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Cada um no seu quadrado?

Opinião Pública | 22/02/2017 | | IFE CAMPINAS

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No mundo tupiniquim das humanas, onde nós, humanistas, andamos a dever no mercado das ideias, a última moda está em apontar o dedo em riste para os “brancos” desta terra e proclamar o libelo acusatório da “apropriação cultural”, quando eles resolvem cultivar uma dimensão do legado cultural negro.

Em outras palavras, se um “branco” decide ter o cabelo do Bob Marley e se vestir igual a ele, esse “branco” cometeria o “crime de apropriação indébita” da cultura alheia. Até ontem, incorporar os elementos de uma outra cultura sempre foi motivo de orgulho para seus genuínos membros e, em sentido contrário, prova cabal de anti-racismo.

Hoje, ao que parece, alguns negros, que engoliram muita maionese sociológica nos sanduíches de leitura da realidade oferecidos no terminal de ideias universitárias, sentem-se ofendidos ao menor indício de cometimento daquele “crime”. Recentemente, a vítima desse autoritarismo racista foi uma moça que, por fazer tratamento contra um câncer, “ousou” andar no metrô com um turbante na cabeça. Questionada pelo grupo representativo daquele autoritarismo, ela respondeu que a cabeça era dela e, por isso, poderia usar o que bem quisesse.

Depois desse cala-boca, fico a imaginar a reação dessa turma fã de uma “petição de princípio”: dá por demonstrada uma “indevida apropriação cultural” que precisaria ser necessariamente demonstrada. Ou, melhor, não imagino. Apenas me recordo de Millôr, nosso grande filósofo, quando disse que, em momentos de reação, o importante é manter a presença de espírito, embora o ideal fosse a ausência de corpo.

Ao contrário do que pensa a trupe dessa “apropriação cultural”, a cultura consiste no cuidado e no cultivo do espírito, a dimensão mais radicalmente humana de um indivíduo. Isso implica em dizer que cultura tem a ver com a perfectibilidade humana da pessoa e que vai muito além de aspectos isolados e adjetivos de sua existência. Envolve o avanço do indivíduo rumo a si mesmo: um crescimento virtuoso daquilo que é genuinamente humano no homem.

Nada mais distante do pano de fundo do besteirol da cartilha da “apropriação cultural”: uma espécie de isolacionismo autorreferente e destinado somente aos seus herdeiros genéticos. E nada mais reducionista, porque fecha a oportunidade de conhecimento e apreensão dos aportes de cultivo do espírito humano presentes em todas as principais culturas conhecidas. Inclusive, naquela dos avós e bisavós desse coletivo engajado nesse pensamento carente de suficiência ontológica.

Diante dessas circunstâncias, meu orientador sempre diz ser possível imaginar que uma preocupação central dos intelectuais – de quem, no frigir dos ovos, espera-se que enxerguem mais longe e pensam mais profundamente – seria com a manutenção das fronteiras que separam a civilização da barbárie, cujas linhas têm se mostrado tênues e confusas nos últimos anos.

Gostaria de poder crer nisso, mas não se fazem mais intelectuais como antigamente. Muitos deles resolveram abraçar as causas do barbarismo em suas mais variadas facetas, como no caso da dita “apropriação cultural”, que mais lembra um estado “cultural” hobesiano. Esqueceram que a cultura, quando eleva o espírito humano, seja de que povo for e mesmo em seus elementos mais intuitivos, é sempre distinção e nobreza.

E a nobreza obriga, como dizem os franceses, no sentido de se buscar um compromisso inescusável de diálogo com as melhores e mais perenes contribuições culturais da humanidade, expressão e descobrimento, na ordem existencial, do verdadeiro, do bom, do belo e do uno.

A dita “apropriação cultural”, ao cabo, só serve para tribalizar e despersonalizar o indivíduo. Sua frivolidade e superficialidade cognoscitivas da realidade cultural do homem equivalem a um ensaio erudito vazio esbravejado por uma minoria com voz organizada.

Como os gatos, é bom estarmos de olho nessa peixada. Mas, sobretudo, em seus donos. Romancistas, dramaturgos, diretores de cinema e teatro, jornalistas, artistas e celebridades que endossam esse autoritarismo racista. Afinal, eles são os legisladores invisíveis do mundo de hoje.

