JUVENTUDE, CONDUÇÃO E RUMOS


Numa dessas manhãs, pedalava ao redor da Lagoa ouvindo a voz operística do Bruce Dickinson. O vento cortava a alma, porque o sol ainda não tinha levantado, mas a disposição de muitos já estava de pé, pondo-se a marchar na minha contramão de direção.

Gosto muito desse exercício matinal. Alia esforço físico com distanciamento da realidade e é vivida mais intensamente nos meses em que não há aulas, porque, nesse horário do dia, invariavelmente estou levando os filhos para a escola.

Nesses momentos, a reflexão costuma fazer-me companhia, sempre tirada a partir da observação dos rostos que cruzam com o meu ao longo das voltas que vão sendo vencidas até que o cansaço fale mais alto. Nesses rostos anônimos, sempre vejo inúmeras faces de alegria, tristeza, preocupação ou tédio. Algumas cabeças, ora empinadas, ora cabisbaixas e outras plugadas ao som da música ou ao som do silêncio. E a minha cabeça em ritmo de diálogo com todas essas outras.

Naquela manhã, chamou-me atenção um grupo de senhoras que caminhava acompanhado de supostos netos, recém-egressos na juventude, porque nesse horário do dia, esses seres, em férias, costumam estar imóveis e acompanhados de travesseiros e cobertores. Ao olhar para aquela cena, lembrei-me que os jovens são sempre capazes de nos surpreender. Para o bem ou para o mal: vai depender do grau de enamoramento de seu coração.

Hoje, é preciso estar atento para os anseios e as perspectivas que a realidade descortina para a juventude, porque daí devemos apontar um modelo ético de ser humano e de sociedade coerente com nossa natureza. Não estou aqui a repetir a chavão de uma certa mentalidade decrépita, tanto mais decrépita, em regra, quanto mais longe se situa de seu passado juvenil e que fica enfatizando as limitações e os fracassos da cultura atual.

É preciso abrir espaços de interlocução com os adolescentes, participar de seus ambientes, dialogar com suas representações, compreender suas expectativas, mas, sobretudo, dar rumo para que eles conduzam seus projetos de vida. Porque, quando somos jovens, costumamos pensar nas pessoas que amamos e admiramos e que, por isso, gostaríamos de imitar.

Pode ser uma pessoa da vida quotidiana ou um sujeito famoso. Vivemos numa cultura da celebridade e a juventude é, muitas vezes, encorajada a ter figuras do mundo dos esportes ou do espetáculo como modelos de vida. Devemos aproveitar essas ocasiões e, ao invés de dizer que esse não presta ou essa é assanhada demais, devemos submetê-los às perguntas cruciais: quais são as qualidades que esses modelos possuem e que você gostaria de possuir em maior medida? Que espécie de pessoa realmente você gostaria de se tornar?

Ouviremos respostas nos mais diversos sentidos, mas a maioria delas passará por rios de dinheiro ou por uma alguma espécie de vanguarda espetacular numa dada atividade profissional. Ter dinheiro torna possível ser generoso e fazer o bem no mundo. Entretanto, só isso não é suficiente para tornar uma pessoa feliz. Ser grandemente dotado numa profissão é algo positivo. Poderá tornar-nos famosos, mas isso não é sinônimo de felicidade.

A busca da mimese de uma celebridade é, no fundo, a busca da felicidade que o jovem anseia tão intensamente nessa fase da vida. No entanto, uma das grandes tragédias deste mundo é que muitos a procuram, mas não conseguem encontrá-la, pois a buscam nos lugares errados. Os sucessos mundanos não satisfazem um coração enamorado, porque ele foi feito para a transcendência e a transcendência é a porta de nossa alma que abre somente para fora.

Paul Johnson, certa vez, disse que a adoração que os jovens dedicam às celebridades é uma corruptela da espécie de adoração que os nossos antepassados dedicavam aos santos, beatos e outros tipos de aureolados. A afirmação é tão certeira que os modernos “peregrinos” imitam os antigos na busca de uma relíquia da celebridade amada, ressalvado o abismo axiológico particular entre umas e outras.

