A complementaridade entre razão e religião no âmbito democrático e os desafios do mundo contemporâneo: dez anos do debate Habermas-Ratzinger, por Tarcísio Amorim


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No inverno de 2004, dois renomados pensadores da atualidade – o filósofo Jürgen Habermas e o teólogo Joseph Ratzinger – reuniram-se para um debate na Academia Católica de Baviera, em Munique, na Alemanha. Com o título Dialética da Secularização: sobre Razão e Religião, o diálogo abordou temas como o secularismo político, direitos humanos, bioética e terrorismo religioso.

De um lado, o filósofo buscou conciliar a defesa de fundamentos seculares para o Estado democrático com a possibilidade de acomodação dos argumentos religiosos para fins deliberativos. Em sua visão, a democracia não dependeria de nenhuma base transcendental para justificar-se, mas as razões religiosas poderiam – e deveriam – contribuir para o debate público por meio de conceitos e imagens de mundo que viriam a ser apropriadas pela razão secular, especialmente através da filosofia. De fato, Habermas sublinhou que, no Ocidente, o entrelaçamento das tradições cristãs com a metafísica grega influenciou as intuições morais com conceitos como o de responsabilidade, despojamento, justificação e recomeço, além da própria crença na semelhança do homem com Deus, cuja transposição para a noção de igual dignidade ainda preserva seu valor nos dias atuais[1].

Como um filósofo político liberal, em seu sentido amplo, Habermas acredita que a democracia se baseia no exercício livre de uma razão que questiona seus próprios fundamentos, estabelecendo redes comunicativas das quais o consenso político em torno do melhor argumento deve emanar, depois de sucessivas transformações nas percepções e interpretações pessoais da realidade. Nesse sentido, em vista de sua igualdade jurídica, os argumentos morais provindos de indivíduos ou grupos religiosos devem ser acolhidos, pois “a neutralidade ideológica do poder do Estado que garante as mesmas liberdades éticas a todos os cidadãos é incompatível com a generalização política de uma visão de mundo secularizada”[2].

Por sua vez, o teólogo Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (hoje Papa emérito Bento XVI), enfatizou a necessidade de princípios normativos de direito que evitem tanto o extremismo religioso quanto um cientificismo desprovido de restrições morais. Igualmente, seria preciso prevenir o jogo de poder das maiorias, que na história já mostraram ser capazes de usar de instrumentos democráticos para oprimir as minorias. Assim, além de um exercício de mútua purificação por meio do confronto de razões religiosas e seculares, Ratzinger defendeu o reconhecimento da existência de valores intrínsecos “que decorrem da essência do ser humano e que, por esse motivo, são invioláveis em todos os detentores dessa essência”[3].

Embora tivesse sublinhado que tal princípio ainda encontrava sua expressão nos chamados direitos humanos – ininteligíveis sem o pressuposto de uma concepção universalista do homem que envolva a razão natural – Ratzinger, aproveitando-se das reflexões de Habermas e de seu pragmatismo, preferiu utilizar-se de sua lógica deliberativa para ressaltar o fato de que a visão democrática secular não pode ser generalizada, mas deve engajar-se no diálogo com as perspectivas religiosas. De fato, além das interpretações cristãs que continuam a influir no Ocidente, as grandes culturais do mundo (islâmica, indiana, africana e ameríndia) permanecem avançando intepretações teístas da realidade. Uma vez que a democracia pressupõe o pluralismo e a interculturalidade, seria preciso incluir todas essas perspectivas “na tentativa de uma correlação polifônica, na qual elas próprias possam abrir-se à complementaridade essencial de razão e fé” [4].

A ocorrência desse encontro entre Habermas e Ratzinger em 2004 foi oportuna por vários motivos. Dentre eles, o fato de que os fluxos imigratórios entre o Oriente o Ocidente vieram a reforçar o questionamento das bases seculares do pensamento liberal europeu. Com efeito, um mês após o 11 de Setembro, em um discurso proferido por ocasião do Prêmio da Paz da Associação de Editores Alemães, Habermas pontuou que o desenvolvimento de uma linguagem comum que reconhece a fluidez das fronteiras entre razões seculares e religiosas é fundamental para que a sociedade possa ir “além do violento silêncio dos terroristas e dos mísseis” e evitar “a batalha das culturas” [5]. De acordo com o filósofo, a visão do processo de secularização como um jogo de soma zero entre as forças progressistas da ciência e as correntes conservadoras da religião “não se enquadra em uma sociedade pós-secular que busca adaptar-se à contínua existência de comunidades religiosas” [6]. Ao contrário, a secularização para Habermas é um processo dialético no qual a atitude racional permanece autônoma, mas sem desprezar as perspectivas oferecidas pelas razões religiosas.

