascituro? ’ ‘O feto é realmente um ser humano?’”.

A: “Por que você insiste em ser tão simplista? Essa é uma questão muito complexa envolvendo uma mulher que tem que tomar decisões agoniantes”. B: “Concordo, a decisão pode realmente ser psicologicamente agoniante para a mãe, mas moralmente não é complexa: é errado matar um humano inocente.” A: “Matar seres humanos indefesos é uma coisa; abortar um feto é outra”. B: “Então você concorda: se no aborto realmente se mata um ser humano indefeso, então a questão não é complexa. A questão é: ‘O que é o feto?’”.

A: “Chega de sua filosofia abstrata. Vamos falar de vida real. Você realmente acha que uma mulher deveria ser forçada a trazer ao mundo uma criança indesejada?”. B: “Muitos moradores de rua são indesejados. Podemos matá-los?”. A: “Mas isso não é o mesmo.” B: “Essa é a questão, não é: eles são iguais? Se os nascituros são verdadeiramente humanos como os sem-teto, então não podemos simplesmente matá-los para resolver nosso problema. Estamos de volta à minha primeira pergunta, ‘o que é o nascituro?’”. A: “Mas ainda assim você não pode forçar sua moralidade nas mulheres”. B: “Você se sentiria justificado em ‘forçar sua moralidade’ em uma mãe que abusa fisicamente de seu filho de dois anos de idade?”. A: “Os dois casos não são iguais. Você está assumindo que o nascituro é um ser humano, igual a uma criança”. B: “E você está assumindo que ele não é”.

“Percebe, isso não é realmente sobre privacidade, dificuldades econômicas, filhos indesejados ou em forçar a moralidade. A verdadeira questão é: o que é o nascituro? Responda essa questão e você automaticamente responderá as outras.”

Defender o aborto apresentando mil e uma razões a seu favor, mas sem responder a esta pergunta essencial (ou a permeando muito superficialmente) tem sido a maior estratégia de seus defensores. Para fugir da implicação moral e ética inerente à defesa de um procedimento que extraí do útero materno um ser com até 12 semanas de existência, preferiu-se por conduzir, ardilosamente, o debate a partir do slogan “precisamos falar de aborto” quando na verdade deveria ser “precisamos falar de feto”.

Refletir sobre o nascituro é, no fundo, indagar-nos se estamos conduzindo corretamente o debate sobre o aborto. Afinal, se o feto realmente for vida, isso muda tudo, não?

Marcos José Iorio de Moraes é bacharel em história pela Unicamp, advogado e membro do IFE Campinas (marcos.jimoraes@gmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 11/07/2018, Página A-2, Opinião.




Precisamos mesmo falar sobre aborto, por Jornal Gazeta do Povo


bebe

Recomendamos a leitura do excelente editoral publicado em 23/11/2014 no Jornal Gazeta do Povo:

Em sua edição de novembro, a revista TPM disparou a campanha “#precisamosfalarsobreaborto”, militando a favor da descriminalização do aborto. Artistas, políticos e outras celebridades vêm posando para fotos (depois viralizadas nas mídias sociais) com o slogan da campanha, fazem a defesa de sua posição no site da revista, e algumas mulheres relatam sua experiência pessoal de ter feito o aborto e não se arrepender disso. O tema não chega a ser exatamente um tabu: fala-se de aborto com muita frequência. E a Gazeta do Povo concorda que é preciso, sim, discutir o assunto. Mas considera que, na iniciativa promovida pela revista, está faltando a perspectiva daquele que é o principal envolvido em todo aborto.

A campanha da revista – que pede “debate”, mas não dá espaço aos argumentos pró-vida e já indica qual deveria ser o seu resultado: o apoio à descriminalização –, apesar de seu título, enfatiza as consequências do aborto, como as mortes de gestantes que interrompem sua gravidez clandestinamente, e demonstra uma compreensão incorreta do ato, tratado exclusivamente como manifestação da soberania da mulher sobre seu corpo. Ora, se “precisamos falar sobre aborto”, temos de começar mostrando o que o aborto é, em primeiro lugar: a morte de um ser humano indefeso e inocente. Essa é a realidade da qual não se pode escapar, uma realidade tão sombria que não são poucos os que, após ter contato com ela, se tornaram grandes defensores da vida intrauterina. Um dos casos mais notáveis é o do médico Bernard Nathanson, que passou décadas realizando dezenas de milhares de abortos e militando neste campo; a introdução da tecnologia do ultrassom, nos anos 70, permitiu que Nathanson pudesse ver o que realmente ocorria durante um aborto, o que o fez repensar seus atos.

Essa realidade, no entanto, acaba soterrada por uma série de argumentos que, no mais das vezes, tratam da autonomia da mulher sobre seu próprio corpo. A autonomia é um princípio importante da bioética, mas o problema deste raciocínio é ignorar que o feto não é parte do corpo da gestante, como se fosse um órgão a mais: é um outro indivíduo, com código genético próprio, obtido já no instante da concepção, um fato amplamente atestado pela ciência médica. E, pelo simples fato de ser humano, tem pleno direito à vida, ainda que nos estágios iniciais de desenvolvimento. Essa terceira pessoa envolvida é simplesmente ignorada nos argumentos a favor do aborto. Mas, se vamos discutir o tema, é exatamente isso que precisa ser levado em consideração, em vez de se descartar o caráter humano do feto, uma informação científica, como se fosse um argumento religioso.