Recentemente, o vaso sanitário do John Lennon foi a leilão pelo lance mínimo de 9.500 libras. Ontem, um pedaço de tecido. Hoje, uma privada. Amanhã, quem sabe, a língua da Lady Gaga conservada num vidro de formol. Não sei. Só sei que, além de condições materiais decentes, devemos oferecer aos jovens modelos de imitação que os conduzam a um horizonte de vida autêntico. Quem sabe começando por nós mesmos, os pais, por meio de um esforço diário de exemplo, resgatando, como dizia o cantor na minha pedalada, a juventude que existe dentro de nós. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 21/11/2018, Página A-2, Opinião.




O preço da felicidade


É no mínimo curioso observar que há muitas pessoas de baixa renda que são notavelmente felizes, assim como há outras de condições mais abastadas que também são visivelmente felizes. De igual forma, é comum encontrar pessoas muito infelizes em todo tipo de situação financeira. Antes de entrar em qualquer debate abstrato sobre o que é ser feliz, pode-se considerar que o famoso slogan “dinheiro não traz (compra) felicidade” guarda razão. Nunca houve, e nem haverá, nenhuma correlação obrigatória entre dinheiro e felicidade e as pessoas que descobrem tardiamente essa verdade quase sempre já estão afogadas em suas misérias pessoais, ainda que nadando em dinheiro.

Estabelecer metas pessoais, profissionais e financeiras na vida é importantíssimo. Não há nenhum mal em querer viver dignamente com boas condições materiais e ser feliz. Entretanto, é preciso cuidado, pois, hoje, em nosso mundo, uma lógica muito sedutora, mas terrivelmente perigosa, é introduzida em nossas cabeças, indicando, desde precocemente, que é preciso sucesso para ser feliz. Este “sucesso”, por sua vez, tem múltiplas facetas, simbolizado por empregos ideais, carros do sonho, casas extravagantes, a tão almejada promoção profissional ou um corpo “perfeito”.

A lógica é sedutora, pois a partir do momento em que constatamos alguma infelicidade ou desequilíbrio interior, pequeno ou grande, atribuímos que sua solução só pode estar fora, esperando pra ser conquistada, seja qual for a faceta da vez. Tudo o que mexe com a esperança humana tem um poder incrivelmente sedutor. Por outro lado, a lógica é perigosa, pois é uma mentira.

Aliás, não estou falando essas coisas sozinho e nem da boca para fora. Apenas corroboro, modestamente, o que muitos autores e estudiosos já descobriram. Gostaria apenas de trazer o exemplo de Shawn Achor, autor da obra “The Happiness Advantage” (ou pela infeliz tradução “O jeito Harvard de ser feliz”), que busca demonstrar, com base nas recentes descobertas no campo da psicologia positiva, que a lógica funciona na verdade de maneira inversa: é a felicidade que impulsiona o sucesso, e não o contrário.

Durante uma turnê de palestras na África, Shawn Achor visitou uma escola ao lado de uma favela que não tinha eletricidade e a água encanada era precária. Diante daquelas crianças, percebeu que não seria apropriado utilizar os exemplos que normalmente apresenta nas palestras sobre experiências com estudantes universitários americanos privilegiados e homens de negócios poderosos. Assim, na tentativa de criar um vínculo e encontrar um ponto em comum com seu público, perguntou em tom claramente irônico quem gostava de fazer lição de casa. Para seu espanto, 95% das crianças levantaram as mãos e abriram um sorriso sincero e entusiasmado. Mais tarde, querendo saber o porquê dessas crianças serem tão “estranhas”, explicaram-lhe que elas consideravam um privilégio fazer a lição de casa, um dos muitos privilégios que os pais não tiveram.

Diante dessa experiência marcante, Shawn começou a perceber o quanto a nossa interpretação da realidade pode alterar a experiência que temos dela. No caso, as pessoas que são gratas pelo o que têm, ainda que seja pouco, conseguem enxergar as coisas por outra perspectiva, que as permitem serem mais felizes e produtivas mesmo diante de uma realidade dura que em nada contribua para isso.

Como é belo encontrar pessoas que sabem agradecer sinceramente pelo o que têm, pelo que são e pelas pessoas que têm ao lado. Pobres financeiramente ou não, são todas ricas de espírito e a alegria que emanam através de seus sorrisos sinceros, iguais aos daquelas crianças, é simplesmente contagiante.

