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Supremo descaminho

Opinião Pública | 28/03/2018 | | IFE BRASIL

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Assistimos, na última sessão de nossa maior corte, a um verdadeiro espetáculo de como não decidir o que era preciso decidir para anteontem, em nome da estabilidade institucional do país. Já disse (Correio, 21/02) que o STF resolveu, nas matérias que envolvem nossa combalida política, deixar o protagonismo moderador, papel a que foi chamado desempenhar constitucionalmente, em favor do vanguardismo tensionador.

Dito de outro modo, ao invés de jogar água na fogueira, o STF tem aproveitado para despejar gasolina. Na última quarta-feira, foram galões e mais galões. Se, antes, eu cogitava a alienação existencial de muitos ministros, agora, não tenho a menor dúvida e o pior disso está em disseminar, para o cidadão, a ideia de conivência institucional com a impunidade penal.

Muitos ministros estão descolados da realidade das coisas. Representam um quadro composto pela mistura do velho patrimonialismo brasileiro com o novo ativismo legiferante judicial. E com uma cobertura de verniz, para esfumaçar o desenho da obra, de um religioso garantismo penal, alçado à condição de reformador das perenes coordenadas simbólicas do direito criminal.

A divergência de ideias no mundo jurídico é um dado líquido e certo, além de ser muito salutar para a motivação das decisões, porque trabalhamos sempre com a realidade histórica, contingente e mutável, na qual, já dizia Aristóteles, a doxa tem um peso considerável e, muitas vezes, pode contrapor a episteme como o fiel da balança, mas sempre apontado para o justo concreto das circunstâncias.

Contudo, a maneira pela qual a atual composição da corte tem divergido, não só nesse caso, como em muitos outros, revela muito sobre como, na prática forense, funciona o Supremo. Corrijo: os 11 supremos, porque a corte não se comporta como um verdadeiro colegiado que profere decisões com fundamentos claros e uniformes, ainda mais num sistema processual em que se resolveu privilegiar a regra dos precedentes dos tribunais superiores.

Para o baixo clero judicial, composto por juízes que entraram pela porta da frente do terceiro poder republicano, esses precedentes teratológicos tornam a tarefa judicante uma espécie de deus-nos-acuda, porque a regra dos precedentes não convive bem com o grau de inconsistência verificado nesses julgamentos.

No caso da última sessão, a decisão correta seria pela denegação do habeas corpus, pois a jurisprudência dominante da corte, tomada em sede de repercussão geral, diz ser válida prisão em segunda instância, de forma que o habeas corpus serviria tão somente para aplicá-la.

Entretanto, o STF resolveu não respeitar os caminhos constitucionais estabelecidos para si. Assim, ao não honrar seu próprio precedente, restou reduzido à uma corte de supremos atalhos processuais. Um mau exemplo para os jurisdicionados e uma ótima oportunidade aberta para os advogados chicaneiros.

Ao mesmo tempo em que deixou de bem orientar jurisprudencialmente, parece que o STF resolveu orientar a si mesmo. Midiaticamente. O julgamento televisionado, como já apontou um ministro aposentado daquele órgão, não mais determina se haverá um voto isolado e sincero intelectualmente e, no lugar disso, corre-se o risco do império da barganha entre os ministros ou seus assistentes.

Se, antes da inserção televisiva, predominava a leitura de votos prontos e fechados, agora, num mesmo julgamento, notamos que os ministros têm oscilado do quadrado para o redondo, não sem antes passar pelo triangular, e mesmo feito ajustes para que o branco pareça preto e ainda continue sendo chamado de branco.

Há outras disfunções institucionais. Abordamos apenas três, as quais dão bem o tom do nível de volatilidade centrífuga do STF que, aos poucos, tem minado sua legitimidade institucional perante o cidadão, sua credibilidade colegiada para o juiz de carreira e seu simbolismo moderador diante da opinião pública e das escolas de direito.

O julgamento da última sessão foi emblemático nessas três disfunções e seu vazio decisório pode ser resumido, em “dilmês castiço”, da seguinte forma: o STF reuniu-se para decidir, porém, decidiu que, antes, precisava decidir se podia decidir e decidiu, pois, que podia, mas, então, decidiu não decidir, mesmo podendo decidir, adiando o decidir para outro dia de decisão e, no final, decidiu que o TRF-4 não pode decidir pela prisão do condenado antes de sua decisão. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 28/03/2018, Página A-2, Opinião.