Por fim, deixo duas sugestões. Para os “brancos”, por favor, não impeçam os negros de “apropriação cultural”, porque, se assim for, eles não poderão sequer andar vestidos. Para os negros, na próxima “apropriação cultural”, denunciem-na em suaíle e não em português. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 22/02/2017, Página A-2, Opinião.

Espírito conservador

Opinião Pública | 16/11/2016 | | IFE CAMPINAS

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Todos somos conservadores, ao menos naquilo que estimamos. Família, trabalho, time, livros, bebidas, lugares e comidas. Um sujeito com uma disposição conservadora tende a valorizar aquilo que já tem, não porque tudo que possua seja superior à uma alternativa hipotética, mas porque eles não são uma alternativa hipotética e a possibilidade de os perder em tempos de mudança desenha-se como uma privação fundamental.

Vivemos em tempos absolutamente progressistas, nos quais depositamos nossa fé política numa crescente concentração estatal de poder, atribuindo aos detentores deste a condição de “iluminados”, porque eles seriam os guardiães das respostas para todos nossos problemas e imperfeições e, assim, os destinos da cidade sempre estariam progredindo no caminho da política. Para um espírito conservador, “a beleza” do progressismo está em sabermos como começa e ignorarmos como termina.

O espírito conservador é sempre a pedra no meio desse caminho rumo ao progresso. Ele levanta dúvidas e, dessa maneira, questiona o papel de uma elite culta que pretende impor sua agenda política – em regra, progressista, mas, não raro, reacionária – ao restante da sociedade, porque, afinal, por ser mais capacitada, está apta a interpretar a realidade melhor que os incultos, os quais, em razão disso, também não sabem votar.

O espírito conservador também critica uma mídia “mais engajada” em desconstruir que informar, sobretudo durante os processos de alternância de poder. Nesse caso, se o candidato da torcida midiática perde, não foram as pesquisas de opinião que erraram. Foi o candidato opoente que “surpreendeu” e venceu a eleição.

Atualmente, temos três espíritos predominantes no cenário político-partidário: o reacionário, aquele que defende uma visão apegada e idealizada do passado, uma espécie de “revolucionário do avesso”; o progressista, o sujeito dado à filosofia da vaidade do otimismo racionalista, o revolucionário de uma felicidade futura utópica que só existe na cabeça dele.

Por último, temos o conservador, cujo espírito procura, sempre diante da perspectiva de mudança do cenário social, preservar um certo rol de princípios fundamentais apreendidos pela experiência histórica e, assim, orientado por um discernimento prudencial, aceita, por reformas gradativas, as modificações culturais ou sociais que pulsam no seio da dinâmica histórica.

Logo, um espírito conservador não propõe “conservar” tudo como está, inclusive as inúmeras injustiças sociais que saltam aos nossos olhos, mas tem o espírito atento aos sinais das épocas, procurando zelar pelo desfrute das condições presentes que sobreviveram aos “testes do tempo” e que se revelam ainda úteis e benignas na condução da sociedade.

Essa postura também emerge, mas reativamente, em momentos de particular dramatismo para as instituições que sobreviveram aos “testes do tempo”, como a família nuclear. Nesse ponto, metaforicamente, o espírito conservador seria a princesa: só com um beijo do príncipe portador da “boa-nova radical”, ele despertaria.

Em suma, o conservador é aquele que defende o mundo presente e as suas instituições, não porque esse mundo corresponde estritamente a um “projeto conservador de poder”, mas porque as instituições, os valores e os princípios ainda se mostram necessários para a preservação desse mundo tal como vivemos, compondo uma tradição que deve servir de base para uma atuação política prudencial, porque as exigências da política são, em boa parte, as exigências de uma tradição perene.

Nestes tempos modernos – de fragmentação, de “duplipensamento” e de descrença – o espírito conservador adquire um novo alcance e sentido. O espírito conservador é, em si mesmo, um “modernismo” e aqui reside o segredo de seu sucesso: a capacidade de indicar os essenciais arranjos tradicionais que, com base no reservatório de experiências do passado, estão aptos a nos conduzir para uma vida boa. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 16/11/2016, Página A-2, Opinião.