Por isso, penso que felicidade tem menos a ver com aquilo que temos propriamente, mas no valor que damos a elas. Nosso mundo está sedento por pessoas felizes assim.

Por fim, aproveitando o enredo, agradeço sinceramente a você, caro leitor (a) por ter me acompanhado até aqui. Um feliz 2018 a todos!

Marcos José Iorio de Moraes é bacharel em história pela Unicamp, advogado e membro do IFE Campinas (marcos.jimoraes@gmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 17/01/2018, Página A-2, Opinião.




RESENHA: Roger Scruton: “As Vantagens do Pessimismo” (E o perigo da falsa esperança) - por Pablo G. Blasco


LIVRO: Roger Scruton: “As Vantagens do Pessimismo” (E o perigo da falsa esperança). É Realizações. São Paulo. 2015. 207 pgs.

as vantagens do pessimismoDe que pessimismo nos fala Scruton? Na verdade, trata-se de um discernimento da realidade, de visualizar que vivemos entre seres humanos falíveis, e não num universo de sistemas e ideias que são facilmente modificáveis. Os problemas da humanidade não são questões de ordem técnica, como pensam os que ele denomina otimistas inescrupulosos. Estes são aqueles que acreditam que as dificuldades e desordens da humanidade podem ser superadas por algum tipo de ajuste em larga escala: é suficiente desenvolver um novo arranjo, e as pessoas caminharão para o sucesso. Desse modo, todos os esforços são colocados num plano abstrato e nenhum sequer é situado no campo da virtude pessoal. Essas são as falsas esperanças dos otimistas teóricos que devem ser temperadas com a dose certa de pessimismo, que não é outra coisa mais do que conhecimento real e prático da condição humana. O raciocínio de Scruton é claro, o que associado a uma tradução magnífica, permite acompanhar a lógica do seu discurso sem necessidade de comentários explicativos.

Esses otimistas perigosos e criticados são os que eliminam velhas rotinas, e querem mudar as coisas em proveito próprio. Estão tão propensos a consultar o passado como um batalhão que luta pela sobrevivência está propenso a proteger seus monumentos. O que eles querem é estar do lado vitorioso. Com o menor esforço pessoal possível. O pessimista sensato, não se deixa levar pelas correntes, enfatiza as restrições e os limites, lembra-se da imperfeição e da fragilidade da condição humana. Nas suas deliberações, os mortos e os não nascidos tem a mesma voz, porque sente-se inserido nas tradições e na história. E saber utilizar a dose de pessimismo para temperar as esperanças que, de outra forma, podem nos arruinar.

O pessimismo judicioso nos ensina a não idolatrar os seres humanos, mas a perdoar seus defeitos e a lutar por sua recuperação. Ensina-nos a limitar nossas ambições na esfera pública e a manter abertas as instituições, os costumes e os procedimentos em que os erros são corrigidos e as falhas confessadas, em vez de mirar algum novo arranjo em que os erros nunca são cometidos. O pior tipo de otimismo é aquele que animava Lenin e os bolcheviques, que fazia com que acreditassem que haviam colocado a humanidade na trilha das soluções dos problemas da história, e que fez com que também destruíssem todas as instituições e todos os procedimentos pelos quais os erros podem ser corrigidos.

A utilização principal do pessimismo é retirar aquela postura solitária e conduzir à verdadeira primeira pessoa do plural. As pessoas escrupulosas, que temperam a esperança com uma dose de pessimismo, são aquelas que reconhecem limitações, não obstáculos. (..). Reconhecem que a sabedoria raramente está contida em uma única cabeça, e é mais provável que esteja consagrada em costumes que resistiram ao teste do tempo do que nos esquemas dos radicais e dos ativistas.

Quando falta essa sadia dose de pessimismo para temperar a vida, deixaremos de ver, por exemplo, o mundo financeiro como sendo composto de seres humanos, com todas as suas fraquezas morais e projetos pessoais, e passaremos a vê-lo como composto de gráficos e índices (taxas, juros, moedas) que em si são meras abstrações cujo valor econômico depende exclusivamente da confiança das pessoas nelas. E dá no que dá.