Com isso, não queremos dizer que somos insensíveis ao drama das mulheres que, pelas mais diversas condições, se veem levadas a buscar um aborto – e colocam em risco sua própria vida, como ocorreu no caso recente de Jandira Magdalena dos Santos Cruz, no Rio de Janeiro. A morte de uma única mulher em um aborto clandestino é inaceitável e nos coloca diante de um sério dilema. Mas a saída proposta pelos defensores de um suposto direito ao aborto, no entanto, é simplista: transformar a gestante, já fragilizada, em coautora de uma violência contra o próprio filho. O que precisamos é de uma maior mobilização da sociedade, e também do poder público, para que essas mães sejam devidamente amparadas e possam levar até o fim sua gestação, respeitando o direito à vida tanto da mulher quanto do bebê.

É louvável o trabalho de ONGs e entidades que acompanham as gestantes, defendendo-as da pressão social para que eliminem seus filhos e dando a elas um genuíno direito de escolha – sabemos que, por diversas circunstâncias, nem sempre a mãe pode ou quer ficar com a criança; nesses casos, o encaminhamento para a adoção é a melhor solução. No Congresso Nacional, segue em tramitação o Estatuto do Nascituro, que oferecerá mais mecanismos para preservar a vida da criança e a integridade física e mental da mãe. Mas, independentemente de sua aprovação no parlamento, que todos nós possamos abrir os olhos para o horror do aborto e, para evitá-lo, não deixemos abandonadas as mulheres que muitas vezes acreditam não ter outra alternativa.

Fontehttp://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?id=1515513&tit=Precisamos-mesmo-falar-sobre-aborto




Precisamos falar de feto


A discussão sobre o aborto sempre é capaz de  despertar o apetite irascível que existe dentro de nós, qualquer que seja a opinião adotada, seja em favor autonomia da vontade da mulher (pro choice) ou do direito à vida do feto (pro life). Entretanto, jamais pensei que esse mesmo debate fosse apto a excitar o poeta que também habita o nosso ser. Uma advogada disse-me, enquanto despachava comigo, ser favorável ao aborto livre, porque “só existe uma vida quando existe um nome”.

Compreendo bem a metáfora poética: o feto converte-se em vida apenas quando somos capazes de projetar uma identidade nele: quando o feto deixa de ser feto e passa a ser João ou Maria, isto é, quando nosso João ou Maria passam a ser desejados. Até lá, nessa “lógica poética”, enquanto o feto é um ser inominado, ele pode ser “despedido” sem justa causa.

Enquanto ouvia os argumentos da advogada num silêncio que mais me ensurdecia, contemplei as vantagens de uma legislação civil que consagrasse a afirmação poética de nossa causídica. O nome do novo ser estaria sujeito à uma condição futura e incerta: os pais evitariam dar nome ao filho até uns 15 anos (leia-se: anos e não meses) e aguardariam a conformação da personalidade desse novo ser.

Se ele fosse um adolescente precocemente maduro, teria direito a um nome e, assim, a lei reconheceria uma espécie de validade onomástica com efeitos retroativos à data de seu nascimento. Contudo, se ele fosse um adolescente médio, caracterizado pelos maus modos e pelos hábitos de higiene inexistentes, seria sempre possível despachá-lo para o mundo dos mortos. E por que não? Afinal, fica difícil projetar uma identidade recíproca com alguém que mastiga de boca aberta, renuncia diariamente ao estudo ou ao trabalho, tem mais palavrões que palavras no repertório comunicativo e troca de sabonete duas vezes ao ano.

Se um feto só passa a ser considerado uma vida quando somos capazes de conceber uma relação vital para ele e com ele, a própria noção de início da vida deixa de repousar nas mãos da embriologia (fecundação) e passa a ser opção de cada um. Ainda estamos no nível do debate da gravidez “desejada ou indesejada”, mas não descarto a extensão dessa discussão para as fases da infância ou da adolescência “desejada ou indesejada”, a julgar pelo coerente raciocínio da verve poética de nossa advogada.

Então, quando “#precisamosfalardeaborto” precisamos ir muito além dessa relação onomástica, um tanto pobre, porque só se refere unilateralmente à mulher, como se o feto não existisse ou fosse um dado irrelevante: “#precisamosfalardefeto”. Quando o feto entra nessa equação teórica, a verdade não corre o risco de ser subjugada pelas veleidades centrífugas e pelos desejos arbitrários que alimentam essa relação onomástica. Ou melhor, duas verdades: a verdade indicativa da dignidade, valor e finalidade do bem da vida humana e a verdade imperativa das exigências de respeito que decorrem da primeira verdade.

Quando “#precisamosfalardeaborto” e se “esquece” de que “#precisamosfalardefeto”, acaba-se por mascarar o debate sobre o aborto com toneladas de retórica política, feminista, criminal ou sanitária, com o claro intuito de, como resultado dessa equação social, provocar a liberalização total do aborto, em razão do alto grau específico dado à variável da relação onomástica. Uma variável que, além de ser mal graduada nessa sentença social, ainda ignora as evidências incontestáveis da embriologia humana em prol de uma “privatização” da noção do início da vida humana.

E sempre com o risco de estar a serviço da morte indistinta de um ser irrepetível, porque, já que o debate sobre o aborto é capaz de fazer brotar o poeta que está adormecido em nossa alma, “toda vez que morre uma vida, um universo único é destruído”. Por isso, se alguém lhe disser “#precisamosfalardeaborto”, responda que “#precisamosfalardefeto”. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, mestre em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).