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Pizza de ideias

Opinião Pública | 07/03/2018 | | IFE CAMPINAS

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Era um final de sábado à tarde, quando, diante daquele forno à lenha com brasas flamejantes, onde assava um par de pizzas, meu afilhado questionou-me sobre minhas preferências político-partidárias no cenário atual, já que se dizia um pouco perdido para fazer suas escolhas. Respondi que, na política, sou um conservador burqueano. Também disse ser um conservador no casamento, já que ainda estou na primeira mulher.

Mas ressalvei que, em termos partidários, por aqui, não me sinto representado por nenhuma das trinta e nove agremiações políticas brasileiras e que muitas delas vendem ideias que misturam alhos com bugalhos. São capazes de defender propostas contraditórias entre si ou mesmo propor agendas políticas que servem mais para reforçar o discurso adversário.

Assistimos a tudo isso também na opinião pública. Basta ler uma seção de debates num jornal ou ouvir um telejornal com acadêmicos convidados. Muita tautologia e sofismo que passam por uma argumentação sólida e coerente. Górgias ficaria encabulado. Ao fim de nosso papo, sugeri ao meu estimado afilhado que ele fosse buscar na filosofia um começo de saída para seus anseios.

Afinal, nós vivemos as respostas para os problemas da vida e a política tem um enorme espaço vital. E, tanto quanto mais despercebida, essas respostas são fruto de uma escolha filosófica, seja essa ou aquela, ainda que a filosofia não mais pretenda avocar a responsabilidade acerca de um discurso onicompreensivo da realidade humana.

Por isso, é precisamente a falta de uma atitude genuinamente filosófica que torna as discussões sobre os temas mais prementes de nossa pauta política uma verdadeira arena analfabeta, pois elas produzem mais calor que luz. Como, então, a filosofia poderia contribuir para o bem do debate político? Por meio de duas tarefas importantes e complementares.

A primeira, a grosso modo, seria a de zelar pela “terapia do debate”, como já sugeriu Wittgenstein numa obra póstuma e, ali, nosso pensador austríaco propõe que a filosofia seja compreendida como uma atividade terapêutica. Por favor, nada de divã e psicanálise, mas de giz de cera e lousa: a filosofia deve “tratar” da linguagem, depurando-a e, desse modo, elucidar e esclarecer os falsos problemas e iluminar as verdadeiras aporias.

A pauta do debate público, que envolve não apenas a dimensão política, mas tudo aquilo que podemos chamar de “mundo da vida”, está repleta de inverdades, obscuridades, incertezas e imprecisões. Questione seu colega de trabalho e veja se há um mínimo de “clareza e distinção” sobre ideias básicas de política, religião, moral ou ciência. Ou, ainda, se há ao menos a percepção de que refinar tais ideias seja algo a se perseguir para um debate minimamente mais qualificado, sob pena de o embate de opiniões nos levar ao erro.

Longe de pretender dar a última palavra sobre os assuntos políticos, a filosofia deve procurar distinguir o joio do trigo e suscitar os problemas e soluções que geralmente não são vistos ou, por motivos ideológicos, são obstinada e deliberadamente ocultados.

A segunda tarefa da filosofia está justamente em abrir novos campos, confrontar outros aspectos, temas, problemas, dificuldades e dimensões da experiência humana no mundo, seja pelo “eu”, seja pelo “nós”. Uma compreensão minimamente bem formada sobre o ser humano percebe claramente que se, de fato, determinadas coisas são primordiais na ordem do tempo ou são condições para outras, disso não se segue que elas sejam as mais importantes ou primeiras de direito.

A alimentação é primordial para o ser humano, mas, salvo para quem vive da gulodice, a digestão, seguramente, não é a coisa mais importante de nossa existência. O aumento ou a redução da taxa de juros pela autoridade monetária vai influenciar minha decisão de investir na poupança ou no certificado de depósito bancário. Contudo, salvo para quem vive da cupidez, minhas aplicações não esgotam minha atenção cotidiana.

Aristóteles dizia que, quando a discussão é analfabeta, seus partidários assemelham-se a vegetais. Tem razão. É o quadro geral de hoje: uma abobrinha a moderar o debate entre repolhos e chuchus. Ao contrário da dita polarização política, falta-nos o rigor no pensar e no explicitar dos temas e conceitos supostos, além do reordenamento das questões propriamente ditas, segundo um senso de proporção e hierarquia. Cabe à filosofia nos ajudar nessas tarefas, a fim de que, ao cabo, todo o debate político não acabe numa pizza de ideias. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 07/03/2018, Página A-2, Opinião.