Muito interessante o comentário sobre o fracasso da revolução de 1968, a nível social e econômico. Não foram abaladas as bases das democracias ocidentais. Mas sobrou um reduto que se concentra e domina os departamentos de ciências sociais de todo o mundo ocidental. No coração do curriculum de humanidades podemos encontrar todas as falácias que, na prática, fracassaram nos espasmos revolucionários de 68. Uma falácia utópica, onde eles veem o mundo de um modo diferente. Desprezam a experiência e o senso comum, e colocam no centro um projeto que está “imune à refutação”. Os milhões de mortos ou escravizados não são suficientes para refutar a utopia, mas simplesmente fornecem a prova das maquinações diabólicas que foram postas no seu caminho. Isso é o que caracteriza os estados totalitários: a necessidade constante e implacável de encontrar uma classe de vítimas, a classe daqueles que se atravessam no caminho da utopia e impedem a sua implementação.

Outro ponto de destaque é a transferência da culpa e do ressentimento. “Quando você transfere ao outro o seu ressentimento consegue evitar o custo de compreendê-lo, que é o custo do autoconhecimento. Nada mais cómodo do que dizer que conspiram contra o teu projeto, ao invés de refletir sobre ele, e de confrontá-lo com a experiência quotidiana e histórica (…)O otimista inescrupuloso confronta a crítica com um argumento de transferência de ônus, dizendo que cabe a você, o pessimista cauteloso, provar que os costumes e as tradições que eu condeno trazem realente uma contribuição para o bem comum. Mesmo os costumes que sobrevivem ao teste do tempo não são argumento que satisfaça os otimistas. Eles nos colocam na disjuntiva de ter que provar que funcionam, que são benéficos para a maioria (…). Quando coisas ruins acontecem, especialmente, quando acontecem comigo, tenho um motivo para buscar a pessoa, o grupo, a coletividade que as provocou, e sobre as quais as culpas podem ser lançadas. É mais uma falácia onde a prova da culpa está no sucesso do outro, que acarreta a minha desgraça. O antiamericanismo tem aqui suas raízes”.

Isso implica deixar de viver por meio de esquemas e planos, não culpar os outros por nossos enganos e fracassos, deixando de pensar a nosso respeito como se fôssemos dotados de algum tipo de inocência angelical que somente a corrupção da sociedade nos impede de exibir e desfrutar. Envolve uma postura de solicitude -com as instituições, os costumes e as soluções consensuais. Envolve um reconhecimento de que é mais fácil destruir do que criar e de que cumprimos a nossa missão na terra se cuidamos do pequeno canto que é nosso e levamos este “nosso” ao coração.

A forma mais simples de explicar o comportamento de qualquer organização burocrática é supor que ela é controlada por uma conspiração de seus inimigos. Como Lenin ilustrou, o pior tipo de governo não é aquele que comete enganos, mas aquele que, ao cometer os enganos é incapaz de corrigi-los. Quando os poderes do governo são divididos de maneira apropriada, e quando aqueles com soberania podem ser destituídos pelo voto, os enganos podem ser remediados.

Traz um pensamento de Burke para o mundo moderno, que faz pensar na insensatez do messianismo que, espasmodicamente, aparece aqui e acolá: “O conhecimento de que precisamos nas circunstâncias imprevisíveis da vida humana não é derivado da experiência de uma única pessoa nem contido nela, e também não  pode ser deduzido a priori de leis universais. Esse conhecimento nos é concedido pelos costumes, pelas instituições e pelos hábitos de pensamento que foram sendo moldados ao longo de gerações, por meio de tentativas e erros das pessoas, muitas das quais pereceram no curso de sua aquisição”.