As reflexões sobre a secularização no Ocidente também ganharam alento devido ao processo de integração da Comunidade Europeia. O papel da religião para a construção de sua identidade cultural mostrava-se uma questão controvertida, e a rejeição à proposta de menção ao cristianismo na Carta Europeia naquele mesmo ano de 2004 não esvaziou o debate. Ao receber o Prêmio São Bento para a Promoção da Vida e da Família em 2005, Joseph Ratzinger afirmou que a oposição a tal referência se relacionava com o contexto cultural do Ocidente, que vinha privilegiando uma perspectiva positivista, e por tanto, antimetafísica, na qual as questões sobre Deus e sobre os fins últimos da vida humana não têm lugar. Para o teólogo, esta filosofia não expressaria a razão humana em sua totalidade, constituindo-se como o verdadeiro obstáculo para a união entre o Ocidente e as grandes civilizações não cristãs, especialmente aquelas formadas no seio do islamismo [7]. Vale recordar que em 2011, durante a presidência Húngara da União Europeia, um evento reunindo lideranças políticas dos países membros foi organizado na cidade de Gödöllo, região metropolitana de Budapeste, em vista da reflexão sobre a cooperação entre cristãos, judeus e muçulmanos na Europa e no mundo. O então vice-primeiro-ministro, Zsolt Semjén, sublinhou que a separação entre Igreja e Estado não exclui as relações entre religião e sociedade e que “o ser humano está aberto para os infinitos horizontes da existência, levantando questões que vão além das coisas visíveis, ansiando por explorar a vida última” [8].

Hoje, dez anos depois daquele encontro, as mesmas questões que delinearam as diretrizes do debate ainda se fazem presente nas nossas sociedades democráticas. Em meio à relativização dos discursos morais que permeia o âmbito do Direito, os dois autores apresentam uma perspectiva comum quanto ao papel da razão para o estabelecimento de normas democráticas: a rejeição do chamado “contextualismo”, como defendido pelo filósofo Richard Rorty, no qual definições de verdade e de justiça são reduzidas aos resultados de práticas culturais de justificação. Mesmo para Habermas, que situa as razões religiosas e seculares em igualdade no processo deliberativo, a justiça não é um arranjo nacional ou comunitário, mas é fruto de um processo de aprendizagem no qual a razão se expressa orientada pela verdade, transcendendo os contextos locais. Na percepção do filósofo, a concepção de um progresso sócio-cultural como resultado do desenvolvimento moral pela razão seria, a princípio, independente da religião, mas acabaria por ter de confrontar as razões transcendentes que desafiam suas bases durante o exercício deliberativo.

Nesse sentido, a lacuna entre o pensamento do filósofo para com a teologia de Ratizinger – embora persistente – acaba por se estreitar no resultado do processo democrático – se não na forma, ao menos no conteúdo. Pois, a partir do momento em que as razões religiosas (metafísicas) questionam os fundamentos profanos da democracia, elas introduzem uma crítica à forma do modelo de Habermas, crítica que o próprio sistema democrático – como esboçado pelo filósofo – teria que admitir.

Em todo o caso, tanto um quanto o outro endossam o potencial racional dos argumentos religiosos e metafísicos. Para Ratzinger, trata-se também de reconhecer que os direitos humanos podem estar em risco a partir do momento em que já não se define mais o que é o homem, tendo em conta sua origem e seu fim. Em Fé, Verdade e Tolerância, o teólogo reflete sobre esse ponto a partir do embate entre liberdade e solidariedade na demanda de alguns setores do movimento feminista em prol da autonomia do corpo. Como explicita, o feto constitui um ser-de que, por sua vez, reclama um ser-para (a mãe) a fim de se desenvolver. Mesmo após o nascimento – ainda que seja entregue a outro lar – ele continuará a depender dessa figura antropológica, assim como o adulto deverá também se reportar aos outros, como um ser em relação que é. A liberdade, então, abrange não somente direitos negativos (aquilo que podemos fazer sem a interferência de outros), mas também direitos positivos (aquilo que devemos fazer em vista da própria existência pessoal e comunitária). Dessa forma, contraponto a demanda feminista em favor do livre uso do corpo, Ratzinger afirma que a liberdade do homem apenas pode constituir-se na coexistência ordenada de liberdades, que acarreta, por si mesmo, a referência ao outro, pois toda subsistência e desenvolvimento da vida humana se apoia na interdependência das relações entre liberdade e solidariedade. Nos termos do teólogo: “se a verdade sobre o homem não existe, então ele também não possui nenhuma liberdade. Somente a verdade liberta” [9].

