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Apresentação Núcleo de Artes

Sem Categoria | 21/12/2014 | |

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Vivemos numa “cultura de repúdio”, segundo Roger Scruton, e isso dá bem o tom da forma como o Ocidente, cada vez mais e preocupantemente, esforça-se por repudiar seus valores estruturais, a começar pelos judaico-cristãos. Esse repúdio, ao fim, redundará num empobrecimento moral ou epistemológico, mas, antes, passará pelo empobrecimento estético, independentemente de qualquer influxo religioso.

Sem um contato vital e profundo com a tradição e os textos sacros, ficaremos cegos, surdos e mudos para uma boa compreensão de dois milênios de arte e de civilização. Como já acontece com a arte contemporânea. Simbolicamente, nesse campo, o ponto da virada, rumo a essa cultura de repúdio, foi o pinico de Marcel Duchamp: a arte desceu do nível do teto da Capela Sistina ou dos ciprestes do Van Gogh, passou pelo dito pinico e foi parar no esgoto da frivolidade e da bizarrice do cotidiano. A imaginação humana realmente não tem mais limites estéticos e qualquer coisa vira um ato de expressão artística.

A tal “loucura da arte” (Henry James) pode ser resumida no clichê expressão/repressão, o qual domina grande parte das discussões analfabetas do nosso tempo. Como somos “herdeiros de uma sensibilidade romântica superada”, acredita-se, hoje, que a arte deve ser “autêntica” e que a “autenticidade” consiste em abrir as portas da alma (na prática, são dos porões), sair por aí oferecendo nossos “sentimentos” e “emoções” numa bandeja de prata e, por via dessa “catarse”, libertarmo-nos de nossas neuroses mais profundas.

Isso está mais para terapia do que arte. Aliás, boa parte da arte moderna não passa de uma pornopopéia de pinturas, esculturas e obras que refletem e concretizam uma espécie de “sessão artística de psicanálise”. Eliot já disse que a arte não é uma questão de expressão ou repressão, mas de disciplina e sublimação: a destruição da arte e a pouca relevância que ela tem dado na retratação da beleza é um claro sintoma de um problema que supera o estético e que envolve uma crise de existência humana. É nessa resposta que o IFE CAMPINAS pretende trilhar propostas de soluções no campo estético contemporâneo.

A beleza do amor

Opinião Pública | 03/11/2014 | | IFE CAMPINAS

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Nas minhas aulas de Redação, tenho por gosto que meus alunos escrevam memórias de infância. Quase sempre tenho a oportunidade de ler histórias divertidas, como a da menina que, brincando de esconde-esconde, resolveu trancar-se no porta-malas. Horas depois, foi descoberta dormindo pelos pais aflitos.

Em uma aula, porém, uma situação muito diferente aconteceu. Uma aluna veio até mim e disse não ter nada para escrever. Respondi ser impossível: “Nunca aconteceu nada de marcante na sua vida, algo diferente, divertido?” Nada, foi a resposta. Mas o rosto dela estava triste. Talvez tivesse algo em mente.

Para minha surpresa, a aluna voltou para o seu lugar e escreveu rapidamente o texto e me entregou. Melhor, quase jogou a folha sobre mim. Em seguida, virou de costas, sentou-se e começou a chorar. Curioso, comecei a ler o texto ali mesmo. Contava a história da morte da mãe. Já me veio aquele mal-estar no estômago, característico da emoção. Segurei a lágrima e permiti que a garota fosse chorar no banheiro.

Na aula seguinte, chamei- a e disse que a redação estava excelente e que escrevera algumas palavras no fim.

Por se tratar de uma aluna jovem, de 14 anos, uma pergunta ficou martelando na minha cabeça: por que um sofrimento desses tão cedo?

Dei-me conta que o mesmo questionamento fora feito por um personagem revoltado de Dostoievski: Ivan Karamazov. No livro, esse personagem conversa com o irmão mais novo, que quer se fazer monge, Aliocha. Em páginas duríssimas de se ler, Ivan relata não se compadecer dos adultos que sofrem, pois teriam “culpa no cartório”. O que o revolta é o sofrimento das crianças. Por páginas, desfila atrocidades que Dostoievski lia nos jornais da época.

Resumindo de forma precária esse belíssimo momento da Literatura, Aliocha percebe pela primeira vez que o irmão não acredita em Deus. Não por causa da dor dos mais frágeis, mas por orgulho, pelo fato de nunca ter aceitado ter sido abandonado pelos pais quando pequeno. As grandes revoltas quase sempre têm motivos íntimos…

Para alguns leitores de Dostoievski, a resposta de Aliocha para os questionamentos de Ivan é decepcionante. Ele afirma: “Só aquele que sofreu tudo pode explicar tudo”, referindo-se a Cristo e ao Calvário.

Mais do que uma resposta, o que Aliocha indica é um caminho. Porque não há respostas prontas para o sofrimento, posto ser pessoal e intransferível. Quem sofre sou eu e sou eu quem tem de descobrir uma resposta, ou o sentido, não outra pessoa. Se não conseguimos nem medir o quanto a dor de cabeça de uma pessoa a nosso lado pode estar incomodando, quanto mais uma dor da alma!

O sofrimento, quando visto de longe, pode até ser incompreensível. De perto, pode até ser revoltante, mas jamais inútil, vazio e sem razão.

Voltando à história da jovem, não escrevi no fim do texto dela palavras de conforto ou qualquer coisa do gênero. Destaquei o que percebi na redação: a beleza do amor. A mãe dela, infelizmente, não está mais entre nós. Mas o que me comoveu, de verdade, foi a lembrança viva. Como escreveu Adélia Prado, “o que a memória ama fica eterno”.

Pode parecer paradoxal, mas o sofrimento, superada a autocompaixão, o vitimismo, aquela síndrome de “coitadinho de mim”, é belo. Aceito, heroico. Uma história que merece ser contada.

Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, jornalista e publicitário e membro do IFE Campinas.

Publicado no jornal Correio Popular em 03 de Novembro de 2014, Página A2 – Opinião.