No final do livro, Scruton nos proporciona um bom projeto de vida: “A felicidade não resulta de uma busca do prazer e tampouco é garantida pela liberdade. Ela surge do sacrifício: essa é a grande mensagem que nos chega por meio de todos os trabalhos memoráveis de nossa cultura. Trata-se da mensagem que foi perdida em meio à algazarra das falsas esperanças, mas que, parece-me, pode ser ouvida mais uma vez se devotarmos nossas energias à sua recuperação”. Proposta audaciosa e difícil, porque nos inclinamos uma vez e outra ao engano, a transferir a culpa, a desfocar a perspectiva da verdade. Afinal, como ele mesmo afirma com palavras de T.S. Eliot, “é difícil para a espécie humana suportar tanta realidade”.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente em 27/03/2017 em <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2017/03/27/roger-scruton-as-vantagens-do-pessimismo-e-o-perigo-da-falsa-esperanca/>




Felicidade à la carte


Num jantar, alguns comensais conversavam sobre a felicidade. Quando fui chamado a dar minha contribuição ao assunto, socraticamente, disse: “Felicidade: haverá tema mais infeliz?”. Nossa sociedade é curiosa. É um paradoxo darmos uma importância excepcional à felicidade individual, talvez como nunca antes na história, e, ao mesmo tempo, tropeçarmos diariamente em pessoas infelizes e insatisfeitas.

Durante muito tempo, nossa realidade foi um vale de lágrimas e contávamos com as graças de nossa advogada celeste para superar esse desterro existencial. Depois que irromperam a ciência e a técnica e sua visão otimista do progresso perene, o homem tornou-se senhor e possuidor da natureza. O Iluminismo veio e canalizou essa atitude ao considerar que o infinito progresso transformaria nossa vida terrestre numa espécie de paraíso.

Como efeito, deu ao homem a sensação de confiança para poder conseguir por si mesmo a felicidade. Essas ideias consolidaram-se nos séculos XIX e XX e, atualmente, seus influxos alimentam dois fenômenos bem presentes: o consumismo e o individualismo, os quais transformaram o presumido direito à felicidade no dever de ser feliz.

Recordo-me, antes, porém, dos livros de autoajuda. A quase maioria dos livros de autoajuda são livros de anti-ajuda. Seguem a toada iluminista ao transformarem a felicidade em direito e, depois, em dever. Conheço gente que começou infeliz lendo um dessas cartilhas e, no final da odisseia, estava mais infeliz ainda.

O consumismo, alimentado pelo capitalismo, concebeu-se de pronto como o meio de se assegurar a satisfação de todas as necessidades. Os mecanismos de crédito adquiriram um papel determinante, porque tornaram possível a realização dos desejos sem a preocupação de se pensar nas contraprestações.

Numa época ainda recente, o sujeito juntava e juntava dinheiro antes de comprar isso e aquilo. Nos dias atuais, com aqueles mecanismos, a ”frustração” de não se poder comprar aqui e agora tornou-se insuportável: importa viver o presente e pagar no futuro. Nem que isso gere uma crise financeira sistêmica, como já se deu num passado recente.

Já o individualismo canaliza nossos esforços para a busca da felicidade desde nós mesmos, de sorte que eventual insatisfação deve ser debitada na conta da responsabilidade exclusiva do indivíduo. Não é à toa que proliferam os negócios relacionados com a realização pessoal, desde as cirurgias estéticas até as pílulas dietéticas, todas a prometer a reconciliação conosco mesmos e a consumação de todo nosso potencial.

Se o homem está condenado à felicidade, então qualquer contratempo converte-se numa espécie de enfermidade e, como doente, o insatisfeito acaba por ver-se como um inadaptado. “É obrigatório ser feliz!”. Se assim é para os indivíduos, o cenário piora para as nações. Na opinião pública, começa-se a falar sobre os índices de felicidade dos países: “país feliz” é tão absurdo como um “hipopótamo voador”. Os países não são pessoas e a felicidade não pode ser medida por níveis de “felicidade interna bruta”.

Aviso aos navegantes: nada disso funciona, porque a “felicidade nacional” não existe. Existem felicidades particulares, individuais, muitas vezes intransmissíveis, que não podem ser reduzidas a um denominador comum. As pessoas não são números, são distintas e irrepetíveis. Muitas vezes insondáveis e insolúveis.

Não adianta se encher de bens e mais bens e fechar-se para os outros. E, depois, ser medido por um índice que não mede nada. Somos, provavelmente, a primeira sociedade na história que produz indivíduos infelizes pelo simples fato de não serem felizes. Tenho a impressão de que não somos donos das fontes da felicidade e que nossa própria finitude deveria nos levar a reconsiderar saídas para esse beco em que nos enfiamos.