Como se percebe, o debate sobre razão e religião é fundamental em uma época em que novas demandas culturais reivindicam uma redefinição do lugar da religião nas democracias contemporâneas. De modo particular, ele se faz cada vez mais importante no Brasil, onde a percepção da organização política de grupos religiosos e a persistência de símbolos cristãos na esfera pública têm estado em pauta. Por um lado, como destacou Habermas, os cidadãos que partem de uma visão do mundo secularizada “não podem nem contestar em princípio o potencial de verdade das visões religiosas do mundo, nem negar aos concidadãos religiosos o direito de contribuir para os debates públicos servindo-se de uma linguagem religiosa” [10]. Por outro, os cidadãos que avançam razões religiosas devem apresentá-las em uma linguagem racional que, sem perder seu caráter transcendente, seja acessível aos outros participantes do processo deliberativo.

Como ressalta a filósofa irlandesa Maeve Cooke, essa universalidade não deve referir-se ao tipo de linguagem empregada, na tentativa de reduzir os argumentos religiosos a uma razão secular, mas à própria racionalidade do processo comunicativo, pois – conforme a própria lógica habermasiana – quando os argumentos são confrontados, o resultado de um consenso não resulta necessariamente na conversão à perspectiva do outro, mas em uma nova perspectiva, diferente de ambas, na qual as razões metafísicas podem seguir desempenhando um papel fundamental [11]. Nesse contexto, as reflexões de Jürgen Habermas e Joseph Ratzinger podem ser úteis, não tanto para questionar o ideal democrático, mas para assegurar seus próprios fundamentos, prevenindo-se o relativismo que atenta contra a dignidade humana, bem como o extremismo religioso que se fecha ao diálogo racional.

Por fim, suas ideias também podem trazer luz sobre o tenebroso contexto de violência religiosa no Iraque e em outras partes do mundo. Com a ascensão do Estado Islâmico e o surgimento de um novo conflito internacional, pode-se questionar como um diálogo público seria capaz de reconciliar visões tão díspares acerca do papel da religião e do Estado na vida civil. Sobre esse ponto, Razinger sublinha que, assim como não há um discurso homogêneo acerca do secularismo político no Ocidente, também a esfera cultural islâmica se divide quanto ao tema, com posturas que vão desde “o absolutismo fanático de um Bin Laden” até aquelas que estão abertas a uma racionalidade tolerante [12].

Como demonstra Abdulaziz Sachedina, no que diz respeito aos direitos humanos o pensamento no mundo muçulmano tem se divido entre o tradicionalismo legal dos defensores da Declaração do Cairo (que contempla somente os seguidores da Sharia), e as abordagens teológico-políticas que levam em conta a racionalidade prático-filosófica na formulação da jurisprudência islâmica (fiqh), bem como sua contingência em termos de cultura, tempo e espaço. Acadêmicos como Muḥammad al-Ghazālī, Yūsuf al-Qarāḍāwī, Aytollah Jawādī Āmolī e Allāma Muḥammad Taqī Jafarī Tabrīzī, entres outras autoridades sunitas e xiitas, vêm defendido uma visão universalista de Direitos Humanos, buscando um diálogo que permita o reconhecimento das origens teológicas da concepção de Dignidade Humana, explicitada na Declaração da ONU, por meio de uma ética filosófica inclusivista e multicultural [13].

