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Alegria do amor

Opinião Pública | 25/05/2016 | | IFE CAMPINAS

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Há pouco, Francisco lançou uma exortação apostólica que, como juiz de família, aguardava com ansiedade, bem maior que a de um corintiano na iminência de receber o indulto natalino. Batizada de Amoris laetitia, esse documento, composto por nove capítulos, ecoa os resultados dos dois últimos sínodos, além das claras referências à dois cânones do tema familiar no século XXI: as encíclicas Familiaris consortio e Humanae vitae. Ousaria dizer que essa exortação corre o risco de ser a obra prima de seu magistério.

Seu texto não só aborda o magistério eclesial acerca da família, mas acolhe, naquilo que de sentido transcendente subsistiu em cada esforço em direção à órbita veritativa da noção de família, as lições de Luther King, Erich Fromm, Borges, Octavio Paz, entre outros tantos. Suas linhas contêm todo o desenho da capacidade de beleza e de tragédia que a família pode proporcionar a seus membros.

É uma linha bem tênue regida justamente pelo amor, mas um amor ordenado no seio familiar. Afinal é o amor e somente o amor que deve estar em ordem para que se note a retidão no agir de um indivíduo. Na melhor tradição de Agostinho, segundo sua famosa máxima: “ama e faze o que quiseres”.

Contudo, a ordem desse amor, proposta pelo documento papal, não decorre exclusivamente das convenções sociais ou do sabor das circunstâncias do cotidiano familiar, mas, segundo o mesmo texto, da ordem intrínseca do amor. Filosoficamente, a ordem como transcendental do ser. Explico.

Uma roda é tanto mais uma roda quanto mais perfeito é o círculo que a forma. Se deixa de ser uma circunferência e passa a ser uma parábola, deixa de ser roda, ou seja, perde, em parte, seu ser próprio de roda. Pode até servir para outro fim, mas não atenderia sua finalidade natural, a de girar como uma roda. Se, então, sua estrutura ficasse mais desordenada e se transformasse num quadrado ou num triângulo, deixaria ser roda por completo.

No âmbito desta ordem, o amor aperfeiçoa-se e cresce quanto mais seu ser desenvolve-se virtuosamente e, ao contrário, diminui sua intensidade na medida em que se atrofia o virtuosismo desse ser.

Por isso, na família, seus membros devem crescer na ordem do amor, a fim que muitas das crises atuais da família – imaturidade afetiva, mentalidade antinatalista, longas jornadas de trabalho dos cônjuges, a chaga do amor líquido e a ditadura da ideologia de gênero – possam ser superadas sem grandes prejuízos à sua trama existencial.

Onde há amor ordenado, o amor realiza-se mais gratuitamente e, como efeito, surge uma abertura para uma acolhida incondicional: um lugar em que todos são queridos e respeitados por si mesmos, independente de mérito, inteligência ou aparência física. Hedonismo, utilitarismo, eugenismo são dimensões que não têm espaço na dimensão amorosa familiar.

Esse amor é fecundo na medida em que reside na complementariedade e reciprocidade entre os sexos no contexto conjugal familiar: em outras palavras, a presença das figuras feminina e masculina proporciona, dentro daquele âmbito de amor ordenado, um ninho mais adequado e propício para a formação dos filhos. A família é tanto mais família quanto mais respeita essa estrutura antropológica, verificada objetivamente, à saciedade, pela história da vida privada e mesmo pela etnologia estruturalista.

Francisco, ao cabo, dispõe sobre a família com uma grande capacidade de realismo, típica de seus ensinamentos, mas sem deixar de temperar a intelectualidade pastoral com doses generosas de referência à dimensão do amor humano e da alegria que dele emana.

Do contrário, tudo não passaria de uma receita pronta e acabada, a ser aplicada silogisticamente. Satisfeita minha ansiedade, o que não necessariamente pode ser dito pelo nosso indultado, sempre movido pela esperança da próxima clemência natalina, a exortação reforça uma realidade empírica bem evidente nas lides familiares: todos vivem de seu amor, faça o bem ou faça o mal. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no Jornal Correio Popular, edição 25/5/2016, Página A-2, Opinião.