Ainda que consigamos aliviar muitas misérias, não podemos seguir concebendo a felicidade como quem solicita esse ou aquele prato num cardápio à la carte. Nesse sentido, a felicidade continuará sendo um tema infeliz. Até para uma conversa de jantar entre amigos. Com respeito à divergência, é o que penso. 

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 14/10/2015, Página A-2,Opinião.




Sobre a felicidade e a prática das virtudes em Aristóteles: um breve comentário - por Natália Gama


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“Criança na cozinha” (1904), de Carl von Bergen (1853-1933)

 

Vivemos em um tempo em que, paradoxalmente, por um lado, o acesso a bens culturais, científicos e tecnológicos é ampliado; por outro, o número de quadros de ansiedades, web depressões e afazeres da ordem do dia aumenta vertiginosamente. Para reinterpretar essas contradições e iluminar a moldura existencial dos dias de hoje, recordamos algumas reflexões de Aristóteles sobre a felicidade e a prática das virtudes.

Aristóteles, em Ética a Nicômaco, diz que “toda arte, toda investigação e igualmente todo empreendimento e projeto previamente deliberado colimam algum bem, pelo que se tem dito, com razão, ser o bem a finalidade de todas as coisas.”[1]

Segundo Aristóteles, é natural, faz parte da nossa essência, direcionarmos as ações para um fim, já que há sempre uma intenção última. Mas a questão é: qual seria este objetivo final? Na compreensão do Estagirita, há um bem maior que é a finalidade de todos os demais bens, um bem absoluto que prevalece sobre todas as coisas: a felicidade. Todavia a felicidade é uma matéria polêmica, difícil de classificar.

 As pessoas ordinárias a identificam como algum bem óbvio e visível, tais como o prazer, ou a riqueza ou a honra, umas dizendo uma coisa e outras algo diferente; na verdade, com muita frequência, o mesmo indivíduo diz coisas diferentes em ocasiões diferentes: quando fica doente, pensa ser a saúde a felicidade; quando é pobre, julga a riqueza a felicidade. Em outras oportunidades, sentindo-se consciente de sua própria ignorância, os indivíduos (comuns) admiram aqueles que propõem algo grandioso que ultrapassa a compreensão deles e tem sido sustentado por alguns pensadores, que além de muitas coisas boas que mencionamos há um outro bem, que é bom em si mesmo, e se coloca em relação a todos aqueles bens como causa de serem bons.[2]

Para um melhor entendimento do que vem a ser a felicidade, esse “bom em si mesmo”, Aristóteles não exclui a presença de bens relativos, como a saúde, riqueza, honra, etc. Pelo contrário, os enxerga, em boa medida, como bens úteis para a obtenção de uma vida feliz. Ainda sobre este ponto,

parece haver diversas finalidades visadas por nossas ações; entretanto, ao elegermos algumas delas, por exemplo a riqueza, ou flautas e instrumentos em geral – como um meio para algo -, fica claro que nem todas elas são finalidades completas, ao passo que o bem mais excelente (o bem supremo) parece ser algo completo. Consequentemente, se houver alguma coisa que, por si só, seja a finalidade completa, essa coisa – ou se houver várias finalidades completas, aquela entre elas que for a mais completa – será o bem que é objeto de nossa investigação.”[3]

Aristóteles, durante toda a discussão apresentada na Ética a Nicômaco, especialmente no Livro I, sublinha a completude presente em algo que seja uma finalidade em si mesmo em contraste com algo que se busque como meio para um determinado fim. Em consonância com tal distinção, o filósofo define a felicidade como absolutamente completa, “uma vez que sempre optamos por ela por ela mesma e jamais como um meio para algo mais, enquanto a honra, o prazer, a inteligência e a virtude sob suas várias formas, embora optemos por elas mesmas (…), também optamos por elas pela felicidade na crença de que constituirão um meio de assegurarmos a felicidade.”[4]