Como bem pontou Maeve Cooke, um secularismo excludente não apresentaria nenhuma consistência para o tratamento das questões levantadas pelo islamismo político, ou pela constante imigração para o Ocidente de povos cujas visões de mundo são fortemente marcadas pelo senso religioso – e para os quais a experiência secular ocidental é amplamente remota ou completamente estranha. Ao contrário, a inerente abertura do processo de aprendizagem, combinada com o princípio de autonomia política que permite que cada indivíduo busque a autorrealização em concordância com os próprios valores, sugere que é tempo de reconsiderar os argumentos em prol de fundamentos exclusivamente seculares da autoridade política [14]. Dessa forma, razão e religião devem caminhar juntas, aparando-se e aperfeiçoando-se mutualmente, provendo novos discursos de moralidade pública e atualizando as fontes ético-jurídicas do Estado democrático.

Dez anos após o encontro de Munique, o diálogo entre Habermas e Ratzinger ainda repercute no mundo acadêmico, e suas reflexões se fazem cada vez mais atuais em meio ao ressurgimento religioso testemunhado não só nos países orientais, mas também em partes da Europa, África e América Latina. A foto acima mostra o Parlamento da República da Polônia, onde uma moção destinada a remover o crucifixo sob o argumento da laicidade foi derrubada em 2013 pela Corte de Varsóvia. A decisão converge com julgamento da Corte de Estrasburgo, sobre a exposição de crucifixos nas escolas publicas italianas em 2011, levando em conta aspectos da cultura nacional. Na Ucrânia, o levante que derrubou o governo de Yanukovich – embora diversificado em sua natureza – foi marcado por uma forte presença do clero, além de diversas manifestações religiosas em sítios públicos.

Como se percebe, a ideia de secularização como um processo linear ao longo da história destoa tanto das recentes reflexões acadêmicas acerca da pós-secularidade quanto da realidade sócio-política das democracias contemporâneas. Nesse sentido, o debate Habermas e Ratzinger torna-se significativo ao ilustrar o encontro da reflexão filosófica com a razão religiosa em prol de uma sociedade universalmente solidária e de uma cultura política legitimamente democrática.

[1] HABERMAS, Jürgen. Fundamentos pré-políticos do Estado de direito democrático?. In: SCHÜLLER, Florian (org.). Dialética da secularização: sobre razão e religião. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 50.
[2] Ibidem, p. 57.
[3] RATZINGER, Joseph. O que mantém o mundo unido: fundamentos morais pré-políticos de um estado liberal. In: SCHÜLLER, Florian (org.). Dialética da secularização: sobre razão e religião. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 68.
[4] Ibidem, p. 90.
[5] HABERMAS, Jürgen. Faith and knowledge. 2001. Disponível em: . Acesso em: 4 jan. 2014.
[6] Ibidem.
[7] RATZINGER, Joseph. La última conferencia de Ratzinger: Europa en la crisis de las culturas. 2005. Disponível em . Acesso em: 4 jan. 2014.
[8] Hongaars Voorzitterschap benadrukt belang van vrijheid van religie (en). Europa Nu, 2 jun. 2011. Disponível em: . Acesso em: Acesso em: 4 jan. 2014.
[9] RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância: O Cristianismo e as Grandes Religiões do Mundo. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2007, p. 222-232.
[10] HABERMAS, Jürgen. Op. Cit. 2007, p. 57.
[11] COOKE, Maeve. A Secular State for a Postsecular Society? Postmetaphysical Political Theory and the Place of Religion. Constellations, 14, 2, 2007, 224-238.
[12] RATZINGER, Joseph. O que mantém o mundo unido: fundamentos morais pré-políticos de um estado liberal. In: SCHÜLLER, Florian (org.). Dialética da secularização: sobre razão e religião. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 90.
[13] SACHEDINA, Abdulaziz. Islam and the Challenge of Human Rights. New York: Oxford University Press, 2009.
[14] COOKE, Maeve. A Secular State for a Postsecular Society? Postmetaphysical Political Theory and the Place of Religion. Constellations, 14, 2, 2007, 233-234.

Tarcísio Amorim é doutorando em Ciência Política pela University College Dublin e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Fonte: http://www.dicta.com.br/a-complementaridade-entre-razao-e-religiao-no-ambito-democratico-e-os-desafios-do-mundo-contemporaneo-dez-anos-do-debate-habermas-ratzinger/




Um cruel sarcasmo


Numa roda de conversa entre amigos, um deles, cujas ideias políticas o alçam à condição muito peculiar de um dos últimos representantes ativos das experiências totalitárias passadas, disse que a democracia brasileira, de tão corrompida, deveria ser liquidada pela força massiva do voto em branco. A democracia está em crise então?

