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Cruzando os limites da Ética – por Beatriz Rezende

Opinião Pública | 21/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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O aluguel de útero é uma prática que consiste em financiar uma “mãe de aluguel” durante os nove meses em que ela portará o filho que, ao nascer, será propriedade daqueles que pagaram pelo serviço. Nessa concepção, gerar filhos é precisamente um negócio. O filho, uma mercadoria. A crescente monetização da sociedade inverte os papéis: torna o dinheiro um fim e o ser humano, um meio de atingir interesses.

Em novembro de 2012, nasceu Ceron, uma criança concebida com o óvulo de uma doadora indiana e o espermatozóide do pai (biológico e de criação). O embrião foi implantado na barriga de outra indiana, Adono, da cidade de Anand, onde nasce um bebê de barriga de aluguel a cada três dias. Ao falar do bebê, seus olhos enchem de lágrimas. “Vai ser difícil. Carreguei na minha barriga por nove meses e vou ter que me separar dele”, diz ela referindo-se à canadense que, por infertilidade, pagou pelo serviço. Adono complementa explicando “Fiz pelos meus três filhos”, pois pagará a faculdade dos dois mais velhos com os US$ 7.000 que recebeu pela gestação. A questão mais patente: quem deve ser considerada mãe do bebê? Terá ele três mães?

Ao analisar situações como a descrita, deve-se ter em mente que a dimensão ética está presente em toda ação, relação e criação do ser humano. O utilitarismo —linha filosófica muito aceita atualmente (ainda que de forma inconsciente)—considera uma ação moral quando promove felicidade para o maior número de pessoas. Ignora-se a legitimidade dos meios utilizados, o que é crucial nas relações sociais.

A partir dessa teoria defende- se que a dignidade do acordo entre a mulher que deseja o filho e a outra que necessita do dinheiro está na “autonomia” das decisões, mesmo que essa escolha seja uma submissão desumana. Ao se tratar da miséria é mais coerente falar em instinto ou desejo de sobreviver do que em autonomia. Degradar o ser humano em prol da “autonomia” que sequer possui é uma incoerência com a igualdade de direitos defendida internacionalmente.

Transformar um filho em mercadoria é uma regressão de valores que pode, não apenas equiparar-se, mas ser considerado ínfero à escravidão. Apesar de não se tratar de condições análogas, no que diz respeito ao princípio da relação, há grande semelhança: o único valor tido em conta é o do mercado.

Na escravidão, homens são vistos como simples mercadorias, passíveis de serem vendidas e compradas por aqueles que detêm capital para tanto. Pode-se notar, no entanto, uma considerável diferença acerca do sujeito comercializado: o escravo era um estranho para aquele que pagava por ele; na barriga de aluguel, o próprio filho é tido como a mercadoria. No passado, a escravatura foi amplamente aceita e a sociedade, no geral, foi indiferente a tal atrocidade. Da mesma forma, hoje, vê-se uma maior adesão ao utilitarismo e, por conseguinte, a práticas como o aluguel de úteros.

No debate sobre “barrigas de aluguel” defende-se fervorosamente o direito das mulheres de terem filhos e conclui- se, a partir dessa afirmação, que o Estado tem o dever de permitir qualquer ação que vise a tal objetivo. A falha desse argumento se deve ao simples fato de que os direitos da criança estão acima do direito a uma criança.

Quais consequências sofrerá uma criança ao saber que foi comprada por seus pais? O que acontecerá se a mãe de aluguel criar laços afetivos com o bebê? Quem terá direitos sobre ele? Será permitido aluguel de útero para mulheres que conseguem ter filhos, mas desejam manter a estética do corpo? Haverá fiscalização?

Não há respostas capazes de solucionar esses problemas ocasionados pelo aluguel de úteros. A partir do momento em que se cruzam os limites da ética, não é mais possível traçar limites.

■■ Beatriz Figueiredo de Rezende é graduanda em Ciências Econômicas na Unicamp e colaboradora do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 20 de setembro de 2014, Página A2 – Opinião.