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Era da pós-verdade?

Opinião Pública | 12/04/2017 | | IFE CAMPINAS

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Muito tem se falado sobre a era da “pós verdade”, sobretudo depois dos referendos do Brexit e das FARC e da última eleição americana. Os resultados dessas manifestações eleitorais colocaram a opinião pública e a academia na defensiva. Afinal, o eleitorado, em cada caso, deu uma resposta não prevista justamente por estes entes. Então, a responsabilidade é do eleitorado? Ou destes entes? Ou de ambos?

Observamos todos aqueles três processos e pudemos notar que a cultura dos afetos e das emoções, tão própria de nosso tempo, invadiu, de vez, o campo político. Para atrair a atenção do leitor, os dados objetivos, a opinião dos estudiosos, os argumentos empíricos e a experiência histórica não foram suficientes. Pelo contrário, tudo isso foi meio inútil no meio de um discurso – de ambos os lados – que apelou para as emoções mobilizadoras.

Emoções essas que cativaram, inclusive, os jornalistas envolvidos na divulgação das notícias. Foram tão cativados que deixaram o jornalismo e se engajaram na torcida em prol deste ou daquele resultado: tornaram-se prosélitos e não demorou muito para o leitor perceber isso. Então, deixaram de ser lidos, vistos e ouvidos, assim como muitos dos especialistas consultados. Resumo da ópera: o jornalismo deixou de ser jornalismo.

Depois dos resultados “inesperados”, nas críticas desses jornalistas e especialistas decepcionados percebe-se um forte sotaque elitista, que leva a desdenhar da opinião das massas, culpada por não ter sido informada e, ao mesmo tempo, de ser presa fácil do populismo. Do outro lado, vemos os vencedores desses referendos saturados com o jornalismo feito para jornalistas e endossado pelos especialistas escolhidos justamente pelo dedo proselitista desses mesmos jornalistas.

Nem elitismo ou populismo. O grande problema, por detrás dos resultados desses três eventos, está na forma de comunicação com o público. Como resposta, inventaram o neologismo da “era da pós-verdade”, um título que já não se sustenta, por dois motivos de plano, no nome que lhe deram. Mas eu compreendo bem. Neologismos dão manchetes e, de quebra, chamam seus criadores para os holofotes públicos.

Em primeiro lugar, se estamos na tal era da “pós-verdade” no mundo da opinião pública, então, antes, estávamos na era “da verdade”? Será mesmo? Que verdade? E como falar em verdade num mundo que não dá mais a mínima para as metanarrativas, sejam tradicionais ou não (Vattimo, Lyotard e Derrida)? Em segundo lugar, como algo pode ser “pós-verdadeiro”? Quer dizer que é falso? Ou não? Mas se o oposto da verdade é a falsidade, onde entra essa categoria da “pós-verdade”?

Tenho minhas dúvidas sobre o estado fisiológico do cérebro do autor desse exotismo etimológico da “pós-verdade”: creio que, como o de Quixote, leu tanto livro que suponho que já deva ter secado há tempos. Afinal, em “filosofês”, uma coisa é reconhecer a necessária e fundamental instância linguística da hermenêutica e, outra, muito distinta, é conservar o hermenêutico no plano linguístico e cerrado à realidade das instâncias lógica e ontológica. Traduzindo: em grego, é logomaquia. Em português, com a licença do leitor, é masturbação semântica. Essa é verdade da tal “pós-verdade”.

Na era da “pós-verdade”, os dados estatísticos e a argumentação racional cedem seu protagonismo em prol das emoções nos assuntos públicos. Imigração, economia, educação, enfim, tudo aquilo que nos afeta na vida social seria, a partir de agora, submetido a um elegante étimo composto que, longe de parecer fruto de uma refinada filosofia contemporânea, não vai muito além de um novo estágio do velho e bolorento relativismo dos sofistas gregos.

Se a verdade chegou na “pós-verdade”, como, para alguns, o ser humano alcançou seu patamar “pós-humano”, ou seja, se não há mais espaço para a verdade, seja perene ou provisória, e o sapo da racionalidade transformou-se no príncipe da emotividade, então, nossa percepção dos fatos e dos dados resta submetida ao nosso subjetivismo.

Grandes decisões públicas são difíceis. Sempre há trade-offs, fatores atenuantes, double-speak, provas perturbadoras, “duplipensar”, além de preconceitos injustos. Para uma sociedade saudável, devemos insistir em discutir aberta e verazmente o que sabemos sobre todos os seus aspectos. Tanto da parte dos jornalistas e especialistas quanto dos eleitores. Estamos exauridos da meia-verdade e da nenhuma verdade que povoam o debate público na tal era da “pós-verdade”. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 12/04/2017, Página A-2, Opinião.