Aqui, paira uma confusão bem típica dos dias atuais: confundir o mecanismo com a essência. Quando o sujeito fala de democracia, muitas vezes, fala de, implicitamente, igualdade, justiça, liberdade, solidariedade, bem comum e outros valores tão caros para as sociedades ocidentais. Sem dúvida, estes bens morais asseguram a perenidade de uma democracia e, por assim dizer, quando fomentados num ambiente democrático, reforçam-na, numa espécie de círculo virtuoso.

Quando tais bens morais escasseiam ou são jogados para o escanteio social, o principal mecanismo democrático – o princípio majoritário – é capaz de, democraticamente, conduzir uma democracia à liquidação de si mesma, como na Alemanha de Weimar.

Se o problema, para esse meu amigo com pendores nostálgicos totalitários, é a corrupção endêmica nas estruturas governamentais, logo, não é a democracia que precisa ser revista, mas a qualidade dos valores que hoje a sustentam, o que demanda algum tempo, sem prejuízo da defenestração dos ocupantes dos cargos políticos que são coniventes com esse quadro moral pouco animador, o que pode e deve ser feito imediatamente, sobretudo se estivermos no meio de um período eleitoral.

Aliás, essa capacidade de expulsar, da arena legislativa ou executiva, os políticos e os partidos que confundem o público com o privado ou o partidário é um dos mais grandiosos atributos da mecânica processual democrática: punem-se os maus políticos e premiam-se os bons, sem a necessidade de qualquer recurso às revoluções “gloriosas”, medidas autoritárias ou golpes sanguinários. Por isso, convém sempre manter um estado constante de crítica à classe política e, para o caso de políticos que desfilem na passarela de crimes cometidos contra o erário público, uma certa desconfiança generalizada, mormente se, mesmo condenados judicialmente, seu partido sequer cogitou de expulsá-los da sigla.

Mas voltemos ao problema da corrupção endêmica, que produz o pior efeito que pode acontecer para uma sociedade democrática: a “coisa pública” deixa de ser pública para pertencer ao domínio de uns tantos poucos, sejam empreiteiros, carreiristas de cargos públicos ou mesmo companheiros de partido. A máxima de Lord Acton – o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente – é muito repetida e com razão.

A busca da perfeição moral na órbita democrática moderna tende a ser uma tarefa possível, se comparada com uma órbita totalitária, que já é a corrupção em si mesma. Mas não é fácil, pois o jogo democrático trabalha com duas cartas, a do poder político e a do poder econômico que, como toda carta, tem duas faces: a face nominal e a face real. Quando a face real está corrompida em ambas as cartas, o jogo democrático leva um truco da corrupção endêmica.

Um bom começo de saída desse quadro desolador está em abrir os olhos para os limites e os reducionismos do relativismo moral, o mal de fundo dessa corrupção endêmica que, no frigir dos ovos, confunde os limites da retidão no trato da coisa pública e proporciona, como efeito, o cinismo mais impune. E, antes de abrir os olhos, no próximo domingo, convém usar bem as mãos na urna, demitindo, sem contestação, novos ou os mesmos projetos políticos que pretendem fazer do governo do povo, pelo povo e para o povo um cruel sarcasmo social. Com respeito à divergência, é o que penso.

■■ André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, mestre em filosofia e história da educação e coordenador do IFE Campinas, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 22 de Outubro de 2014, Página A2 – Opinião.




Distinguir para unir


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Sem dúvida, uma nação se constrói, fundamentalmente, a partir da educação de seu povo. Uma lição sempre presente e que, na realidade brasileira, faz-me recordar que boa parte de nosso descompasso com as grandes nações se deve muito mais a problemas domésticos relacionados à educação do que propriamente às tão propaladas injustiças do fenômeno da globalização.

Estou convencido de que o grande salto que o povo grego alcançou, em nível de descoberta interior do homem, deveu-se à ação educativa. Desde seus primórdios, houve sempre uma preocupação em se descortinar os dois mundos que se abriam ao homem grego. Em primeiro lugar, o mundo exterior, voltado para os mares, à conquista de colônias e às guerras. Homero relatou a saga grega em Tróia e Tucídides foi, por assim dizer, o primeiro correspondente de guerra que se tem notícia: ele fez toda a “cobertura” do conflito do Peloponeso.