Contudo, para suprir a carência de uma avaliação mais explícita do que seja a felicidade, Aristóteles propõe determinar a função do ser humano. Se um artesão reside na função que ocupa, semelhantemente, seria possível sustentar que o bem humano reside na função humana, no caso do ser humano ter uma função. Dentro desse raciocínio, o filósofo destaca a racionalidade, diferencial do homem em relação aos demais seres vivos. A partir dela, a função do ser humano seria o exercício ativo das faculdades da alma, e conclui que “o bem humano é o exercício ativo das faculdades da alma em conformidade com a virtude, ou se houver diversas virtudes, em conformidade com a melhor e mais perfeita delas. (…) de forma a ocupar uma existência completa, pois (…) um dia ou um efêmero período de felicidade não torna alguém excelsamente feliz.”[5]

Se a felicidade é uma atividade da alma em conformidade com a virtude perfeita, torna-se necessário compreender a natureza da virtude. Segundo Aristóteles, a felicidade humana significa excelência da alma, não do corpo; logo, para estabelecer uma coerência com o pensamento aristotélico, a felicidade examinada é uma atividade da alma. Ao analisar a alma, o filósofo a apresenta como sendo bipartida, uma parte irracional (faculdade vital presente em todas as coisas vivas que permite a nutrição e o crescimento) e uma parte racional. De acordo com esse princípio de divisão, as virtudes também são agrupadas em duas modalidades: as intelectuais e as morais. As primeiras devem, em grande parte, seu desenvolvimento ao ensino, e por isso requerem experiência e tempo; enquanto que as virtudes morais são adquiridas em resultado do hábito, não nos são naturais, tendo em vista que nada que existe por natureza pode ser alterado por um costume. Podemos notar essa relação da repetição rotineira com aquisição da virtude quando descrevermos o caráter (disposições morais) de alguém. Não dizemos que se trata de alguém capaz de entendimento ou de grande sabedoria, mas o caracterizamos como alguém sóbrio ou moderado, destacando a continuidade das ações.

De forma prática, as virtudes, para Aristóteles, estão intimamente relacionadas com as ações e as paixões, e cada uma delas é acompanhada por prazer ou sofrimento. Essa associação é importante porque as virtudes e os vícios do homem se relacionam com as mesmas coisas, o nobre e o vil, o agradável e o doloroso, entre outros pares. Para equilibrar essas relações, a virtude passa a ser compreendida como o hábito de escolher o justo meio, aquilo que está entre o excesso e a falta. Assim, o meio termo seria algo único para todos os homens, uma virtude de mediania, isto é, capaz de aplicar uma sabedoria prática.

Também a virtude consiste na justiça que é praticada em relação ao próximo. Com efeito, a justiça completa, no mais próprio e pleno sentido do termo, aquilo que é próprio da virtude. A justiça é uma espécie de meio-termo que confere ao justo, por escolha própria, o discernimento de não dar mais do que convém a si mesmo e menos do que convém a seu próximo.

Aristóteles, ao longo de toda investigação sobre a natureza da felicidade e de como podemos alcançá-la, defende que a vida feliz não é um bem realizável totalmente, mas uma busca constante, acompanhada pela aquisição e desenvolvimento das virtudes. Um percurso que é direcionado à polis, ao bem comum, visto ser o homem um animal político. E a felicidade, de acordo com essa moldura do pensamento aristotélico, é uma busca em que se justifica a boa ação humana, um bem almejado por si mesmo não em vista de outra coisa, um bem para o qual todas as ações estão voltadas.

Recuperamos essas reflexões sobre a felicidade e a prática das virtudes na tentativa de propor uma releitura das estruturas da ação humana, especialmente para os dias de hoje. Recordar essas noções nos permite reconfigurar, em certa medida, os paradoxos atuais, a finalidade das ações realizadas, as crescentes incongruências entre vida exterior e vida interior, nossos hábitos e objetivos. Confere-nos instrumentos para agir no mundo. Uma sabedoria prática que reside entre o fazer e a esperança de bem-viver.

*Natália da Silva Gama é Doutoranda em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Edson Bini. Bauru, SP: Edipro, 2013.

NOTAS:

[1] ARISTÓTELES, 2013, p. 37.

[2] Ibdem, p.40, 41.

[3] Ibdem, p. 47, 48.

[4] Ibdem, p.48.

[5] Ibdem, p.50.

 

Artigo publicado no site Dicta&Contradicta em 14/09/2015. Disponível [online] no link <http://www.dicta.com.br/sobre-a-felicidade-e-a-pratica-das-virtudes-em-aristoteles-um-breve-comentario/>