Ao mesmo tempo, creio que essa abertura para o horizonte navegável fez com que o grego se voltasse para um segundo mundo, o mundo interior. Os mistérios da mente e das potências humanas foram descortinados e, de certa forma, depois dali, o mundo nunca mais foi o mesmo. Após a Grécia, ninguém pode dizer que o homem é um ser desconhecido ou que os governantes desconheçam a força das ideias: Sócrates, Platão e Aristóteles, imortalizados por Rafael em seu famoso afresco, dialogam conosco até hoje.

Roma existiu por quase mil anos, graças à sua capacidade impressionante de aprender e aplicar as lições gregas, transformando esse conhecimento em direito universal, aplicável somente para os povos civilizados. Em outras palavras, o legado greco-romano forjou a moderna democracia, cuja vigor sempre depende de uma sólida gama de valores perenes, que são transmitidos, de geração em geração, pela educação. Do contrário, quando o relativismo toma de assalto a democracia, ela se torna uma espécie de sala de espera do totalitarismo. Esse foi um triste legado do século XX.

Vista como forma de emancipação dos povos, depois dos gregos, a educação floresceu entre os romanos até a queda de seu império ocidental, quando a Igreja Católica (sim, a infame de Voltaire) assumiu, definitivamente, sua função pedagógica, civilizando os bárbaros. A universidade, a herança de um período paradoxalmente denominado como das trevas, potencializou a evolução científica das nações da Europa, sob a tutela da mesma igreja. E, a partir da Idade Moderna, a universidade transformou-se na depositária do tesouro do saber humano.

Atualmente, todos os países têm seus olhos focados na formação pedagógica das gerações em todos os níveis. Se a ignorância, por um lado, é a base para qualquer conhecimento válido, na melhor tradição socrática, de outro, alavanca o risco de manipulação e de dominação, ou seja, o poder do homem sobre o homem que, não raro, é exercido arbitrariamente, tornando-se o homem o general que triunfa e, ao mesmo tempo, o escravo que segue o carro do exército vencedor, no dizer de Lewis.

Surgem novas propostas pedagógicas, baseadas na liberdade de escolha das pessoas. Em muitos países, já está em pleno desenvolvimento um sistema pedagógico, com ampla eficácia educativa, baseado na educação diferenciada, uma escola diferenciada por sexos. Um grande filósofo francês já disse que, em muitos campos do conhecimento, é necessário “distinguir para unir”: realçar os vários aspectos diferentes de uma coisa para que ela possa ser melhor compreendida depois em seu todo. Se a sociedade está fundada na igualdade, isso não permite concluir que todos sejam substancialmente iguais. Existem naturais diferenças que podem ser perfeitamente realçadas e estimuladas sem qualquer ofensa àquele princípio e em nome da complementariedade.

Nós educamos na igualdade entre os sexos, mas também consideramos as nuances entre os mesmos sexos: basta estudar um pouco de caracteriologia. As escolas de educação diferenciada zelam pela formação integral dos alunos, levando em consideração a realidade biológica dos sexos, além de seus desdobramentos culturais e a relação entre ambos os sexos por meio de espaços educativos próprios.

Sabemos que todos podemos alcançar o mesmo nível de conhecimento, mas percorremos sendas distintas no processo de aprendizado: uns atuam de forma linear, outros de forma geométrica e outros, digamos, dão muitos círculos até conseguirem percorrer a via do saber. E a educação diferenciada pode aportar relevante contribuição para as necessidades pedagógicas do século XXI, porque distingue para, depois, unir.

Essas linhas servem para mostrar as potencialidades da educação diferenciada e o quanto é relevante a valorização do ensino, como um todo, no mundo atual, inclusive como meio de transformação social. Novidade tão velha quanto a Grécia, porque, como todo seu legado nesse campo, é  de uma perenidade impressionante. Não atentar para as potencialidades da educação diferenciada é trilhar pelos caminhos da ignorância ou da cegueira do cego que não quer ver. Ou por uma triste combinação de ambas.

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito, mestre em Filosofia e História da Educação, Pesquisador, Professor do IICS-CEU Escola de Direito, membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB/SP e da Associação de Direito da Família e das Sucessões (ADFAS) e coordenador do IFE CAMPINAS (agfernandes@tjsp.jus.br).




A Ideologia Laicista


O laicismo já não é aquele elemento de neutralidade que abre espaços de liberdade a todos. Começa a transformar-se em uma ideologia que se impõe por meio da política e não concede espaço público à visão da religião, que corre o risco de converter-se em algo puramente privado e, no fundo, mutilado.

Entende-se por Estado confessional aquele que se vincula a determinado credo religioso e compromete-se a transportar para a vida civil as exigências sociais e políticas tal como são defendidas pela hierarquia eclesiástica correspondente. É emblemática a imagem da coroação de Dom Pedro II, retratada por Araújo Porto Alegre em seu famoso quadro (Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro). Aliás, a Constituição do Império (1824) subscrevia o caráter confessional de nosso Estado.

Contudo, hoje, o laicismo, propositadamente, utiliza a expressão “confessional” de forma genérica, sobretudo quando os poderes públicos tomam medidas com conteúdo ético-material de raiz ideológica ou religiosa. Como se fosse possível que qualquer ação estatal pudesse, por sua neutralidade, não incorporar qualquer matiz desta natureza. É algo dificilmente imaginável.

O laicismo, portador de uma agressividade ideológica secular preocupante, vai mais além quando rejeita a singela possibilidade de as confissões serem vetores na construção da vida social. Defende não ser suficiente a estrita separação entre Estado e religião, mas o completo isolamento da religião do próprio âmbito público da sociedade, acantonando-a nos lares, já que o cidadão só teria direito a exercer um credo de natureza intimista. Afinal, “é incabível impor as próprias convicções aos demais”.

A assertiva é curiosa. Quando se fala de “convicção”, imediatamente, pensa-se naqueles que professam alguma confissão religiosa. Então, os incrédulos seriam cidadãos sem convicções. Como conseqüência, justamente por não estarem convencidos de nada, sua opinião deveria ser exclusivamente decisiva no momento de se estabelecer um consenso democrático a respeito de uma tema de interesse geral. Trata-se de um verdadeiro paradoxo.

Certamente, não faltará um constante patrulhamento em todo cidadão que se sinta convencido além da conta e, então, sua opinião será recebida como um mero juízo lastreado nuns princípios religiosos, dos quais estaria prisioneiro por neles crer piamente ou por ainda não ter superado sua menoridade intelectual. Assim, a deliberada intenção de converter os cidadãos que acreditam em uma fé em uma classe social de categoria secundária não deixaria de ser uma piada, porquanto proveniente de suas presumidas e impotentes vítimas.

O laicismo, ao relegar à nulidade o papel do religioso na sociedade, avoca a si o vácuo deixado e transforma-se na única doutrina confessional, obrigatória a todo o cidadão, à semelhança dos partidos únicos dos regimes comunistas. É feita uma blindagem, de natureza fundamentalista, a qualquer outra opção. A dimensão pública do religioso é retirada de qualquer debate plural.

Pelo contrário, a laicidade consiste em ter em conta, no âmbito público, as várias crenças religiosas dos cidadãos, de maneira que se dá o devido destaque ao exercício do direito individual à liberdade religiosa, com absoluta separação entre Estado e religião. Por conseguinte, as confissões religiosas deixam de ser co-autoras no teatro da vida política e econômica e tornam-se meios eficazes para que os cidadãos possam viver privada e publicamente suas convicções.

Precisamos de uma sociedade livre, democrática e pluralista, na qual as pessoas tenham a possibilidade de aderir livremente às verdades objetivas, que são plenamente compatíveis com a laicidade de um Estado, gerando um todo harmônico. A indisfarçável proposta do laicismo, expressão de um certo racionalismo, redundará, mais cedo ou mais tarde, no relativismo, a antessala dos totalitarismos do século XX, pródigos na destruição de gerações, vidas e das próprias sociedades liberais secularizadas, pois estas vivem de pressupostos que elas mesmas não têm condições de assegurar.

André Fernandes (IFE Campinas)




Aborto e democracia


O dia 28 de setembro é o Dia Latino-caribenho pela Descriminalização do Aborto. Talvez você nunca tenha ouvido falar dele, mas, provavelmente, deve ter percebido que, por “coincidência”, nas últimas semanas surgiram na mídia reportagens e notícias sobre o tema, além de algumas manifestações nas ruas. A data foi escolhida em 1990, durante o V Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe, para ser um marco, nestes países, da militância do chamado movimento abortista mundial (que, talvez, você também não conheça, mas, certamente, já deve ter presenciado a sua atuação).

Embora venha atuando sistematicamente no Brasil há pelo menos 30 anos, com o apoio de diversas entidades nacionais e internacionais, inclusive partidos políticos, esse movimento sem fronteiras, articulado, poderoso e financiado por fundações milionárias (como Ford, Rockfeller, MacArthur e outras) é ignorado pela maioria dos brasileiros. Isto acontece porque a sua principal estratégia é justamente a desinformação, essencial para quem pretende manipular a opinião alheia e colocá-la a serviço de seus próprios interesses.

De fato, para o movimento abortista a promoção do debate público na mídia e nas universidades é apenas a encenação de uma grande farsa. Trata-se apenas de uma estratégia de ocupação de espaços e criação de um clima propício para atuar a sua agenda. O intuito é simplesmente a cooptação de “idiotas úteis” que, ingenuamente, são conduzidos por suas falácias a comporem a massa que permitirá a realização de seus reais objetivos. E quem se atreve a se opor é automaticamente visto como inimigo e será alvo do mais terrível patrulhamento ideológico, leia-se: será perseguido, caluniado e, se possível, jogado no ostracismo.

O debate livre e transparente só favorece quem está disposto a declarar suas ideias e objetivos, sem medo de coloca-los à prova. Não é o caso do movimento abortista, que não possui um genuíno interesse em um diálogo racional em prol da melhoria da vida humana. O que existe é uma posição tomada a priori com objetivos ideológico-revolucionários (jamais declarados) e a busca ensandecida pela sua imposição política por meio de uma militância profissional. Tudo, é claro, com as melhores intenções. Veja bem, não se trata de uma organização qualquer, que pretende participar democraticamente do debate público e convencer as pessoas sobre convicções legítimas e verdadeiras. Mas sim da manipulação de pessoas para obter apoio para uma agenda conhecida somente pelos seus líderes.

Qualquer discussão séria pressupõe a boa-fé dos participantes e o comprometimento com a verdade. Mas o atual debate sobre o aborto, falsamente promovido pelo movimento abortista, está todo contaminado por mentiras e ambiguidades que, de antemão, o inviabilizam: estatísticas falsas, argumentos ilógicos, testemunhos forjados, linguagem deturpada, camuflagem de interesses, afastamento deliberado da realidade. Para compreender melhor esse aspecto, vale a pena assistir ao filme “Blood Money —Aborto Legalizado”, de 2013, disponível na íntegra no YouTube. Baseado na experiência norte- americana, traz um relato da tragédia abortista naquele país, mostrando o que existe por trás da milionária indústria do aborto e da promoção internacional da sua legalização.

Além disso, também vale a pena conferir alguns sites na internet, como o americano Life Site News (http://www.lifesitenews. com/), o da Associação Nacional Pró-vida e Pró-família (http://providafamilia.org/), o do Pró-vida de Anápolis (http:// www.providaanapolis.org. br/), o Juventude pela Vida (http:// juventudeprovida.wordpress. com/), apenas para citar alguns, onde se encontram diversos artigos e referências bibliográficas para um estudo sério sobre o assunto. Ao contrário do que comumente se ouve entre os defensores da agenda abortista, facilmente se perceberá que a discussão vai muito além de posturas moralistas, machistas, patriarcais ou seja lá que outro rótulo queiram inventar para desqualificar seus interlocutores.

Enfim, fica o convite a cada leitor, para que não se deixe conduzir passivamente pelas falácias da militância abortista, mas procure estudar com seriedade as ideias em jogo e conhecer a realidade dos fatos por trás dos discursos. Somos livres para construir nossas opiniões, mas não temos direito de expressá-las de forma irresponsável. Mais que um direito, cada cidadão tem o dever de se informar e formar honestamente a sua consciência individual e política. Esta é a arma que possuímos para que a democracia não degenere na demagogia, um mal tão grave como a pior tirania, com ensinava Aristóteles. Talvez descobrirá as verdadeiras origens da opinião que pensava ser a sua e se surpreenderá ao se reconhecer apenas um “idiota útil”. Mas não se envergonhe, pois, nesse instante, nascerá para você a oportunidade de deixar de sê-lo.

■■ João Marcelo Sarkis é advogado, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 9 de Outubro de 2014, Página A2 – Opinião.